De volta para o mundo normal


30/03/2021


Por Norma Couri, diretora da Comissão de Mulher & Diversidade da ABI.

Quando Bolsonaro for embora terá legado ao país uma linguagem extraída das profundezas da Internet compartilhada por jovens de extrema direita. É tecida em perfis como QAnon que motivou os arruaceiros que invadiram o Congresso americano, ou nos sites de “trollagem” como 9GAG com brincadeiras às vezes humilhantes. Como a juventude hitlerista ou integrante da Ku Klux Klan, Filipe Martins nos “pregou” a trollagem levantando os três dedos na forma de W (White), e uniu polegar e indicador formando um P (Power) configurando a supremacia branca. O assessor de Ernesto Araújo fez o gesto enquanto o então chanceler depunha na sabatina do Senado Federal, contribuindo com “comunavírus” para o novo léxico.

Ernesto foi embora por pressionada vontade mas Filipe fica. Fica a herança dos gestos troll espalhados neste brasil colado no nosso. Cabe no copo de leite compartilhado por Bolsonaro com seus asseclas, outro símbolo de arianismo e na rosca de Filipe Martins no Congresso que entra no rol de obscenidades e desrespeito. Nos primeiros meses do novo governo recebemos o vídeo do “golden shower” no tuite presidencial. O novo vocabulário altera o sentido de situações do nosso mundo normal, como o ex-chanceler chamar de “cidadãos de bem” os invasores do Capitólio e assumir “pária internacional” para a nova posição diplomática do Brasil. Aposta-se que o substituto será terrivelmente olavista.

Sai Ernesto, mas esta linguagem fica, nas muitas redes sociais frequentadas pelo governo. Minha geração clamava “no passarán!”. Carlos Bolsonaro prefere a revanche do brado franquista “ya hemos pasao!”. O Zero 2 escreve no seu perfil do Twitter “do not go gentle into that good night”. Para o filho do presidente a frase é repeteco do manifesto do supremacista branco Brenton Tarrant que matou 49 pessoas e feriu 20 no ataque a duas mesquitas na Nova Zelândia em 2019. No mundo normal nós conhecíamos o verso várias vezes musicado por compositores, reproduzido por artistas, cineastas, do poema do poeta galês Dylan Thomas e traduzido por Augusto de Campos, “Não vás tão docilmente nessa noite linda”.

Vão embora os ministros e quiçá o presidente mas algumas inserções do linguajar não vamos esquecer tão cedo. “Cloroquina”, “coquetel de prevenção ao vírus”, “vacina da China”, “gabinete do ódio”, “pequi roído”, “terrivelmente evangélico”, “e daí?”, “táokei”, “petralhada”, “o afrodescendente mais leve pesava sete arrobas”, “indígena …devia comer capim lá fora para manter suas origens”, “é para enfiar no rabo de vocês da imprensa”.

E vai entrar na pauta do Acordo Ortográfico o vasto vocabulário de caserna praticado pelos militares nos cargos civis do governo, que como o Centrão e os empresários já se descolam de Bolsonaro.

Acochambrar: fazer corpo mole para o trabalho. Exemplo, os professores na visão do ministro da Educação, Milton Ribeiro, “ser um professor é quase uma declaração de que a pessoa não conseguiu ser outra coisa”. Seus antecessores preferiam o exemplo dos alunos, todos “esquerdistas”, e as escolas que não merecem repasses do governo. Foi para estancar tanto acochambrar que o ex-ministro Ricardo Vélez Rodrigues queria filmar alunos cantando o hino nacional em fila militar.

Arranchar: comer. Exemplo, pão com leite condensado, de preferência com a sandália de dedo utilizada pelo presidente na reunião dos G20. Ou o auxílio moradia de Bolsonaro “ para comer gente”.

Bizu: dar uma dica. É o que o assessor do chanceler, Filipe Martins, julgou fazer ao expor o símbolo do fascismo cibernético apenas para os seus pares ao fingir ajeitar a lapela durante o depoimento suado e gaguejante de Ernesto Araújo no Senado. Ou a “coincidências retóricas” com o nazismo como o discurso do ministro da Cultura, Roberto Alvim, “ ou será isto ou não será nada”.

Dar sopa na crista: querer aparecer e se dar mal. Melhor representação é Jair Bolsonaro nas declarações do café da manhã, nas entrevistas à imprensa, e ao se vender ao Centrão.

Estar de baixa: estar doente. São os 300 mil brasileiros que morreram daquela doença conhecida como “gripezinha”
Galho fraco: tarefa fácil. Bolsonaro julgava ser “galho fraco” assumir a presidência do Bananão, como Ivan Lessa chamava o Brasil.

Ir na rota: seguir o destino. Para Ernesto Araújo significa varrer 30 anos do “narcossocialismo” que regia o Brasil como o chanceler que já vai longe explicou na carta aos Estados Unidos.

Jangal: entrar num jungle. Uma situação difícil como passar a boiada na Amazonia de Ricardo Salles e desmontar a estrutura de fiscalização contra desmatadores ilegais e grileiros.

Laranjeira: quem mora no quartel. Todos, fora os 6.137 militares da ativa e da reserva que moram hoje no governo.
Missão Cumprida: tarefa resolvida. Um manda, o outro obedece.

Moita: quem fica quieto. Por exemplo, o governo que assistiu impávido ao pedido de prisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal pelo ministro Abraham Weintraub que sucedeu a Vélez Rodrigues na Educação.

No pau da goiabeira: sem rodeios. Não confundir com a goiabeira onde a Ministra Damares Alves viu Jesus.

Papirar: estudar. O melhor exemplo são os fóruns de extrema direita na Internet como 4chan e 8chan nos quais Eduardo Bolsonaro, que indicou Filipe Martins ao governo, é especialista.

Plotar: descobrir. Por exemplo, as extensas plantações de maconha nas universidades federais descobertas nas escavações do ministro Weintraub.

Piruar: se oferecer para o trabalho. É o papel do ministro da Justiça André Mendonça ao aceitar um Estado de Sítio e uma lei de Segurança Nacional contra cartunistas, jornalistas, sociólogos que não concordem com o presidente.
Rolha: inútil. Como diria Mario Malhação Frias, sobre qualquer instituição cultural, seja o Museu Nacional do Rio de Janeiro, a Cinemateca Brasileira ou a Casa de Rui Barbosa.

Sanhaço: situação difícil. Como deve ter sido para presidente Sergio Camargo varrer 27 nomes “esquerdistas” da lista de homenageados pela Fundação Palmares: os cantores Elza Soares, Gilberto Gil, Martinho da Vila, a ex-senadora da Rede Marina Silva, a deputada federal (PT) Benedita da Silva, a escritora Conceição Evaristo…
Seguir a rota: ir embora. Aquilo que os senadores aconselharam Ernesto Araújo esta semana duvidando “o senhor realmente cursou o Instituto Rio Branco?”, e a carta de 300 diplomatas endossou antes do pedido de demissão forçada do chanceler.

Selva: grito de guerra. Contra a invasão “iminente” da Venezuela, que exige treinamentos caríssimos e constantes contra “vermelhos” na Amazonia.

Torar: dormir. É o que faz o presidente enquanto as instituições mais importantes do país são desmontadas em decisões tomadas na calada da noite. Bolsonaro não acorda com a barulheira do gigante adormecido desmoronando diante do mundo estupefato.

Última forma: esqueça o que eu disse. É a frase adotada por Jair Bolsonaro para todos os 5 milhões de infectados pelos vírus que sabem, ele sempre foi a favor da vacina, da máscara, da vida.

Zero: estar entre os 10 primeiros da turma. São os Zeros de Bolsonaro, Eduardo, Flávio, Carlos, Renan, não confundir com o preguiçoso personagem Recruta Zero, lema “nunca deixe para amanhã que pode fazer depois de amanhã” ou “engraçado como o tempo voa quando a gente está de folga”. A favor do Recruta Zero, ele não conhecia o termo “rachadinha”. São quatro homens, a última “dei uma fraquejada, veio uma mulher” disse Bolsonaro.

Estamos quase esquecendo outro chamado, o da paz e amor.