Concessão de canais: debate na ordem do dia


23/01/2007


Mário Augusto Jakobskind* 


A Rádio Caracas Televisão (RCTV), que já chegou até a ser confundida por um dos principais jornais do Rio de Janeiro (JB, na matéria “Chávez acusa TV de espionagem”) com a Cantv (Companhia Anônima Nacional de Telefones da Venezuela), não terá a sua licença de funcionamento renovada pelo governo de Hugo Chávez. A decisão anunciada pelo Presidente venezuelano tem provocado protestos dos proprietários midiáticos em vários quadrantes do mundo, particularmente na América Latina.

Os principais órgãos de imprensa brasileiros fazem eco aos protestos encabeçados pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, em espanhol). A medida anunciada pelo governo venezuelano está provocando discussões das mais variadas. Os principais órgãos de imprensa e colunistas intensificaram as críticas contra o Presidente Chávez, que é apresentado, em editorais, análises ou matérias do dia, com adjetivos depreciativos do tipo “caudilho-petrolífero”, “ditador”, “demagogo” etc. O noticiário sobre os acontecimentos na Venezuela, especialmente os relativos ao anúncio do fim da concessão à RCTV, de um modo geral peca pela parcialidade, na base da unanimidade contra. A leitura induz à conclusão de que na Venezuela a liberdade de expressão está ameaçada ou já não existe.

O noticiário da mídia conservadora não tem impedido que se aprofunde o debate sobre uma questão crucial dos dias atuais: a democratização dos veículos de comunicação. Os proprietários midiáticos partem do princípio de que os canais de rádio e televisão são propriedades particulares e que o Estado não tem que se intrometer na matéria. Em outros termos: simplesmente desconhecem, ou se fazem de desentendidos, que o fato de uma emissora estar no ar não significa que ela tudo pode, até mesmo manipular a informação. Preferem ignorar que as concessões para o funcionamento de estações de rádio e televisão são decididas pelo Poder Público, seja na Venezuela, no Brasil ou em qualquer parte do mundo. Existe uma legislação que regula a matéria em cada país. Ao serem criticadas por qualquer motivo, as emissoras alegam que devem apenas “satisfação” aos ouvintes e/ou telespectadores, e que qualquer questionamento “fere a liberdade de expressão”.

Na Venezuela, o espectro radiotelevisivo vem sendo ocupado em 90% pela iniciativa privada e nos últimos anos, obedecendo a uma nova legislação, o restante tem sido reservado às rádios e televisões comunitárias e ao Estado. Formou-se o chamado “Bloco da imprensa alternativa”, que recebe verbas do Estado, permitindo assim o seu funcionamento. Ao contrário do que vem sendo informado pela mídia conservadora, o estímulo estatal à imprensa alternativa não significa necessariamente exigência de apoio incondicional ao governo. Os movimentos sociais, não só da Venezuela como dos demais países da América Latina, aplaudem a política do Estado, aprovada pelo Congresso, de incentivo ao surgimento e consolidação de meios de comunicação fora do padrão habitual da grande imprensa. Nos países onde não há esse estímulo, a imprensa alternativa não floresce, pois dificilmente encontrará condições de sobreviver em função dos custos.

O patronato critica duramente essa política de Estado, sob o argumento de que “fere os princípios democráticos”. Isto é, entendem que as verbas publicitárias estatais só podem ser destinadas aos seus veículos.

A mesma linha de raciocínio ocorre na questão das concessões dos canais de rádio e televisão. Ou seja, os proprietários ignoram e não aceitam o fato de que os canais não lhes pertencem, mas dependem de concessão do Estado. Teoricamente, a cessão do canal ou sua renovação dependerá da apresentação de um relatório do que foi realizado pela emissora durante o tempo em que ocupou o espaço ou do que pretende fazer. Dificilmente as emissoras cumprem esse requisito, por entenderem que a concessão ou a renovação solicitada é automática. O Poder Público se omite e não faz nenhum tipo de cobrança. Qualquer questionamento é considerado “atentatório à liberdade de imprensa”.

No caso específico da RCTV, prevaleceu a rotina. Ou seja, tão logo o Presidente Hugo Chávez anunciou que não seria renovada a concessão, a grita contrária começou, ou melhor, foi intensificada, porque os proprietários de veículos de comunicação já se sentiam ameaçados pelo governo. O governo, no entanto, alega que as acusações não procedem. Marcel Granier, Presidente da emissora de TV que não terá a concessão do canal renovada, em declarações ao jornal O Globo acusa o governo de violar a lei e de estar empenhado “em sufocar o pluralismo”. Granier promete acionar organismos internacionais para reverter a decisão.

A RCTV, segundo o governo, teve participação direta na tentativa de golpe de estado contra o Presidente Hugo Chávez, inclusive promovendo reuniões preparatórias na própria sede da emissora. O governo lembra que depois que o povo venezuelano, com a ajuda das Forças Armadas, abortou o golpe, a RCTV não noticiou o retorno de Chávez ao Palácio Miraflores (a sede do governo), preferindo dar espaço a desenhos animados naquele momento crítico da história contemporânea venezuelana.

A jornalista Patrícia Poleo, da RCTV, é acusada pela Justiça venezuelana de participar da trama que culminou com o assassinato do Procurador Danilo Anderson, que investigava a responsabilidade sobre a tentativa frustrada de golpe. Ela vive hoje nos Estados Unidos, onde tem muito espaço na mídia, e nega a acusação, incriminando o governo.

Correligionários de Chávez o criticaram por, depois de voltar ao governo, em abril de 2002, não ter adotado nenhuma medida de represália contra a emissora. Ele alegou que legalmente nada poderia ter feito, exatamente porque a concessão do canal não estava vencida. A RCTV continuou a adotar a mesma linha de oposição contra Chávez, sendo acusada de agir na prática como partido político que pregava a derrubada do governo. Até horóscopos do tipo “hoje é um bom dia para se derrubar um presidente” eram apresentados. Os jornais que adotam linha editorial de oposição ao governo Chávez, como El Universal , El Nacional, El Mundo, Tal Cual, entre outros, têm total liberdade de ação.

Agora, com o fim da concessão do canal da RCTV, o governo age conforme determina a legislação que regula o setor. Outras três grandes emissoras de televisão, com linhas editoriais semelhantes à da RCTV — Globovision, Telemundo e CRT—, continuam suas transmissões normais e não sofrem nenhum tipo de restrição. A licença para a concessão dos respectivos canais continua em vigor, não podendo assim o governo legalmente impedir o funcionamento.

Na verdade, a medida anunciada por Hugo Chávez colocou no espaço midiático a importante discussão sobre a concessão dos canais de rádio e televisão. Neste segundo semestre de 2007, mais de 25 canais de TV no Brasil solicitarão a renovação da concessão. Por aqui, em um só momento tem se colocado em questão o fato de que a renovação pode ou não ser concedida, o que a torna na prática automática. O debate não deve ser relegado a segundo plano ou considerado pouco relevante, como preferem os proprietários dos veículos de comunicação que têm os canais de rádio e televisão concedidos pelo Estado.

* Mário Augusto Jakobskind é Conselheiro da ABI, correspondente do jornal 
uruguaio
Brecha e colunista do portal Fazendo Média (www.fazendomedia.com)