Carnaval de jornalistas lembra cronista preso pela ditadura


15/02/2023


Por Naieff Haddad – Folha de S. Paulo

Em 1º setembro de 1977, o jornalista Lourenço Diaféria irritou a ditadura militar com sua coluna na Folha de S.Paulo. O cronista iniciava o texto “Herói. Morto. Nós” elogiando um sargento que morrera depois de salvar um garoto que havia caído em um poço de ariranhas no zoológico de Brasília.

Mais adiante, vinha o trecho que, ao que tudo indica, incomodou os quartéis. “Prefiro esse sargento herói ao Duque de Caxias”, escreveu Diaféria. “O Duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua”, acrescentou, em referência ao monumento do patrono do Exército na praça Princesa Isabel, perto da sede da Folha de S.Paulo, no centro de São Paulo.

“O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal”, concluiu o cronista.

Duas semanas depois, o jornalista foi detido em sua casa e levado para um prédio da Polícia Federal, em Higienópolis. Ficou uma semana na prisão.

Geisa, viúva de Diaféria, lembra que o cronista estava triste e inconformado quando voltou para casa. “[Os militares] não entenderam a crônica”, ele disse a ela.

Indignados, os amigos da Redação se mobilizaram para promover um ato em solidariedade ao jornalista. Reunidos no bar do Mané, ao lado da Folha de S.Paulo, decidiram fazer aquilo que chamaram de “passeata travestida de bloco”.

Algumas semanas depois, cerca de 50 jornalistas saíram pelas ruas do centro para homenagear o cronista. Partiram justamente da praça Princesa Isabel e seguiram pela avenida Rio Branco. Seis quadras depois, viraram à direita na avenida Ipiranga e caminharam até o bar Redondo (onde há hoje uma agência bancária), em frente ao Teatro de Arena.

Com aquele ato, nascia o grupo Nóis Sofre, mas Nóis Goza -não confunda com o bloco de Recife com o mesmo nome. Eles foram às ruas para unir protesto e música pelo menos mais duas vezes, mas dali em diante os colegas tomaram rumos diferentes e o grupo deixou de existir.

Boa parte daqueles amigos volta a se reunir para lembrar Diaféria, que morreu em 2008, aos 75 anos. E mais uma vez em meio à folia.

Na segunda (20), eles promovem o que batizaram de Auê de Carnaval na praça Vladimir Herzog, no centro de São Paulo. Das 17h às 19h30, haverá marchinhas, sambas e frevos interpretados pela tradicional Banda Operária da Lapa. O evento continua em seguida com outras atrações.

Não é um bloco, diz Jorge Araújo, fotógrafo que trabalhou na Folha de S.Paulo por mais de 40 anos. “A banda não vai sair com um bando de velhinhos”, diz ele, um dos organizadores, em tom bem-humorado.

O Auê terá 15 estandartes que estão sendo preparados pelo artista plástico e jornalista Enio Squeff. “Nunca fui muito de Carnaval, mas me dei conta neste ano de que a maior festa popular do nosso calendário coincide com o nosso retorno à democracia”, diz Squeff, que também atuou no jornal naquele período.

A organização vista agora contrasta com o nascimento um tanto improvisado do Nóis Sofre. “O som vinha numa Kombi, era um trio elétrico de pobre”, conta o jornalista Oswaldo Luiz Colibri Vitta sobre a primeira saída do grupo.

Segundo Colibri, a música que acompanhou a homenagem a Diaféria foi a então recém-lançada “Plataforma”, de João Bosco e Aldir Blanc (“Não põe corda no meu bloco / Nem vem com teu carro-chefe / Não dá ordem ao pessoal / Não traz lema nem divisa”).

“Diaféria foi o maior cronista da imprensa paulista e não existe nenhum lugar público em São Paulo, uma praça ou uma rua, com o nome dele. Não queremos que seja esquecido”, diz o jornalista Sérgio Gomes, também criador do Nóis Sofre.

Ele se recorda de que o trajeto no centro paulistano feito pelos jornalistas, quando visto de cima, formava um L. “Era o L de Lourenço e de liberdade.”

Abaixo, os estandartes criados pelo Enio Squeff