Cannes, o Homem Cordial e o Bem Amado


19/05/2023


Um fim de semana com Almodóvar, Iberê Carvalho e Dias Gomes, nas informações de Rodrigo Fonseca e nas críticas de Miriam Gontijo e Pablo Spinelli

Extraña Forma de Vida (Strange way of life)
Por Rodrigo Fonseca*, direto de Cannes

Presidente do júri de Cannes em 2017 e prêmio de Melhor Direção em 1999 por “Tudo Sobre Minha Mãe”, o mestre espanhol do melodrama Pedro Almodóvar voltou à Croisette na quarta-feira, dia 17, para a projeção hors-concours do faroeste queer “Extraña Forma de Vida”, Strange way of life.

“Extraña Forma de Vida”/ Strange way of life é o segundo curta metragem em língua inglesa dirigido por Almodóvar desde a pandemia, depois de “A Voz Humana”, com Tilda Swinton. O western LGBTQIA+ reúne Pedro Pascal (o Mandaloriano) e Ethan Hawke numa história de amor no Velho Oeste, entre um rancheiro e um xerife que se reencontram após um longo hiato, escondendo segredos do passado. Há quem espere um novo “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005), filme que chegou a ser oferecido a Almodóvar antes de ir para Ang Lee e ganhar o Leão de Ouro, além do Oscar de Direção.

“Meu amigo Caetano Veloso define o cinema que eu faço como ‘almodrama’. Mas acho que desde os tempos em que ouvia Julio Iglesias, descobri o lado mais excessivo em mim”, disse Almodóvar à ABI, quando exibiu “Dor e Glória” (2019) na Croisette.

Iniciado na terça-feira, dia 16, com a projeção do folhetim “Jeanne du Barry”, de Maïwenn, o Festival de Cannes segue até o dia 27, quando o júri presidido pelo diretor sueco Ruben Östlund anuncia quem leva a Palma de Ouro. Östlund foi o ganhador da Palma de 2022, com “Triângulo da Tristeza”.

A participação do cinema brasileiro voltou a ter apoio do governo por meio do Instituto Guimarães Rosa do Ministério das Relações Exteriores. A retomada do apoio ao setor é uma iniciativa coletiva que inclui, além do Itamaraty, o Ministério da Cultura, a Agência Nacional do Cinema- Ancine, e a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos- Apex Brasil, junto com entidades como o Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo-SIAESP, a Rio Filme, a Spcine e o Projeto Paradiso. O apoio concedido pelo Instituto Guimarães Rosa, em coordenação com a embaixada do Brasil em Paris, viabiliza a participação no Festival de Cannes de representantes do grupo +Mulheres Lideranças do Audiovisual Brasileiro e do Instituto Nicho 54, que atua no fomento às carreiras de profissionais negras e negros do audiovisual no Brasil. A iniciativa do Itamaraty permite , ainda, a participação de representantes dos seguintes filmes selecionados pelo festival: “Nelson Pereira dos Santos – Vida de Cinema”, de Aída Marques e Ivelise Ferreira (sessão Cannes Classics); “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho (Seleção Oficial / Sessão Especial); “Os Delinquentes”, de Rodrigo Moreno (Mostra Un Certain Regard); “Crowrã (The Buriti Flower)”, de João Salaviza e Renée Nader Messora (Mostra Un Certain Regard); “Escrito em Ossos”, de Tainá Muhringer (Cannes Docs – Marché du Film); “O Filho da Puta”, coprodução brasileira da Otto Desenhos Animados (Dia da Animação – Marché du Film) e “Levante”, de Lillah Hallah (Semaine de la Critique), além do compositor Pedro Salles Santiago, selecionado no programa Spot The Composer (Marché du Film), dedicado à composição de trilhas sonoras.

Esta edição do Festival de Cannes representa a retomada completa do evento que reúne mais de 15 mil profissionais da indústria cinematográfica de mais de 120 países, além de autoridades do setor audiovisual e de órgãos governamentais, fundos oficiais de fomento, comissões fílmicas, associações, representantes de festivais de cinema, instituições culturais e acadêmicas, entre outros.

(*) crítico de cinema e ancora do programa ABI Cineclube Macunaíma

O homem cordial
Por Miriam Gontijo de Moraes*

Revisitando Sergio Buarque de Holanda no formato cinematográfico,” O homem cordial de Iberê Carvalho junto com A Semana de Arte Moderna de 1922 e o Movimento Regionalista de Pernambuco, é mais um dos marcos interpretativos da estética e da análise sociológica sobre o que vem a ser o Brasil. Em sintonia com as ideias do período (décadas de 1920 e 1930), “Raízes do Brasil”, do paulista Sérgio Buarque de Holanda, desenvolveu o fundamental conceito de “homem cordial”. Publicado em 1936 pela editora José Olympio, se destacou por ser uma obra que investiga o que fundamenta a história do Brasil, de seu povo e de suas instituições, como a família patriarcal, formada durante o período da Colônia.

O conceito de homem cordial é também uma categoria analítica para explicar o processo civilizatório brasileiro. Foi extraído de uma carta do escritor paulista Ribeiro Couto endereçada ao também escritor mexicano Alfonso Reyes sendo que a expressão não indica apenas bons modos e gentileza, mas como quis destacar o sociólogo, o sentido do radical latino “cordis” é relativo a coração. Essa abordagem etimológica da palavra destacada pelo autor se fez necessária para ressaltar a sua dubiedade e, a um só tempo, a sua adequação àquilo que caracteriza, segundo sua tese, o temperamento do homem brasileiro. O “homem cordial” é, portanto, um artifício, um ardil psicológico e comportamental, inerente a nossa formação enquanto povo, uma necessidade de apropriação afetiva do outro que se evidencia por exemplo em palavras como “senhorzinho” (“sinhozinho”), revelando a vontade de aproximar o que é distante.

Esse homem cordial que, segundo Sergio Buarque, precisa expandir o seu ser na vida social, precisa estender-se na coletividade – não suporta o peso da individualidade, precisa “viver nos outros”, é apresentado no novo filme do diretor Iberê Carvalho, na figura de Aurélio , um cantor de uma banda de rock paulistana, protagonizado pelo roqueiro Paulo Miklos, uma celebridade que toma partido em defesa do menino mestiço Mateus (Felipe Kenji) acusado de roubar um celular, em um contexto no qual os vestígios do colonialismo permanecem neste Brasil racista e de enorme desigualdade social.

O menino Mateus se vê perdido na grande São Paulo depois de fazer uma entrega de uma encomenda sem receber o dinheiro que garantiria a sua volta à periferia. Com um argumento baseado nessa categoria sociológica, mas que se pretende anacrônico, a trama de ‘O homem cordial’ resgata esse passado colonial em um contexto de um Brasil do século 21, na maior cidade da América Latina, São Paulo, cenário de um embate ideológico entre grupos de extrema-direita e brigadas da periferia, armados de câmeras de celular, que disputam tanto o territorial como o virtual.
O cantor de rock, que enfrenta hostilidade do público após um incidente envolvendo um policial morto e um menino desaparecido, se vê diante do risco de cancelamento, e resolve descobrir que fim levou o menino, embarcando numa jornada rumo à periferia, que também vai lhe mostrar o significado do privilégio branco.

As contradições brasileiras e do tempo presente são expostas nos 83 minutos de filme, que se desenrola numa longa noite filmada de modo contínuo, que é um mergulho em uma realidade hostil e desumana, na qual o indivíduo em situação de vulnerabilidade expõe as contradições do sistema capitalista, que se alimenta de um exército de reserva, destituído das condições de cidadania. A cena que mostra o menino de periferia que se envolve na situação motor do enredo, é sem dúvida a mais violenta do filme: depois de tocar o interfone e abrir o primeiro portão, ele fica em um cercadinho para fazer a entrega da encomenda. É recebido em uma condição de exclusão e humilhação, condição essa que é “naturalizada” na vida cotidiana, presente nos aparatos de segurança das habitações nas grandes cidades, e que evidenciam a luta de classes.

O filme conta ainda com o rapper Thaíde, no papel de Béstia, o DJ Theo Werneck (“Que Horas Ela Volta?”), ao lado de atores do cinema independente nacional – Dandara de Morais (“Ventos de Agosto”), Thalles Cabral (“Yonlu”), Fernanda Rocha (“O Último Cine Drive-in”) e Thaia Perez (“Aquarius”).

O roteiro foi escrito numa parceria do diretor Iberê Carvalho e do cineasta uruguaio Pablo Stoll, realizador de filmes como Whisky e Hiroshima. Paulo Miklos venceu o troféu de Melhor Ator no Festival de Gramado com este filme. Destaque também para a sensibilidade de Nina Galanternick na montagem e de Pablo Baião, na fotografia. Na produção, Rodrigo Sarti Werthein, Maíra Carvalho e Rune Tavares. O filme foi rodado em 2019 e lançado agora nos cinemas, em um momento que o país discute a questão das Fake News, também presente na temática do filme.

(*) Jornalista associada da ABI, cientista da informação, professora da Universidade Federal do Estado de Rio de Janeiro (UNIRIO), cinéfila e autora do projeto Glossário Decolonial de Macaunaíma

O Bem-amado e o museu de grandes novidades
Por Pablo Spinelli*

(Dedicado ao 8 de maio, dia da Vitória dos Aliados contra o nazifascismo)

Entre o século passado e o atual foi feito um esforço acadêmico e político em dissolver qualquer possibilidade de síntese (ou “grande narrativa”) em defesa dos interesses atomizados. O que começou na academia sob influência do pensamento de 1968 vicejou pela classe média, pela cultura e chegou à massa popular e às elites econômicas. O bug do milênio (a “loira do banheiro” e a “baleia azul” de 1999) foram o desemprego estrutural, o aumento do neopentecostalismo com um “cristianismo de resultados”, o poder associativo dos anos 1970-80 como associação de moradores e grêmios estudantis diluindo-se nos “eus soberanos”. Não há, como escreveu o historiador Ciro Cardoso a “História” com maiúscula, mas as “histórias de”. O fragmento, a valorização da diferença, o divisionismo, a perspectiva de controle de fatias do mercado pela quantidade de melanina ou pelo uso do pronome, programas que demonizavam a política, o discurso da meritocracia e do empreendedorismo criaram, numa satânica combinação, uma montanha que pariu o capitão rato.

Caso tenha chegado até aqui, bravx leitorx, o tema são os 50 anos da estreia da novela “O Bem-Amado” , na Rede Globo, no horário das 22 horas, o que seria o equivalente à 1h da manhã nos padrões de hoje, e atualmente, disponível no Globoplay. Uma novela que só poderia ir ao ar a partir dessa hora para não sofrer com a censura mais do que já era previsto. O seu autor, o baiano Dias Gomes, readapta sua peça teatral para o meio da comunicação de massa em 1973. Um comunista trabalhando na maior emissora de comunicação do país. O Bem-Amado foi a primeira novela em cores do país. E foi uma das mais perfeitas sínteses do Brasil no século passado.

O prefeito Odorico Paraguassu (interpretação imortal de Paulo Gracindo) da fictícia cidade de Sucupira estava obcecado em fazer algo vistoso em seu mandato. A sua iniciativa empreendedora foi criar um cemitério municipal. Porém, por motivos da Fortuna, ninguém na cidade morria. Dias Gomes, em pleno Governo da Ditadura Militar, usou e abusou do termo que a literatura de Jorge Amado e a sociologia de Vítor Nunes Leal consagraram sobre as práticas políticas do mundo agrário: o coronel. Ao mesmo tempo, estreando como ator na Globo, Lima Duarte viveu de forma tão imortal o pistoleiro arrependido Zeca Diabo, cuja alcunha era como a do cangaceiro Lampião: capitão. Pronto. Coronel e Capitão eram usados em associação com autoritarismo, corrupção, imoralidade, lascívia, assassinato. Demorou, mas a censura percebeu e mandou parar com os termos.

A trama apresenta o famoso trio das “Irmãs Cajazeiras” – mulheres de profunda religiosidade e defensoras da moralidade e da virtude que não conseguiam sucumbir ao licor de jenipapo e, sem saber, faziam um vanguardista poliamor com o Prefeito viúvo, a ponto de uma delas engravidar do coronel e a responsabilidade recair em um gago com orientação sexual fluída 50 anos antes de Fred Nicácio do BBB 23, o subserviente Dirceu Borboleta (Emiliano Queiróz, magistral), que será responsável por um crime passional similar ao que apareceu em Gabriela, de Jorge Amado. Era a crítica ao patriarcado feito por um homem.

Há que se destacar o casal vivido por Milton Gonçalves e Ruth de Souza, pioneiros da presença negra na teledramaturgia nacional. O Zelão das Asas de Milton era o homem simples, pescador, que tinha que voar para pagar uma promessa – o voo era a metáfora para a liberdade, para a democracia – e a Chiquinha do Parto representava a sabedoria feminina tradicional, quem acudia o depressivo e revoltado Dr. Juarez Leão, (Jardel Filho) o único que afrontava cinicamente o poder.

Não menos importante é a oposição. O dentista Lulu Gouveia (Lutero Luiz) era o vereador da oposição a Odorico. Bom no discurso, na defesa da ética, seu perfil era apoiado pelo idealista intelectual periférico Neca Pedreira (Carlos Eduardo Dolabella), jornalista responsável pelo jornal da cidade. A família que se opunha aos Paraguassu-Cajazeiras, os Medrados, também eram da oposição ao Prefeito. Destaca-se a mulher da casa que fazia o papel de delegada no lugar do marido, Donana (Zilka Salaberry). Eis a questão: no que há de diverso entre patriarcado e matriarcado?

Dentre os vocabulários únicos criados para o Odorico, a novela apresentava a exploração da mão de obra de pescadores num sistema de cooperativa sem CLT organizado pelo vil Jairo Portela (Gracindo Jr.). Além do coronelismo, esse ponto, pouco explorado pelos historiadores da cultura do período é importante ser lembrado em tempos de uberização e sem revogação da reforma trabalhista. Tirando os maneirismos e gírias da época, quais as grandes diferenças entre os jovens Telma (Sandra Bréa) e Cecéu (João Paulo Adour) e os de hoje? A Igreja, na figura do Vigário (que não tem nome), tenta equilibrar os antagonismos da cidade. Profeticamente, Dias Gomes coloca um triste vaticínio para a massa popular: todos virarem o Nezinho do Jegue (Wilson Aguiar) que, quando sóbrio gritava Viva Odorico! e, quando embriagado, Abaixo Odorico!

O Bem-amado é uma referência da cultura nacional-popular que atua como o anjo da história. Onde vemos uma cadeia de acontecimentos, o anjo vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de individualismo pautado nos interesses. Parece revolução, mas é só neoliberalismo.

(*) Professor de História e mestre em Ciências Sociais pela UFRRJ