A SAGA DA Petrobrás, DA REVOLUÇÃO DE 30 AOS DIAS DO PRÉ-SAL – Capítulo 5


19/11/2019


Cap. 5

UMA REFORMA  AGRÁRIA

NOS LATIFÚNDIOS SUBTERRÂNEOS

 

O decreto de 11 de abril, o primeiro da legislação petrolífera de 1938, repetia a norma constitucional e entrava – da mesma forma que o Código de Minas de 1934 – nos casos particulares que ela pudesse atingir. O Código de Minas anulara as enormes e irrefletidas concessões de terras possivelmente petrolíferas de antes de 1930. O decreto de 11 de abril de 1938 fazia a mesma coisa, mas com maior competência jurídica, ao dizer – e aqui temos de traduzir o rigor da linguagem legal para a clareza da linguagem leiga – que a lei não reconhecia o domínio de particulares, isto é, a propriedade privada, sobre jazidas de petróleo e gases naturais, pelo fato de não ter sido descoberta nenhuma jazida suscetível de utilização industrial ao longo de todo o período que se estendia até a decretação do Código de Minas, em julho de 1934.

Antes do Código de Minas, o proprietário da superfície era considerado proprietário também das riquezas do subsolo. Um parágrafo desse decreto acrescentava ficarem “de nenhum efeito os manifestos e registros de jazidas de petróleo e gases naturais que porventura hajam sido efetuados com fraude da lei”.

O decreto de 1938 desapropriava sem indenização todos os latifúndios subterrâneos que os grandes grupos multinacionais da indústria petrolífera vinham acumulando – acumulação realizada, mais frequentemente, por meio de concessões como aquelas do Amazonas de antes de 1930. Mas também consumada   por meio de acordos sacramentados por escrituras entre os proprietários da superfície e empresas petrolíferas interessadas apenas no subsolo e seus recursos minerais.

O decreto de 11 de abril de 1938 devia seu texto final, assim com os demais desse ano sobre a questão do petróleo, ao talento jurídico e político do então Ministro da Justiça Francisco Campos. Conhecido já nessa época, no irresistível humor dos mineiros, como “Chico Ciência”, hoje só nos lembramos de Francisco Campos no papel de autor da Constituição autoritária de 1937 (e do que ela tinha de pior) e de autor também, quase trinta anos depois, do primeiro Ato Institucional do ciclo de governos militares iniciado em 1964 pelo golpe contra o Presidente João Goulart.

É preciso, porém, deixar registrado o que o Brasil, apesar de tudo, deve ao Ministro Francisco Campos pela competência dos decretos de 1938 sobre petróleo. E deixar registrado, também, que em 1926, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, foi ele o relator de um parecer sobre as concessões de minério de ferro à Itabira Iron, parecer que propunha a anulação dessas concessões e foi aprovado com o voto do então deputado Getúlio Vargas. Esse parecer deu início à luta pela derrubada de tais concessões a esse grupo de poderosos aventureiros internacionais e pela construção da indústria siderúrgica no Brasil.

O decreto de 11 de abril liquidava antecipadamente qualquer alegação de direito adquirido que viesse a ser apresentada contra as suas disposições.  Assim, eram tornados nulos os contratos assinados entre os Grupos Shell e Standard Oil e vários proprietários de terras nas áreas de São Paulo e Paraná. Como diria o General Horta Barbosa, o objetivo da Standard Oil e da Shell era, “à sombra de nossa legislação anterior ao Código de Minas, apossar-se das terras supostamente petrolíferas, impedindo, de fato, toda e qualquer possibilidade de pesquisa.”

Mal os escritórios de advocacia e consultoria contratados pelos grandes grupos multinacionais começavam a situar-se diante dessas anulações, mais amplas que a mais atrevida reforma agrária, e Getúlio, no dia 29 de abril, assinou o decreto (nº. 395) que nacionalizava também a indústria do refino de petróleo.

Até então, as medidas de defesa do petróleo brasileiro poderiam ser consideradas reações poéticas do governo da Revolução de 30 e do governo constitucional de 1934: anular concessões anteriores, concentrar no governo federal o poder de deferir novas concessões, separar a propriedade da superfície da propriedade do subsolo – tudo isso poderia ser contornado pelo poder maior, o poder econômico de quem controla o refino do petróleo e, controlando o refino, controlará todo o mercado.

Agora, porém, com o decreto de 29 de abril, o governo brasileiro intervinha também na fração mais rica da indústria petrolífera – a refinação. Até então, qualquer empresa poderia construir e operar refinarias de petróleo no Brasil. Nenhuma se interessara por isso, embora, vizinhos do Brasil, a Argentina tivesse montado o parque de refino que lhe economizava e já dava tanto dinheiro e o Uruguai refinasse mais de metade de seu consumo de petróleo.

Agora, por esse decreto, só poderiam operar refinarias de capital social constituído exclusivamente por brasileiros natos, titulares de ações nominativas. Além disso, a direção e a gerência das empresas refinadoras teriam de ser confiadas exclusivamente a brasileiros natos. O decreto, refletindo as conclusões e preocupações dos generais Horta Barbosa e Ibá Jobim Meirelles, era ainda mais rigoroso que o de 11 de abril, que não exigia brasileiros natos nem como acionistas nem como diretores e gerentes das empresas. E concentrava no governo federal a competência exclusiva de autorizar a instalação de qualquer refinaria ou depósito, assim como de limitar a capacidade de produção e a natureza e qualidade dos produtos refinados. E declarava de competência exclusiva do governo federal o poder de autorizar, regular e controlar a importação, a exportação e o transporte de petróleo e seus derivados – aí incluídos a construção de oleodutos e a distribuição e o comércio do petróleo.

(Não por acaso a permissão para refinarias sob controle estrangeiro foi a primeira decisão do governo provisório do Ministro José Linhares em seguida ao golpe de 29 de outubro, que derrubou Getúlio em 1945. Mas em 1953 a lei da Petrobrás corrigiu isso.)

Embora nada fosse estatizado ou monopolizado, esse decreto de 1938 submetia o conjunto da indústria e do comércio de petróleo e seus derivados à jurisdição do governo federal – o que não era novidade nem extravagância, porque todos os países, sabendo-se às vésperas de uma guerra mundial de escala sem precedentes, tratavam de proteger-se com medidas semelhantes.

Dois setores altamente lucrativos mas não estratégicos do ciclo da economia petrolífera, também sujeitos ao controle do governo federal, foram deixados, na prática, em poder das multinacionais – a distribuição e o varejo. Com isso ficavam amaciadas as resistências desses grupos, que, de fato, preferiram os lucros imediatos da nova situação aos riscos da resistência e da luta pelo domínio do refino e, em seguida, da extração do petróleo bruto.

Também pelo decreto de 29 de abril foi criado o Conselho Nacional do Petróleo, mas este só passou a ter existência e poderes efetivos por outro decreto, de julho (nº 538), que lhe dava poderes para opinar sobre a conveniência da outorga de autorização de pesquisa e concessões de lavra de jazidas de petróleo, gases naturais, rochas betuminosas e pirobetuminosas.

Em geral, o conjunto de decretos de 1938 sobre o petróleo é tratado como se tivesse havido apenas um, o de criação do Conselho Nacional do Petróleo, CNP, sendo tudo mais consequência disso. É claro que, no início, o CNP parecia ser mais importante que os atos de nacionalização das reservas petrolíferas do país. O CNP foi o órgão capaz de fazer valer tudo o que tinha sido disposto nos decretos anteriores. O CNP foi o antecessor da Petrobrás e, mesmo depois do surgimento desta, desempenhou ainda por muitos anos um papel normativo de enorme importância.

(No arrastão neoliberal da década de 1990, o CNP foi substituído por uma chamada Agência Nacional de Petróleo, ANP. A tarefa da ANP não era defender os interesses nacionais na questão do petróleo, mas conceder a grupos privados, pouco importando se estrangeiros, áreas nas quais a Petrobrás tinha verificado a existência ou a possibilidade de boas e lucrativas quantidades de petróleo. Outro objetivo da substituição do CNP pela a ANP não foi percebido imediatamente: o Conselho tinha representantes de vários ministérios, inclusive os militares, a ANP não tem. Se o Conselho continuasse a existir, os representantes das Forças Armadas votariam contra as tentativas de tratar o petróleo como simples commodity e não como recurso estratégico e contra a concessão de áreas descobertas pela Petrobrás, como as do Pré Sal, a grupos estrangeiros.)

Um terceiro decreto, de dezembro de 1938, declarava depender do governo federal a autorização para o funcionamento de empresas destinadas ao aproveitamento de recursos minerais: só seriam autorizadas empresas constituídas exclusivamente de acionistas brasileiros. Esse decreto referia-se a recursos minerais em geral – o petróleo e os outros. Porque a luta não era apenas pelo petróleo. Era também, e prioritariamente nesse momento, pelo ferro e pelo aço.

Com base nos decretos de abril, foi nomeado presidente do Conselho Nacional do Petróleo o general Horta Barbosa, que definira e defendera, como prioridade de um projeto de indústria petrolífera, a montagem de um parque de refino, modelo adotado nos decretos de 1938. O Conselho era constituído de representantes dos Ministérios da Guerra, Marinha, Agricultura e Viação e Obras Públicas e de organizações representativas da indústria e do comércio.