Os 50 anos do primeiro título mundial (I)


13/06/2008


Dois mil e oito é o ano do cinqüentenário do primeiro título mundial conquistado pelo futebol brasileiro, na Suécia. Precisamente no dia 29 de junho de 1958, em Solna, o Brasil tornou-se campeão do mundo, invicto. Não poderiam ser mais gratas as lembranças da epopéia vivida pela seleção dirigida por Vicente Feola. Os gols de Vavá, Zagalo e Pelé, as diabruras de Garrincha derrubando os “joões” soviéticos, galeses, franceses e suecos, o elegante malabarismo de Didi, a muralha humana formada por Gilmar, De Sordi, Djalma Santos, Belini, Orlando e Nilton Santos ficaram na memória e na gratidão imorredoura dos aproximadamente 60 milhões de brasileiros que torciam em todo o País, acompanhando o relato emocionante pelo rádio dos locutores esportivos.

Nosso selecionado se despediu da torcida brasileira, vencendo a Bulgária em dois amistosos por 4 a 0, no Maracanã, e 3 a 1, no Pacaembu, nos dias 14 e 18 de maio de 1958. Antes da estréia no mundial, o Brasil realizou dois jogos em gramados italianos. Contra a Fiorentina, em Florença, a seleção ganhou por 4 a 0. Garrincha deu verdadeiro show em seu marcador, o lateral esquerdo Segato. Ao marcar o quarto gol, aos 30 minutos do segundo tempo, driblou toda a defesa adversária, passou pelo goleiro, deu um corte desconcertante em Segato, que foi parar junto à trave, e entrou com a bola na meta de Sarti (seqüência ao lado). Na segunda partida, em Milão, o selecionado brasileiro enfrentou a Internazionale. Nova vitória por 4 a 0.

Os resultados diante dos times italianos reforçaram a confiança numa boa estréia contra a Áustria. Com gols de Mazzola aos 38 minutos de jogo, Nilton Santos aos 5 da fase final e Mazzola encerrando o placar aos 43, o Brasil venceu por 3 a 0. O lance do segundo gol brasileiro foi o ponto alto do jogo. Nilton arrancou pela esquerda, recebeu de Mazzola e, ao aproximar-se de Szanwald, deu um leve toque de pé direito, colocando a bola no fundo da rede austríaca.

Novamente em Gotemburgo, nossa seleção realizou sua segunda partida. O nervosismo do time brasileiro no início da partida e a grande atuação de MacDonald, goleiro inglês, resultaram no empate de 0 a 0 entre Brasil e Inglaterra. Mazzola tentou o gol em várias oportunidades, mas encontrou em MacDonald uma barreira intransponível.

O futebol brasileiro ainda não tinha apresentado ao mundo seus fabulosos astros Garrincha e Pelé. Em 2001, o recém-falecido Paulo Amaral — grande preparador físico e técnico, cuja carreira se alicerçou na competência e na dignidade — disse em entrevista que esperava uma oportunidade para explicar as ausências de Garrincha e Pelé nos dois primeiros jogos do Brasil: 

“Ouço dizer que, lá na Suécia, Didi, Nilton Santos e Gilmar foram ao Feola pedir a escalação do Pelé. Vamos aos fatos. O último jogo treino do Brasil, já com os 22 jogadores determinados para irem para a Suécia, via Itália, foi contra o Corinthians, no Pacaembu superlotado. Só torciam pela seleção brasileira os jogadores e a comissão técnica. Toda a torcida paulista, creio, incluindo a torcida do São Paulo e Palmeiras, torcia para o Corinthians, porque o Cabeção não foi convocado; o Roberto Belangero, meio-campo, foi cortado; o Luizinho, o famoso ‘Pequeno Polegar’, e o Baltazar, ‘Cabecinha de Ouro’, não foram convocados; e o Oreco passou a ser reserva do Nilton Santos. O Ari Clemente, lateral esquerdo do Corinthians, que, em 66, foi campeão carioca no Bangu, deu uma entrada violenta no Pelé e o tirou de campo, com um entorse muito sério no joelho.

        O toque de Mazzola contra a Áustria

Bem, embarcamos para a Europa e jogamos contra a Fiorentina e a Internazionale. Pelé, em tratamento, não jogou. Após o segundo jogo, o Brasil tinha que enviar a relação dos 22 jogadores entre os 44 inscritos. Houve uma reunião da comissão técnica, comandada pelo Dr. Paulo Machado de Carvalho, para fazer a seguinte pergunta ao Dr. Hilton Gosling: ‘Mandamos o Pelé de volta para o Brasil, mandando vir o Almir, ou o Pelé segue conosco?’ Aí, o Dr. Hilton respondeu: ‘No primeiro jogo o Pelé não joga com certeza e no segundo existe uma grande possibilidade de jogar.’ Então, a comissão técnica resolveu manter o Pelé. Ele não jogou contra a Áustria e a Inglaterra. O Dida entrou contra os austríacos e machucou o tornozelo. Como o Pelé ainda estava se recuperando, na partida contra a Inglaterra entrou o Vavá ao lado do Mazzola. No terceiro jogo, contra a URSS, Pelé, já recuperado, jogou.

Com relação ao Garrincha, ele deu um baile, contra a Internazionale, que acabou com a carreira do lateral esquerdo. Quando fui trabalhar na Itália, fiquei sabendo que ele tinha sido o melhor da posição na série B. O time dele subiu para a primeira divisão, ele foi contratado pela Fiorentina, e estreava naquela partida contra o Brasil. Nos jogos do campeonato italiano, as torcidas adversárias, quando ele pegava na bola, gritavam: Garrincha, Garrincha!

No dia do jogo contra a Áustria, a comissão técnica se reuniu na parte da manhã, para ouvir o Professor Ernesto Santos, olheiro do CBD, que assistiu a todos os jogos das seleções européias nas eliminatórias. Profundo conhecedor de futebol, começou a falar: ‘O time austríaco, se eu não soubesse que era um time europeu, ia pensar que fosse um time argentino. Ele jogou com a bola no chão, em triangulação, não dá chutão para frente; quando a defesa rouba a bola, o meio-campo avança com os atacantes e defende com toda a linha média. Os jogadores tais me chamaram a atenção.”

 MacDonald: uma barreira intransponível

O Dr. Paulo de Carvalho perguntou a mim e ao Dr. Hilton se os jogadores estavam aptos. Respondemos que apenas o Pelé não tinha condições de jogo. Na época, já se cometia um grande erro, dizendo para todo mundo que nós jogávamos no sistema 4-2-4. O Brasil nunca jogou no 4-2-4 com o Zagalo, que jogou sempre como terceiro homem de meio-campo, função que já cumpria no Flamengo, com o Freitas Solich.

O Feola tomou a palavra, dizendo que, pelo que ele tinha ouvido do Professor Ernesto, ia jogar no 4-4-2. Eu e o Dr. Hilton nos falamos com o olhar, porque nós tínhamos certeza que a linha seria Mané, Didi, Mazzola e Dida como atacantes e Zagalo fazendo o terceiro homem de meio-de-campo pela esquerda. Quem seria o quarto homem pela direita? Mané? Feola confirmou o time com Garrincha e aí eu levantei o dedo, perguntando quem seria o quarto homem de meio-campo. Ele respondeu: “Garrincha.” Pedi desculpas e disse ao Feola que o Garrincha nem sabia o que era quarto homem de meio-campo. Não havia condição de ele jogar com essa função. (…) Quando eu era técnico do Botafogo, falava para o Paulinho Valentim e o Quarentinha que, quando o Garrincha pegasse a bola, o Paulo fosse para a pequena área e o Quarentinha ficasse fora da grande área. Esperem o que ele vai fazer, porque o que ele vai fazer nós não sabemos.

Dr. Hilton concordou comigo e contou um caso que aconteceu nas eliminatórias. O Brasil ia jogar contra o Peru e o Brandão levou todo mundo para observar como jogar contra seus adversários diretos. No dia seguinte, reuniu os jogadores e perguntou a cada um como tinha visto seu adversário direto. Quando perguntou ao Garrincha, ele respondeu: ‘Ah, aquele louro.’ Aí, todo mundo caiu na gargalhada, porque o time peruano tinha dez jogadores negros e o louro era o meia-esquerda. O que chamou atenção dele foi o louro num time de negros. Garrincha não jogou contra a Áustria, sendo escalado o Joel.

Antes do jogo contra a Inglaterra, novamente o Professor Ernesto Santos falou sobre o nosso adversário, alertando para as bolas altas na área e que o Kevan, center-forward, que era muito alto, não iria jogar, para sorte nossa, porque estava machucado. O Professor Ernesto mostrou-se preocupado com o lateral esquerdo, que nos jogos por ele assistidos pôs os pontas adversários para fora de campo de uma maneira que nem falta o juiz marcava. Ele era mau. Acompanhava o ponta na linha de fundo, ficando um passo atrás, e com o pé direto pisava no calcanhar esquerdo do adversário, na corrida. Assim ele tirou três de campo.

Feola confirmou o Garrincha. Aí, quem falou foi o Dr. Hilton: ‘Feola, você quer o Garrincha para jogar contra a Inglaterra ou para o resto do campeonato? Pelo que disse o Professor Ernesto, não sabemos o que pode acontecer.’ Fui encarregado de dar ao Garrincha a notícia de que ele não ia jogar. Ele estava zangado, porque não jogou contra a Áustria. Eu o chamei e disse: ‘Mané, tem um problema desgraçado com você. Tem um tal de João inglês que só dá pontapé, pisa no tornozelo, machuca, e nós não vamos escalar você para servir de carniça. Você agüenta um pouco mais.’ Ele ficou chateado, falando que para não jogar era melhor voltar para Pau Grande. Conversei com o Didi e o Nilton Santos, fomos para o quarto acalmá-lo, e ele não jogou contra a Inglaterra.

Na preleção do Feola, o Joel recebeu ordem de, quando receber a bola, optar por uma dessas três jogadas: ‘Vavá se desloca para ponta-direta; Didi se aproxima de você; ou o Mazzola se projeta lá na frente. Não tente passar pelo lateral. O Didi sabe o que fazer, mudando o jogo para a esquerda.’ Joel jogou exatamente dessa maneira e não fizemos gols, porque o goleiro praticou verdadeiros milagres. Faltando oito minutos, o Joel resolveu driblar o lateral esquerdo. Caiu no chão com o tornozelo inchado. Entramos em campo eu, o Dr. Hilton e o Mário Américo. Tiramos a meia, a chuteira, o tornozelo dele foi enrolado com esparadrapo e ele voltou para fazer número em campo.”