Crime continuado contra o direito à informação


23/01/2007


Pedro Porfírio*

Antes de tudo, é preciso definir o papel dessa poderosa máquina eletrônica, diante da qual crianças e adolescentes passam mais tempo do que na escola. Se não considerarmos os efeitos do seu uso, para além da própria transmissão de informações — a que dedica em geral espaço mínimo — estaremos vivendo o mesmo cenário de quem “dorme com o inimigo”.

A televisão ainda é uma arma de alcance mortífero, capaz de influir no comportamento da sociedade. Portanto, todo e qualquer posicionamento corporativo patronal nos meios de comunicação expõe o desprezo pela responsabilidade social e institucional da programação de TV.

Nos países em que essas emissoras integram complexos de comunicação, sua força vai além do razoável, correndo o risco de forjar um poder paralelo semelhante ao das igrejas católicas no seu apogeu. Onde o poder econômico tem origem externa, esses complexos de comunicação transcendem os valores nacionais e assumem, sem limites, posturas direcionadas a atender tão somente a esses interesses.

Na Venezuela, mais do que em qualquer outro país, as redes privadas de televisão funcionam como ferramentas de uma aliança político-econômica, em que o governo do Presidente Hugo Chávez dá as cartas, manipulando os órgãos oficiais de controle, nomeando ministros e impondo decisões que beneficiam seus interesses.

É da Venezuela o grande magnata Gustavo Cisneros, descrito como o Murdoch deste lado do Equador, em artigo substancioso do jornalista Richard Gott no número 39 da New Left Review (maio-junho de 2006). Operando em praticamente todos os setores da economia, de supermercados à Directv, Cisneros é o dono das redes de maior audiência da Venezuela (Venevisión), da Colômbia (TV Caracol) e ainda da Chilevisión.

Sua fortuna de US$ 4 bilhões engordou nas quatro décadas mais corruptas da Venezuela, particularmente no período do Presidente Carlos Andrés Perez, destituído como ladrão em 1993, quando Cisneros nomeava o Ministro da Fazenda e o Presidente do Banco Central.

Foi ele quem, juntamente com as outras três redes privadas de televisão, monitorou e ofereceu combustível para a tentativa de golpe contra o Presidente Hugo Chávez, numa empreitada que envolveu as empresas petroleiras e gerou um caos com prejuízos superiores a US$ 6 bilhões.

A rigor, as quatro redes de TV foram peças físicas do golpe e, portanto, cometeram violações inaceitáveis num regime de direito. No documentário dos irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain, que estavam na Venezuela naquele abril de 2002, fica claro que os canais privados serviram como “diários oficiais”, através dos quais o “Presidente” do golpe, empresário Pedro Carmona, transmitiu seu decreto de fechamento do Congresso e do Poder Judiciário.

Foi tal o envolvimento que o jornalista Andrés Izarra, gerente de Produção do jornal da RCTV e com passagem pela CNN, pediu demissão do cargo em plena crise, alegando “dever de consciência profissional”. Ele não agüentou a própria transformação num agente de um complô que se valia da televisão para enganar o povo. Foi estabelecido um blecaute com a sabotagem no canal 8, a TV estatal, e a adoção de diretrizes que privavam o povo da informação.

“Nenhuma informação sobre Chávez, seus seguidores, seus ministros ou qualquer outra pessoa que de alguma forma possa ser relacionada a ele podia ser divulgada” — narrou Izarra. “Nós tínhamos um repórter em Miraflores e sabíamos que o Palácio havia sido reconquistado por chavistas, mas o blecaute de informações foi mantido. Foi quando decidi dar um basta e fui embora.”

Ainda sobre o envolvimento das redes de TV na violação constitucional, Naomi Klein escreveu em The Nation, dos EUA: “Nos dias que precederam o golpe de abril, a Venevisión, a RCTV, a Globovisión e a Televen trocaram a programação regular por insistentes discursos antichavistas, interrompidos apenas por comerciais convocando os telespectadores a ocupar as ruas.”

Os anúncios eram patrocinados pela indústria do petróleo, mas as emissoras colocavam no ar como se fossem “de interesse público”. E foram além. Na noite do golpe, a emissora de Cisneros serviu de lugar de reunião para os conspiradores, inclusive Carmona. O presidente do Conselho de Radiodifusão da Venezuela foi co-signatário do decreto que dissolveu a Assembléia Nacional, eleita democraticamente. E enquanto as emissoras celebravam abertamente a “renúncia” de Chávez, quando forças pró-Chávez se mobilizaram para trazê-lo de volta, houve um blecaute completo de notícias”.

Essas estações de TV fizeram até montagens sobre os conflitos que incitaram na Praça Altamira, numa insidiosa campanha que justificaria a cassação de todas elas, como hoje reclama Andrés Izarra: “Eu acho que as concessões deveriam ser revogadas.”

No entanto, o governo limitou-se a aplicar uma multa de US$ 3,1 milhões, que elas se recusaram a pagar. Diante do quadro em que se recusou a caça às bruxas e “perdoou” a maioria dos golpistas, Chávez veio tolerando as quatro emissoras, que não mudaram em matéria de envolvimento político-partidário e se associaram diretamente aos partidos de oposição no último pleito. Na campanha, exibiam propaganda terrorista, num desesperado esforço para derrotar Chávez nas urnas. E não foram nem um pouco democráticas na transmissão das informações.

Agora, vencem os 20 anos de prorrogação da concessão que a RCTV obteve em 1987 do Presidente Jaime Lushinsi, em troca da demissão do jornalista Luiz Herrera, chefe de Redação do El Nacional, do mesmo grupo, e que hoje vive em Miami.

Como disse o Ministro de Comunicações, William Lara, o governo venezuelano está apenas fazendo administrativamente o que lhe cabe legalmente, diante de um crime continuado contra o direito de informação. Esse caminho não tem contestação. Mas, a meu ver, já chega tarde, considerando o que me ocorreria, no Brasil ou em qualquer regime de direito, se eu tivesse feito o mesmo.

* Pedro Porfírio é colunista da Tribuna da Imprensa e autor de obras como o livro de memórias 
“Confissões de um inconformista” e o romance “O assassino das sextas-feiras”. Seus textos também estão disponíveis nos endereços
http://porfiriolivre.blogspot.com, www.pedroporfirio.com e www.palanquelivre.com