Quem foi que inventou o Brasil? a música conta a história do Império e do começo da República (1822-1906)


08/03/2023


Entrevista de Franklin Martins a Erika Werneck, conselheira da ABI

Fatos históricos são geralmente fonte de inspiração para compositores e letristas. Nesses casos, o compositor é também um glosador, já que procura retratar, espontaneamente, pela música, hábitos, costumes e tipos populares da sua época.  Mas não tem sido comum o uso da música como fonte de pesquisa histórica. Pelo menos, não é o que se tem visto no Brasil nos livros de História.

Uma exceção é o jornalista e escritor Franklin Martins. Ele foi pioneiro nessa área ao usar a música como fonte histórica e lança hoje, em São Paulo, o Volume Zero de Quem foi que inventou o Brasil? quarto livro da coleção que conta a história do Brasil pela música.

Nos três primeiros, o autor abordou a história da República, de 1902 a 2002. Agora, ele torna público o resultado de sua minuciosa pesquisa sobre como os fatos políticos do Império até o início da República (1822-1906) foram cantados por compositores, letristas, cantores e brasileiros de todos os cantos do País. As letras das músicas também estão no livro, assim como informações sobre a maneira pela qual cada uma situa historicamente os fatos, personagens e costumes políticos a que se refere. As canções podem ser ouvidas no site https://www.quemfoiqueinventouobrasil.com/.

Em entrevista à diretoria de Cultura, Franklin Martins falou sobre seu trabalho inédito de historiador que trata música como fonte histórica.

Como surgiu a ideia de produzir livros de história usando a música como fonte?

Em 2003, eu tinha um site chamado Conexão Política. Na época, a internet ainda não era badalada. Na seção Show na caixa, do site, havia trechos de discursos históricos e músicas que amigos me mandavam. Então passei a me interessar por essa conexão entre música e história, e acabou virando cachaça.

Durante uns 10 anos de pesquisa, fiquei impressionado com a quantidade de músicas sobre política. Para os três primeiros volumes, que abordam a República, eu reuni cerca de 1.300 músicas. Nós temos uma tradição muito forte no campo da música sobre política, que vem do carnaval e, antes disso, do teatro de revista. Muitos países têm uma produção de músicas de protesto, geralmente muito intensa em épocas de confronto: a França, por exemplo, no período da Revolução Francesa, a Itália, no período da Segunda Guerra Mundial, com os partigiani., a Espanha na Guerra Civil etc. Mas, quando o confronto passava, a produção musical sobre os fatos políticos tendia a ser deixada de lado.

No Brasil, não, a tradição brasileira é muito forte. A música faz a crônica dos fatos políticos o tempo todo, e não apenas nos períodos de confrontos políticos agudos. E tem também o seguinte: às vezes a música nem foi composta para ser de protesto, mas as circunstâncias acabam situando-a politicamente. Um exemplo é Carcará, que nunca foi uma canção política. Mas, na época, em 1964, o público entendeu assim.

Quando em 2015 eu publiquei, pela Nova Fronteira, os três volumes que cobrem o período da República, pensei: será que antes houve uma produção tão intensa de músicas de cunho político? Descobri que sim, mas havia um problema.

Qual?

A indústria fonográfica, no Brasil, data de 1902. E a maioria das músicas do império não foi gravada. Fui a 20 arquivos físicos, dois em Portugal e os demais, no Brasil. Além disso, com a internet, a pesquisa ficou mais fácil, porque pode muitas vezes ser feita à distância. A hemeroteca da Biblioteca Nacional também é extraordinária. Ela tem uma ferramenta de reconhecimento de caracteres que possibilita checar datas aproximadas de composição de canções, tirar dúvidas sobre autorias, recolher informações sobre fatos históricos, descobrir paródias e garimpar letras e indicações de músicas. Trata-se de uma base de dados de enorme importância para a pesquisa histórica. Recolhi quase 300 músicas sobre política, sendo que no caso de 50 não consegui suas partituras ou indicações de músicas, apenas letras.

Desse total, 102 já haviam sido gravadas – a maioria nos primórdios da indústria fonográficae muitas em depoimentos colhidos por folcloristas, pesquisadores e musicólogos. Um músico amigo meu, João Nabuco, decifrou antigas partituras e gravou cerca de 130 canções para o “Volume Zero”. Elas estavam perdidas no tempo. Jamais tinham sido objeto de qualquer registro fonográfico. Pesquisadores como Melo Morais Filho, Alexina de Magalhães Pinto, Júlia Britto Mendes, Aires da Mata Machado, Câmara Cascudo, Guilherme Melo, Silvio Romero, Rossini Tavares de Lima, Luciano Gallet, José Calasans,Edigar de Alencar, Guilherme Santos Neves, pesquisador e folclorista capixaba, Stanley Stein, acadêmico norte-americano, Vicente Salles, entre outros, também recolheram preciosidades. Tem até uma canção interpretada por Mário de Andrade.

Você acredita que a música é capaz de captar o espírito do tempo – Zeitgeist – da época em que foi composta e veiculada?

No Brasil, a música é o reflexo do tempo político e, às vezes, também o influenciacom críticas ou bajulações. Ela expressa o contexto daquele momento. Tínhamos, no Brasil, uma tradição oral. Eu brinco que, nesse sentido, faz todo sentido dizer que toda cidade brasileira deveria ter uma estátua de Napoleão, porque foi só com a vinda de D. João ao Brasil fugindo da invasão das tropas francesas em 1808 que o país passou a contar com gráficas, imprensa, faculdades. Tudo isso era proibido no Brasil até a chegada da Família Real. Mesmo com os avanços nas décadas seguintes, o país dependia da transmissão oral. O censo de 1872, o primeiro feito no Brasil com boa base técnica, revelou que só 19% da população brasileira era alfabetizada. Entre os escravizados, de cada mil, só um sabia ler e escrever. Tínhamos que recorrer à tradição oral, à música e aos cordéis, ao ritmo, à rima e à melodia. A maioria das canções do período do Império nasce nos circos, teatros, salões, senzalas­– poucas nos palácios.

Um exemplo de como a música era importante na política devido ao fato de que o Brasil era um país marcado pela transmissão oral é que logo após o Grito do Ipiranga, D.Pedro I compôs a música do Hino da Independência, com letra de Evaristo da Veiga, celebrando o novo país que surgia nas Américas. E pouco tempo depois, em 1826, José Bonifácio de Andrada e Silva escreveu a letra das Cantigas báquicas, uma paródia com críticas à falta de rumo do Primeiro Reinado. A música, ele pegou emprestada do Himno Del Riego, marcha militar espanhola contra o absolutismo.

No livro, há um capítulo importante à Guerra do Paraguai, com mais de 30 canções.  Depois do conflito, a monarquia passou a viver um processo de desgaste. Nos últimos anos, o sistema escravagista já estava desmoronando. Nos anos 1880, a campanha abolicionista ganhou corpo em todo o país, tornando-se o primeiro movimento de massa nacional de nossa história.  Assim, nada mais natural que os temas da atualidade – políticos, econômicos, sociais e comportamentais – entrassem na ordem do dia da cena musical e teatral.

Um personagem emblemático do cancioneiro sobre o escravismo, o preconceito e a resistência desse período é o Pai João, com seu protesto, sua resistência e crítica em forma de verso: “Eu quando estava na África comia galinha/Aqui como feijão com farinha”. Ou “Nosso preto quando fruta/ Vai pará na correção/ Sinhô branco quando fruta/ Logo sai sinhô barão”.

Recolhi, também, muitas músicas sobre Canudos, cantadas no sertão. As que foram cantadas no Rio, extremamente preconceituosas contra Antonio Conselheiros e seus seguidores, nunca foram gravadase não deixaram partituras.

Depois da trilogia sobre a República e do Volume Zero do Quem é que inventou o Brasil? está em seus planos escrever um Volume 5 sobre a atual conjuntura brasileira?

Não.

Sucesso para o seu livro

 O lançamento de Quem é que inventou o Brasil? a música conta a história do Império e do começo da República (1822-1906) Volume Zero, é às 19h, no Patuscada, rua Luis Murat, 40, Vila Madalena, SP, capital. Editora: Kotter Editorial

Sobre o autor

Franklin Martins é jornalista e escritor. Durante muitos anos foi um dos principais comentaristas políticos da imprensa brasileira, tendo trabalhado em alguns dos mais importantes veículos de comunicação do país: Jornal do Brasil, do qual foi correspondente em Londres, O Globo, O Estado de S. Paulo, Jornal de Brasília, revista Época, rádios CBN e Bandeirantes, SBT, TV Globo e TV Bandeirantes. De 2007 a 2010, durante o segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ocupou o cargo de ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Autor do livro Jornalismo Político, publicado em 2005, realizou, em 2012 e 2013, a série Presidentes Africanos, com 15 documentários, exibida em emissoras de TV de inúmeros países. Com esse trabalho ganhou o Prêmio de Melhor Documentário Jornalístico de Televisão da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) de 2013.
Durante a ditadura militar, foi um dos principais dirigentes do movimento estudantil brasileiro em 1968, tendo participado, ativamente, da luta pela redemocratização do país. Viveu cinco anos e meio na clandestinidade e cinco anos e meio no exílio. Durante esse período, editou vários jornais e revistas da resistência dentro e fora do país. É diplomado pela Escola Superior de Altos Estudos em Ciências Sociais da Universidade de Paris (1977).