Crime sem castigo: dois anos da tragédia de Brumadinho


03/02/2021


Vista área da área afetada pelo rompimento da barragem de rejeitos da mina córrego do Feijão

Dois anos da tragédia de Brumadinho

Crime sem castigo?

 Por Cristina Serra, conselheira e membro da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI

A maior tragédia humana associada à mineração no Brasil completou dois anos em 25 de janeiro de 2021 sem que haja previsão de quando os responsáveis serão punidos. O rompimento da barragem do Córrego do Feijão, da mineradora Vale, em Brumadinho (MG), matou 270 pessoas e dois nascituros e encheu de lama o rio Paraopeba, um dos formadores do São Francisco. O Corpo de Bombeiros prossegue nas buscas na tentativa de encontrar os corpos de 11 das 272 vítimas.

O desastre foi uma sequência do colapso de três barragens. Primeiro, houve o rompimento da barragem B-1 e a violência da lama deste primeiro derramamento derrubou outras duas barragens da empresa. A enxurrada de resíduos de mineração matou trabalhadores dentro do complexo e moradores de dois distritos rurais de Brumadinho: Córrego do Feijão e Parque da Cachoeira.

O desastre de Brumadinho também é considerado, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), o maior acidente trabalhista da história do Brasil já que a maioria dos mortos é de funcionários da Vale e de terceirizados. O rompimento aconteceu na hora do almoço e não deu a menor chance de fuga aos empregados que lotavam o refeitório naquele momento, o que explica as quase três centenas de vítimas. Tanto o refeitório quanto o escritório do complexo minerário e a sirene de emergência ficavam abaixo da barragem, o que dá bem a medida do descaso da empresa com a segurança dos trabalhadores e das povoações em volta. A sirene foi engolida pela lama antes que pudesse soar o alerta.

A investigação criminal do caso, conduzida pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e pela Polícia Civil, revelou que a empresa tinha conhecimento dos problemas da estrutura e não tomou as devidas providências. Estudos e consultorias maquiados, que validaram a declaração de estabilidade da barragem, mostram que a empresa tratou a segurança com negligência criminosa. Um gerente-executivo da Vale chegou a classificar internamente a estrutura como “tenebrosa”.

O MPMG acusou criminalmente 16 pessoas – funcionários da Vale e da consultoria alemã  Tuv Sud – pela prática de 270 crimes de homicídio duplamente qualificado, além das duas empresas, que também respondem por crimes ambientais. A ação penal segue no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A Tuv Sud, que assinou o laudo de estabilidade da barragem quatro meses antes do rompimento, também enfrenta uma ação judicial na Alemanha. A empresa afirma que não tem responsabilidade legal pelo rompimento.

O promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto, coordenador de Meio Ambiente do MPMG, não tem dúvidas de que a Vale sabia da falta de segurança da barragem. “Desde 2017, a empresa tinha ciência que a barragem estava em situação crítica para risco geotécnico. Em 2018, houve uma situação de emergência. O alto escalão da empresa tinha conhecimento e não tomou as cautelas necessárias”, afirma o promotor.

Enquanto esperam por justiça, as famílias das vítimas sofrem com um luto que parece não ter fim. “Não é um luto normal. A minha família foi exterminada. É uma dor profunda saber que essas mortes poderiam ter sido evitadas, que a Vale sabia dos riscos e não fez o que tinha que fazer. Esse meu luto não era para existir.”. É assim que Helena Taliberti, 63 anos, explica como tem sido viver desde que a avalanche de lama matou seus dois filhos, Camila, 33 e Luiz, 31, sua nora, Fernanda, 30, e o bebê que ela carregava no ventre e que se chamaria Lorenzo.

A família de Helena, de São Paulo, estava hospedada na pousada Nova Estância, vizinha da barragem, e que foi completamente destruída. Camila, Luiz e Fernanda tinham ido a Brumadinho para conhecer Inhotim, museu a céu aberto com um dos maiores acervos de arte contemporânea do país e que escapou da lama. Estavam acompanhados do pai, Adriano da Silva, 61, e da esposa dele, Maria de Lourdes Bueno, 58. Morreram todos.

Um dos trabalhadores que morreu no refeitório foi o eletricista Denilson Rodrigues, 49 anos, que trabalhava na Vale havia 17 anos. Naquele dia, Denilson tinha ido almoçar mais cedo porque teria um treinamento de segurança à tarde. Não houve tempo. Quem conta o infortúnio da troca de horário é sua filha, Marcela, 27 anos, inconformada com a irresponsabilidade da empresa em relação à segurança dos funcionários. “Eu nunca vou aceitar o fato de que o refeitório ficava abaixo da barragem. Era praticamente um galpão. Não iria custar tanto pra empresa construir outro refeitório e o escritório num lugar seguro. Por que não fizeram isso?”, questiona.

A ruptura das estruturas despejou 9,7 milhões de metros cúbicos de lama no rio Paraopeba, causando prejuízos e danos à saúde de ribeirinhos, indígenas, agricultores e outras comunidades da bacia hidrográfica. O estudo mais completo sobre a qualidade da água do Paraopeba foi feito pela Ong SOS Mata Atlântica, ao longo de 356 quilômetros, entre os municípios de Brumadinho e Felixlândia. O exame das amostras coletadas em janeiro de 2020 mostrou a contaminação da água por metais pesados, o que a torna totalmente imprópria para consumo humano, de animais e para irrigação de lavouras.

Em média, as concentrações de ferro estavam 15 vezes superiores ao nível máximo permitido pela legislação. O cobre estava em concentrações 44 vezes mais altas; o cromo e o manganês,14 vezes acima dos limites máximos permitidos. Já o sulfeto (que pode ser decorrente da drenagem ácida da mineração) foi encontrado em concentrações 211 vezes superiores ao limite máximo estabelecido em lei. “Esses metais pesados são reconhecidamente poluentes severos e podem causar diversos danos aos organismos, desde interferências no metabolismo e doenças até efeitos mutagênicos e morte”, afirma o relatório da SOS Mata Atlântica.

A bióloga Marta Ângela Marcondes, professora da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, participou da coleta e análise das amostras. Baseada no que viu no Paraopeba, ela tem dúvidas sobre a capacidade de regeneração do rio. “O rejeito ainda está lá. Isso muda completamente a dinâmica do rio. A perda de microbioma é incalculável. Morreram toneladas de peixes e moluscos, morreu a vegetação aquática, a mata ciliar. Uma das coisas mais impressionantes quando percorri o rio foi o silêncio. Não se ouve um inseto, uma ave. A lama é biocida, mata tudo. Quero acreditar que o rio será resiliente e terá capacidade de se reestruturar. Mas, realmente, ninguém pode afirmar que isso será possível”, avalia a pesquisadora.

O desastre de Brumadinho aconteceu três anos após outra grande calamidade da indústria da mineração no Brasil, o rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, também em Minas Gerais. A lama de Fundão matou 19 pessoas, destruiu três povoados e contaminou o rio Doce. O promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto esteve à frente das investigações do caso Samarco e afirma: “Mariana foi o começo de Brumadinho. Em 2015, eu afirmei que outros desastres viriam pela forma como as empresas atuam e sua relação com o poder político. Infelizmente, a previsão se confirmou”, lembra o promotor.