25/01/2007
Iraê Sassi*
Somente as pessoas absolutamente desinformadas têm dúvidas de que a Rádio Caracas Televisión (RCTV) tenha sido uma das peças fundamentais na conspiração que levou ao golpe de Estado contra o Presidente legalmente eleito, Hugo Chávez Frias, em 11 de abril de 2002, e na sucessiva promoção do locaute da companhia de petróleo estatal, a PDVSA, que desestabilizou perigosamente aquele país.
Algo parecido ocorreu no Brasil no decorrer de 2005 com a crise política eternizada pela própria mídia, como a do “mensalão”, e sucessivas minicrises, como a dos “sanguessugas” e outras, até chegar à campanha eleitoral de 2006 (da mídia) contra e (ou) a favor de certos candidatos. Ou existe alguém suficientemente ingênuo ou desinformado que ainda renda tributo à objetividade jornalística dos grandes meios de comunicação social neste País?
Os eleitores desmentiram a mídia, à sua maneira: no voto.
Os venezuelanos, para fazer o mesmo, tiveram que marchar em milhões e resgatar o seu Presidente das garras dos golpistas. O magnicídio foi evitado por pouco.
Nos dois casos, torna-se imprescindível uma discussão sobre o papel dos meios de comunicação de massa, nos seguintes aspectos:
— a estrutura da propriedade (oligopólios e políticos);
— a finalidade social, a qualidade, os conteúdos;
— o respeito à ética jornalística;
— a independência e a (suposta) objetividade;
— a (falta de) legislação e as outorgas;
— a presença (ou ausência) da cultura nacional;
— a necessidade de o país sair do obscurantismo político-cultural-informativo-educacional.
A Venezuela, assustada com a virulência do uso político da mídia, fez esta discussão e a conclusão foi a nova Ley de Responsabilidad Social en Radio y Televisión, conforme o espírito e a letra da sua Constituição. A sua leitura para nós, brasileiros, é obrigatória pelo seu viés social. Está disponível na internet.
O Brasil tem postergado o tema, carrega ainda a legislação da época da ditadura militar, não encontra consenso nem vontade política para aprovar uma nova lei geral da comunicação de massas. O governo atual, freqüente vítima da mídia, não se anima a colocar o problema na agenda. Resultado: a mídia faz a agenda, composta pela “reforma tributária”, a “reforma trabalhista” e a “reforma previdenciária”. A mãe de todas as reformas, ao contrário, deveria ser a reforma do sistema dos meios de comunicação de massa, principalmente por estarmos na era digital.
No vácuo da regulamentação, prevalece a força bruta dos oligopólios. Mas não se trata de quaisquer oligopólios, e sim daqueles que representam a vida ou a morte da democracia. E que, no caso venezuelano, atentaram gravemente contra a mesma.
Que esteja bem claro: o governo venezuelano não violou instrumento legal algum ao não renovar a concessão vencida; ao contrário, pretende disponibilizar a freqüência para um novo canal de interesse público, inclusive por meio de consulta popular. Ao contrário, a RCTV violou praticamente todos os dispositivos legais precedentes e posteriores à nova lei. Os leitores brasileiros estão desafiados ler, ver e ouvir o que diz a mídia privada venezuelana quanto ao governo vigente, para poder melhor opinar: em comparação, a TV Globo pareceria a “Voz do Brasil”.
O que se quebra aqui é um tabu, o da intocabilidade dos grandes meios. A verdade crua é que os oligopólios são a expressão de poderes econômicos fortes, que dominam por meio da mídia ao conjunto da sociedade. Apesar da resistência de alguns bons e bravos profissionais da imprensa, e de alguns meios alternativos, sem alcance de massa e privados de recursos, a parte do leão das verbas publicitárias públicas vai para a grande mídia, obrigado.
O Estado tem renunciado ao papel de controle e direcionamento do uso deste patrimônio público, o espectro das radiofreqüências, agora multiplicado pela tecnologia digital. A finalidade constitucional não se cumpre. A democracia fica mutilada. As portas para a conspiração, abertas. Tem alguém surpreso aí?
Portanto, fica o ato de coragem do Presidente Hugo Chávez: os meios de comunicação não podem conspirar contra os interesses do país, contra governos democraticamente eleitos, contra os valores mais nobres da sociedade, contra a cultura nacional. Que atire a primeira pedra quem fica tranqüilo em deixar os próprios filhos livres de assistir à TV no Brasil, e não só aquela a pagamento.
* Iraê Sassi é Diretor da TV Cidade Livre, canal comunitário
de Brasília, e comentarista da Rádio Paraná Educativa