Entrevista – Mario Pontes


12/01/2007


Lições de vida e ambientalismo

Claudio Carneiro
12/01/2007

                   Fotos Claudio Carneiro

A história de Mario Pontes dava para escrever um romance. Ele nasceu, há 74 anos, numa pequena cidade no Ceará chamada Nova Russas, e conta que houve um período na história recente do Brasil em que era necessário cautela quando tinha de dizer o nome daquela cidade: “Muita gente confundia Russas com Rússia”, lembra. 

Filho de um carpinteiro interessado em livros, aprendeu a ler nos jornais que o pai levava para casa. Os grandes assuntos da ocasião, a Guerra Civil Espanhola e, depois, a Segunda Guerra Mundial, despertaram nele o sonho do jornalismo. Ainda adolescente, quando se mudou de sua cidade para outra maior, onde havia uma daquelas pequenas porém selecionadas bibliotecas do Instituto Nacional do Livro, extinto no governo Collor, passou a ler dezenas de volumes por ano, o que também ajudou a introduzir a literatura em sua corrente sangüínea.

Nesta entrevista ao ABI Online, Mario — que, algumas vezes, de longe em longe, também pinta aquarelas relacionadas com seus contos — revela, entre outras coisas, que sua preocupação com as mudanças climáticas vêm de longe. No Caderno Especial do Jornal do Brasil publicou muitos textos sobre assuntos como o fracasso da chamada Revolução Verde, que destruiu muitas terras nos países pobres, graças aos seus experimentos de produção acelerada. Nos anos 90, seu livro de ficção “Andante com morte” (publicado pela Bertrand), continha uma pequena novela sobre sangrentas guerras entre pedestres e motoristas, que aconteceriam neste século XXI, o fim do petróleo e a elevação dos mares. O título da novela era “A nova rota da seda”. 

ABI OnlineAntes de mais nada, por que esse nome, Nova Russas?
Mario Pontes — No Leste do Ceará há uma cidade muita antiga chamada Russas, do tempo das guerras holandesas. E no Oeste, então, tem Nova Russas, quase na divisa com o Piauí, em pleno sertão, sertãozão daqueles. Nasci ali, em 32.

ABI OnlineSertão muito pobre…
Mario — Sim. Lá, o progresso era representado unicamente pela a estrada de ferro (hoje dedicada somente ao transporte de cargas) que nos assegurava o contato com o mundo. Aprendi a ler com meu pai. Ele gostava de ler os jornais que, três vezes na semana, o trem trazia de Fortaleza. Aprendi a ler, lendo as notícias das guerras. Em 38, já lia muito bem. Foi bom, porque muito cedo comecei a adquirir uma consciência da História e do que se passava ao redor. Durante muito tempo os jornais foram, praticamente, minha única fonte de leitura. A cidade não tinha biblioteca, não tinha livraria.

ABI OnlineVivia longe dos livros e da escola?
Mario — De fato. Mas em 39, um jovem intelectual do Crato — uma cidade antiga, aristocrática, situada no Sul do Ceará — foi parar em Nova Russas e criou ali um colégio que, segundo seu plano, ensinaria até o segundo grau. O nome dele era Pedro Teles. Ele havia estudado no célebre seminário de sua cidade, pelo qual passaram rebeldes de 1817, mas na última hora desistiu da batina. Um tio meu, que estava em situação bem melhor do que nós, ofereceu-se para pagar meus estudos. E foi assim por dois anos. Mas em 41 houve uma grande seca e meu tio disse que não poderia mais pagar o colégio. Como meu pai também não tinha dinheiro, eu ia ficar sem escola. A essa altura, Pedro Telles resolvera mudar-se para Fortaleza, e tinha trazido do Crato um rapaz que já havia concluído seus estudos pré-universitários. Alderico Damasceno e eu descobrimos imediatamente que havia várias pontes entre nós: eu, como já disse, era filho de um carpinteiro e ele, de um telegrafista de estrada de ferro. Naquele tempo havia uma forte associação entre o telégrafo e a ferrovia. Alderico foi à minha casa e disse a meu pai que por falta de dinheiro eu não deixaria de estudar. Em troca, sempre que pudesse, meu pai devia fazer umas carteiras para os alunos do colégio. 

ABI OnlineSão esses pequenos milagres que acontecem… 

Mario — Pois é. E foi assim que completei o primário. O Alderico revelou-se, pelo menos para mim, uma figura notável, um mestre e não um mero professor. Ele me ensinou o francês — que acabei de aprender, mais tarde, lendo os romances e as peças de Sartre — e um pouco de inglês. Ele me emprestava livros de sua estante. O primeiro foi um volume sobre Viriato, o herói português na luta contra os romanos. Depois, passou a me emprestar biografias de grandes filósofos. 

ABI OnlineA família toda se mudou para Crateús?
Mario — Lá, nossa situação financeira continuou precária. Meu pai era muito pobre e tive de ajudá-lo de alguma forma. Mas havia uma biblioteca maravilhosa, daquelas distribuídas, naquela época, pelo Instituto Nacional do Livro. Foram criadas pelo poeta gaúcho Augusto Meyer, que tinha vindo para o Rio de Janeiro, no fim do Governo Vargas, para dirigir a Biblioteca Nacional. O Instituto tinha um sistema de distribuição de livros e criação de bibliotecas no interior, numa época em que o livro era uma coisa muito rara. Foi uma das grandes iniciativas em favor da leitura neste País. Augusto Meyer deveria ter um monumento que o lembrasse por isso.

ABI OnlineEntão leu muito em Crateús?
Mario — Em pouco mais de quatro anos, li quase todos os 400 livros da biblioteca, começando por “O mandarim”, de Eça, e terminando por “Sagarana”, de Guimarães Rosa. Aquela biblioteca foi minha universidade. Os livros — de história, literatura brasileira e estrangeira — eram muito bem selecionados pelo INL. Um dia, voltando a Nova Russas, fui visitar o professor Alderico. Ele quis saber o que eu estava lendo. Citei vários títulos. Ele me perguntou: “Já leu ’Dom Quixote’?” Respondi que não. “Então venha cá.” Tirou da prateleira o livro de Miguel de Cervantes, e disse: “Sente aí. Leia o que puder. Depois procura ler o resto.” Logo depois, de volta a Crateús, aconteceu uma coisa importante: me tornei tipógrafo. Trabalhava com uma caixa de tipos móveis e um prelo manual.

ABI OnlineNessa caixa, os tipos não são distribuídos conforme uma ordem lógica.
Mario — De fato. Era uma “caixa” francesa, e nela a distribuição é mais ou menos a seguinte: no alto à esquerda as maiúsculas, à direita às letras acentuadas, embaixo as minúsculas. Nas caixas inglesa e alemã a distribuição é diferente. Graças a estes conhecimentos, pude ir para Fortaleza, onde trabalhei, primeiramente, na tipografia do jornal O Democrata. Seis meses depois, já estava no linotipo.

ABI OnlineOnde aspirou aqueles “saudáveis” gases de chumbo.
Mario — E onde levei um choque elétrico violento, quase morri. Logo depois me levaram para a redação e me tornei repórter. O Democrata circulava com seis páginas diárias. Era um pequeno jornal de esquerda e de oposição ao Governo do estado. De vez em quando, o Governador não gostava do que o jornal dizia e mandava empastelar as páginas já enramadas e dar umas cacetadas em que estivesse na redação e nas oficinas. Nesses dias o jornal não saía. Isso aconteceu várias vezes. Mas a editora tinha outros títulos registrados e, no dia seguinte, lá estava o jornal na banca, com outro nome. Meus começos foram por aí. 

ABI Online Um começo com choque elétrico e sopapos.
Mario — Cheguei a secretário de redação e fiquei naquele jornal de 49 a 56, o ano do levante dos húngaros contra a União Soviética. Em Fortaleza, fui para O Estado, que não existe mais; depois trabalhei em dois jornais dos Diários Associados — o matutino Unitário (fundado no século XIX por João Brígido, figura lendária e pioneira no jornalismo cearense, um homem de coragem que trabalhava com o bacamarte em cima da mesa) e no vespertino Correio do Ceará. Por ter passado pelos Diários Associados, também fiz um pouco de rádio, na Verdes Mares, sempre nos noticiários. Em 59 vim para o Rio. 

ABI OnlineAqui, estreou onde?
Mario — No Diário Carioca, como copidesque. Trabalhei algum tempo na Petrobras, editando revistas, livros e outras publicações. Comecei a experimentar a tradução em O Detetive, uma revista do grupo O Cruzeiro. Em 69, fui para a Editora Vozes, onde me tornei editor de livros leigos,por vários anos. Uma grande experiência. Lá editei e traduzi livros sobre vários assuntos. Trabalhei também com os Bloch, para quem também traduzi dois livros, um deles de natureza filosófica. Em 69 fui para o Jornal do Brasil. Me tornei redator do Departamento de Pesquisa, formado por um grupo que tinha de ser necessariamente de bom nível intelectual. Quando saí do JB, traduzi muitos livros, principalmente para as editoras Zahar e Bertrand.  

ABI OnlineComo se faz tradução?

Mario — Hoje há cursos que ensinam como traduzir. Alguns, pelo que se publica sobre eles, me parecem muito teóricos. Traduzo com base nos meus conhecimentos, meu gosto pela literatura e a filosofia e minha curiosidades pelas línguas. Como sei que nunca é possível se saber de tudo, tenho muitos dicionários, perto de 300. Uns 20 de inglês, o mesmo de francês e de espanhol, e um monte de dicionários de línguas que não sei. Afora os temáticos. 

ABI OnlinePara evitar surpresas?
Mario — Posso estar traduzindo um livro sobre história dos gregos e topar, de repente, com um termo turco ou sânscrito. Como traduzir corretamente esses termos se não tiver um dicionário de turco e pelo menos um de sânscrito? Tenho dicionários muito específicos. Por exemplo, vários de expressões próprias de regiões da América Latina. Um dicionário de expressões usadas em Honduras…

ABI OnlineOs hondurenhos têm um linguajar muito característico. A capital, por exemplo, eles chamam de “Teguz”.
Mario — Pois é, eles chamam Tegucigalpa desta forma mais curta e têm uma linguagem interiorana, do campo, muito diferente daquela que se fala nas cidades. Mesmo na Espanha isso acontece. Traduzi alguns livros do Camilo José Cela, que morreu em 2002; mesmo sendo membro da Real Academia Espanhola, nunca deixou de ser um galego. Quando escrevia, ele misturava as línguas e enchia o texto com palavras e expressões galegas, que eu não conhecia. Tive de aprender o essencial da língua galega para traduzir corretamente. Comprei gramática de galego, dicionários de galego… 

ABI OnlineE quanto tempo se gasta numa tradução?
Mario — Depende. Eu sempre gasto muito tempo, porque sou metódico. Apesar de os computadores informarem quantos milhares de letras ou palavras acabei de escrever, minha referência continua sendo a lauda de 30 linhas com média de 72 batidas cada. É com ela que meço meu trabalho.  

ABI OnlineMas, digamos, um livro de 200 páginas…
Mario — Depende do livro.

ABI OnlineUm mês?
Mario — Não, eu não seria capaz de fazer em um mês. Levo mais tempo, sou perfeccionista. Tenho amigos que traduzem em um mês. Eu não consigo. 

ABI OnlineQual é a sua rotina? Vai de manhã para o escritório e…
Mario — Dedico umas seis horas por dia ao meu trabalho. Mais que isso não agüento. A exigência intelectual é muito grande. Há um livro que fiquei mais de um ano e meio traduzindo. Foi um dos últimos que traduzi, e ainda não está publicado, deve sair este ano, para a Bienal. Intitula-se “O saber grego”. Deverá sair pela Editora Bertrand, com a qual me dou muito bem. É uma obra de 1.200 páginas, dividida em três partes. A primeira dedicada aos filósofos gregos, dos primeiros até os do fim da Antigüidade. A segunda parte é dedicada aos outros saberes gregos. Medicina, matemática, cosmologia. Traduzir o capítulo sobre cosmologia foi de enlouquecer, porque, para os gregos, a Terra era o centro do Universo. A ginástica mental que eles fizeram para provar isso…

ABI OnlineA teoria geocêntrica…
Mario — Os artifícios criados pela inteligência grega para comprovar essa tese são de deixar a gente tonta. Já a parte final do livro é dedicada às escolas que se desenvolveram a partir do pensamento dos filósofos abordados no início. Tivemos na primeira parte um grande capítulo sobre Aristóteles; agora, na última, outro sobre o aristotelismo. O mesmo no caso de Platão, Várias pessoas tinham olhado para aquele “tijolo” e desistido. Para mim era um desafio. Queria testar a que ponto havia chegado, provar a mim mesmo que havia adquirido cultura suficiente para encarar uma tarefa como aquela.

ABI OnlineQuantos livros já traduziu?
Mario — Exatamente 30. Conheço colegas que já traduziram mais de 500. Mas nós, que trabalhávamos na pesquisa do Jornal do Brasil, estávamos sempre traduzindo textos estrangeiros, às vezes bem difíceis. Não sei quantos traduzi lá.

ABI OnlineDizem que um livro traduzido pelo senhor é tão bom quanto o original.
Mario — Não é verdade. Veja, ali está um livro que traduzi (aponta para a prateleira): “Verdade ao amanhecer”, do (Ernest) Hemingway, um original que a família publicou 50 anos depois de sua morte. Como tudo de Hemingway, tem passagens muito boas. E outras nada boas. Por causa da pressa. Porque Hemingway estava descontente com a vida, com tudo. Neste caso, claro, uma ou outra passagem da tradução pode ser melhor que o original. Mas isso é único na minha lista de traduções. 

ABI OnlineE os livros que o senhor escreveu?

Mario — Durante muitos anos não pude escrever os livros que tinha em mente, porque, no meu caso. sempre foram muito difíceis as condições de trabalho no JB. E foram 25 anos! Durante muito tempo, editei sozinho o caderno Livro. Não tinha ninguém para ajudar e por isso fiquei quatro anos sem tirar férias. Somente em 77, quando eu já tinha 40 e tantos anos, lancei meu primeiro livro, “Milagre na Salina”, um conjunto de contos. Publiquei pouco depois, pela Codecri, um volume de estudos sobre a poesia popular do Nordeste: “Doce como diabo”. Em 99, a Bertrand editou o volume “Andante com morte, composto de quatro ficções mais ou menos curtas: “A morte infinita”, “Sentinelas da noite” e “A engrenagem universal” e “A nova rota da seda”. As três primeiras histórias dizem respeito ao sertão e as mudanças que lá vêm ocorrendo. Um resenhador de São Paulo disse que eu era conservador, só escrevia sobre coisas antigas… A última história — que, literariamente, considero um pouco fraca — prevê que, em algum momento desta primeira metade do século XXI, o excesso de automóveis fará explodir uma guerra violenta e sem fim, entre pedestres e motoristas, provocando milhares de mortes em cada grande cidade do mundo. A indústria automobilística cria, então, para os que têm mais dinheiro, uma gigantesca rodovia, que sai do centro da Europa, passa pela Turquia e chega até a China, com muitas pistas para o motorista reprimido e desesperado com os eternos engarrafamentos, correr a 300, 400 quilômetros por hora e morrer do jeito que quiser.

ABI OnlineA rota da seda de Marco Pólo…
Mario — Só que, quando ela começa a alegrar a morte dos gloriosos suicidas da gasolina, o petróleo se acaba e as grandes potências, ou melhor, a grande potência vai lá e toma tudo ou o restinho que sobrou. A essa altura, as calotas polares já derreteram e os oceanos inundaram quase tudo. Um brasileiro da Baixada Fluminense, que vai para a Europa num navio velho, é quem conta como se chega à Nova Rota da Seda, a rota do embuste. Ele se associa a um grupo de vagabundos, liderados por um filósofo. Aquele mesmo resenhador, que disse que os três primeiros contos refletiam um pensamento atrasado, classificou este último de um devaneio do meu futurismo apocalíptico de nordestino…  

ABI OnlineOs três primeiros eram muito atrasados e este era muito moderno…
Mario — Tudo o que eu disse ali está agora em todas as manchetes do mundo. O petróleo vai acabar logo e estão aí o efeito estufa, o derretimento das calotas… Os mares vão subir exatamente como se descreve no meu conto. Ninguém mais tem dúvida de que este será o século de radicais mudanças climáticas. Este é, hoje, o maior problema da humanidade. Todos os estudos apontam nesse sentido. Até o Arnold Schwarzenegger — apesar de pertencer ao partido republicano — já tenta controlar as emissões de carbono na Califórnia, contra a vontade do Bush. Ele se opõe à política ambiental da Casa Branca. É um absurdo meter a cabeça na areia, tentar ignorar o problema. Tenho a impressão de que, em termos de ficção, fui o primeiro a escrever, no Brasil, sobre esses desastres que nos esperam. Parece que muitas pessoas têm medo de tocar certos assuntos como o do ambiente, encarar certas verdades. Parece que têm medo dos poderoso, sei lá.

ABI OnlineVamos falar agora sobre o JB.
Mario — Trabalhei dez anos na Editora Vozes. Um ano em Petrópolis, os outros nove no Rio, dividindo o dia com o JB. Na editora dos franciscanos, meu trabalho mais constante era o de participante da editoria da Revista de Cultura Vozes, dirigida por frei Clarêncio Neotti e editada por Moacy Cirne. Para mim foram anos de muita liberdade, muita criatividade. Como não podíamos falar sobre as coisas óbvias que aconteciam embaixo do nariz da gente, recorríamos à antropologia, à sociologia, à lingüística, para dizer pelo menos um pouco daquilo que nos era vetado. Em 69 fui para o Departamento de Pesquisa do JB, quando aquela editoria estava em um bom momento. Éramos oito redatores. Tínhamos de escrever bons textos sobre os mais diferentes assuntos. Era um trabalho que exigia muito, muito mesmo. Numa segunda-feira, ao chegar no jornal, mandaram que me apresentasse ao editor, Alberto Dines. Ele me disse: “Está vendo este livro? Quero que você vá pra casa e o leia. Sexta-feira você volta e me escreve uma página dupla do Caderno Especial.” Era um livro de umas 300 páginas, intituladoThe american way of war”, uma variação do conhecido american way of life. O livro tratava da idéia norte-americana de estratégia, das guerras da Independência até o Vietnã, a guerra deles naquele momento

ABI OnlineNão era um assunto dos mais simples…
Mario — Não. Li tudo e, na sexta, voltei para o jornal com as páginas prontas. A gente trabalhava muito, mas tinha orgulho de pertencer ao grupo. Nem assinávamos as matérias. Saía só o crédito “Pesquisa JB”. Éramos anônimos, mas gostávamos do que fazíamos. Cada dia era um desafio intelectual para cada um de nós. Quando o Dines saiu, o Departamento — tal como existia — acabou. Fui para o Caderno B, onde fiquei vários anos como subeditor. O jornal publicava o suplemento Livro, criado em 72 e editado pelo Remy Gorga Filho. Sempre achei muito bom o trabalho do Remy, que, para variar, fazia aquilo sozinho, não tinha redator. Em 77, ele saiu do jornal e eu fui escolhido para editar o caderno, só que com várias restrições: na prática, ele passava a publicar unicamente resenhas, pequenas resenhas, conforme o modelo de The New York Times. E, como todos sabem, era uma época de censura e auto-censura. Muitos professores, escritores, pessoas que tinham o que dizer, não queriam ou não podiam escrever para o suplemento. Então, pensei: vou procurar jovens escritores e mexer com o orgulho deles. Eu lhes dizia mais ou menos o seguinte: “Dou a você uma oportunidade de aparecer; mas, como você não tem experiência de escrever para jornal, me autoriza a ‘mexer’ em sua resenha, não para mudar suas idéias, mas para torná-las mais legíveis. Uns 99% deles aceitaram. 

ABI Online Foi até quando isso?
Mario — Acho que até meados de 86. Creio que foi naquele ano que o Zuenir Ventura foi para lá, editar a Revista de Domingo e, em seguida, o Caderno B. Nesse meio tempo, fui cooptado para escrever editoriais, tarefa que não consegui desempenhar por muito tempo. Não é fácil tentar convencer todo o dia o leitor a aceitar como sua uma idéia que não é sua. 

ABI Online É a do jornal. 
Mario — Pois é… Voltei para a editoria do B. Nesse meio tempo, Zuenir tinha transformado o Livro em Idéias — um tablóide com linha menos estrita. E que tinha, pelo menos, dois redatores para editá-lo: o Luciano Trigo e a Vivian Wiler. Com a saída do Zuenir e do Trigo, lá fui eu, de novo, para os livros e a literatura. Fiquei uns tempos fazendo o caderno, mais uma vez sozinho. Mas a certa altura adoeci gravemente, e então a editoria do caderno passou para outras mãos. Permaneci apenas como redator. Depois, a editoria do Idéias dividiu-se: na quinta editava-se um Idéias dedicado aos livros (publicado aos sábados), e na sexta, outro Idéias, que era o Caderno Especial de cara nova (publicado no domingo). Nessa época, trabalhei com três bons editores, Zé Castello, uma pessoa muito culta, Wilson Coutinho, um companheiro estimulante, com excelentes conhecimentos de filosofia, e o Cláudio Bojunga, que além de culto e experiente, sempre foi uma pessoa finíssima e de temperamento muito estável. Mas, para mim, essa junção de editorias significou, antes de tudo, um pouco mais de trabalho… 

ABI OnlineE quando o senhor deixou o JB?
Mario — Saí em meados dos anos 90 e me aposentei.

 Arquivo/Vantoen Pereira Jr

   Com as cadelas Nina e Doge

ABI OnlineVamos falar sobre meio ambiente, um tema que lhe interessa muito. 
Mario — É um sinalzinho que apareceu muito cedo em minha consciência. Nasci num lugar muito seco. E, por causa da devastação secular, mais pobre de vegetação do que naturalmente era. Aprendi a valorizar a água, a árvore, o lagarto, a coruja. Foi uma coisa natural. E esse homem (aponta para a foto de Alderico Damasceno) também tinha essa consciência e se esforçava para que cada um de nós a adquirisse em alguma medida. Estive no ano passado em minha cidade. Fui lá para o aniversário do último tio que me resta, um homem muito inteligente que teve apenas 15 dias de escola. Foi lavrador, comerciante, e conseguiu juntar algumas propriedades. Agora, depois de velho, resolveu escrever. No primeiro livro, suas memórias. Ele me mandou os textos e eu tive de “traduzi-los” para o português, porque ele escreve em “outra coisa”… Mas fiz aquilo com o maior prazer, pois tenho muita admiração por ele, é um grande homem e uma boa pessoa. Mesmo sem ser muito religioso, sem ser beato, está sempre preocupado com o próximo. No segundo livro revela suas preocupações com a cidade e elogia aqueles que a construíram, os carreteiros, os sapateiros… O lançamento foi no clube da cidade. Estavam lá o vice-prefeito e o Secretário de Educação; teve sermão do padre, projeção de um pequeno documentário etc. Pelo programa, eu tinha de dizer algumas palavras sobre o meu tio e acabei pedindo desculpas para falar também algumas verdades que estavam entaladas na minha garganta.  

ABI OnlineNão podia perder a chance…
Mario — Pedi licença para falar, primeiro, do pequeno rio da cidade, que era bonito e hoje é um banco de areia com um filete d’água; da mata ciliar — com suas grandes árvores, como a oiticica, e arbustos, alguns deles aromáticos — que destruíram pelo simples prazer de destruir. A 200 metros da Prefeitura, eu tinha visto uma pirâmide de lixo, com milhares de garrafas “pet”. “Não sei como se consegue conviver com tanta sujeira”, disse. Se eu pudesse, teria procurado os estudantes da cidade a fim de convencê-los a replantar o que foi devastado.  Porque isso — eu também disse na solenidade – deve ser feito pelo povo, pelos cidadãos. A experiência diz que não se deve esperar por nenhum dos governos, seja federal, estadual ou municipal.” Bem antes desse episódio, eu havia começado a pesquisar nos jornais e revistas do Rio e São Paulo, tudo que encontro sobre ecologia e meio ambiente. Recorto e envio para uma senhora, Dona Terezinha, que distribui esse material nas escolas.

ABI OnlineE a garotada já adquiriu alguma consciência?
Mario — Olha, diz ela que algumas escolas estão conseguindo progressos com seus alunos. Mas isso não se consegue de uma vez. Nossa família — eu, meus cinco irmãos que vivem em Brasília e mais alguns parentes — criou em Nova Russas uma escola de música para tirar os meninos das ruas e lhes ensinar uma profissão. A escola funciona em um salãozinho da Sociedade São Vicente de Paula. Durante a semana, os meninos têm aulas regulares. No sábado e domingo, aprendem música. Antes, os instrumentos eram da própria Prefeitura. Mas eram muito ruins, mal conservados. Eu me lembro da primeira vez que fui vê-los. Fiquei absolutamente pasmo com o progresso dos meninos. Em dois anos de aprendizado, eles estavam tocando Pixinguinha, que compôs uma música supercomplexa. Um estava tocando o clarinete quando, de repente, metade do instrumento caiu no chão. As duas partes estavam ligadas com cera de abelha. Tirei o dinheiro que tinha no bolso e disse para os outros: bem, completem e comprem um clarinete para aquele menino. Nem que seja de segunda mão. Eu estava muito emocionado. 

 Arquivo/Margareth Lipel

 Na redação de Ele e Ela

ABI Online Em breve será uma orquestra.
Mario — Já conseguimos, aqui e ali, quase todos os instrumentos. O importante, porém, é que vários adolescentes já foram admitidos em orquestras populares de cidades vizinhas. Ou seja: estão empregados Também tirei 2.300 livros das minhas estantes e doei à prefeitura, para que criasse uma biblioteca. Tem uma área na cidade, onde funciona a Secretaria da Educação, que foi transformada em campus avançado de uma universidade regional, com sede em Sobral. Soube que agora temos uma faculdade nesse campus avançado. As coisas estão melhorando.  

ABI OnlineHoje o senhor se considera mais tradutor, mais jornalista ou mais ambientalista?
Mario — Não sei o que sou. Traduzo, mas não penso só em tradução. E escrevo também. Às vezes me pedem colaboração para o Idéias, mas, em termos de jornalismo, a única coisa que estou fazendo com regularidade é escrever para um pequeno jornal de Minas, chamado O Cometa Itabirano. Uma folha que o Drummond prezava muito. Soube até que ele deixou uma cláusula no testamento, segundo a qual o Cometa pode sempre utilizar qualquer coisa dele sem ter de pagar direitos autorais. Mas como eles lá são muito sóbrios, raramente se valem desse direito. O jornalzinho estava no fim, mas alguns amigos, jornalistas e publicitários de Belo Horizonte, se juntaram e resolveram salvá-lo, editando-o gratuitamente, conseguindo alguns anúncios para garantir, pelo menos, a compra do papel. Eles me convidaram para colaborar gratuitamente e me deram um espaço para escrever com toda a liberdade. É claro que, aos 74 anos, já não sinto necessidade daquela ênfase juvenil. Digo mais com a razão. 

ABI OnlineO senhor também foi professor de Jornalismo?
Mario — Puro acaso. Nos anos 70, Moacy Cirne, Muniz Sodré e Antonio Sérgio Mendonça deram a partida ao Curso de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF). A Nadiá, mulher do Antonio, o Samuel Katz e o Nelson Pereira dos Santos eram professores da faculdade de Comunicação. Havia lá uma cadeira de Desenho Jornalístico, que tem a ver com a história e uso dos tipos, a criação da página, a programação visual de um livro, uma revista, um jornal etc. Eles me chamaram para substituir um professor que morrera de repente. Ponderei que não tinha curso nenhum — apenas o primário. Apelaram lá para a brecha do “notório saber” e acabei contratado. Subia na barca com aqueles livros debaixo do braço, e na sala de aula tudo o que eu tinha era giz e um quadro-negro. Se houvesse algo que eu quisesse mostrar à turma, tinha de passar o volume de mão em mão. Disse ao Antonio Sérgio e ao Muniz que ficaria somente um ano. Quando fui legalizar minha situação, tive que ir ao Departamento de Ordem Política e Social.

ABI OnlinePara ter o famigerado atestado ideológico…
Mario — Exato. O Dops se recusou a me dar o tal atestado. Eu tinha trabalhado no Ceará naquele jornal de oposição em que comecei a vida. E me demitiram da Petrobras sem dizer porquê. Resultado: trabalhei um ano inteiro na UFF e não recebi um centavo. Seis anos depois, já no processo da “abertura democrática”, conseguiram me pagar. Mas o dinheiro recebido só deu para convidar o Muniz e o Antonio Sérgio e pagar um almoço. A inflação tinha comido os meus salários. 

ABI OnlineComo nasceu “Milagre na Salina” e em que se baseia este seu primeiro livro?

Mario — Num dos momentos mais difíceis da vida de nossa família, lá em Nova Russas, fomos parar numa pequena rua de casas de taipa. A rua se chamava da Salina, porque, originariamente, aquelas casinhas tinham sido utilizadas por um rico comerciante como armazéns de sal grosso. O sal é um produto precioso no sertão. Como quase não há agricultura, a pequena pecuária é o mais comum. O fazendeiro mata o boi, e o preparo da carne-de-sol requer muito sal. A vaca também precisa de sal na sua alimentação, para melhorar a qualidade do leite. Enfim, o sal é importante, e aquela rua passou a ser conhecida como da Salina. Para todos nós era muito humilhante morar ali, até porque, antes do sal, algumas casinhas tinham sido habitadas por mulheres de “vida fácil”. Agora, a maioria dos habitantes era formada por carreteiros, homens fortes que carregavam os vagões dos trens de carga, principalmente com sacos de oiticica. Os americanos tinham perdido a China para os japoneses, o com ela o óleo de tungue, importante na produção de tintas. Mas logo descobriram que a oiticica, árvore do Nordeste brasileiro, produzia um óleo semelhante. Imediatamente criaram companhias para a exploração dos pequenos frutos da oiticica… Aquelas pessoas da Salina se tornaram importantes na minha vida. Mesmo quando saí de lá, eu me recordava de cada uma delas, de sua grandeza, da solidariedade, de como sabiam dividir o pouco que obtinham. O livro fala dessa gente. 

 Aquarela de Mario Pontes

ABI OnlinePor que o senhor, que circula tão bem nos meios acadêmicos, nunca sonhou com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras?
Mario — Várias vezes estive na ABL, até palestrei lá sobre “O conto em tempo de febre”, uma abordagem jornalística e sociológica do que aconteceu nos anos 70, quando milhares de jovens se transformaram em contistas da noite para o dia, porque necessitavam de um canal para se expressar. Acho que a Academia está em um bom momento, levou muita gente boa para lá nos últimos anos. Quanto a mim. Bem… não consigo me imaginar acadêmico. Pertenço a uma sociedade de cearenses no Rio, que, como outras do mesmo porte, embora seja bem informal, dá a si mesma o nome de “Academia”. Me convidaram muitas vezes para ser um deles. Como eu sempre escapava, puseram-se a dizer que eu esnobava o Ceará. Isso, sim, me incomodava. Assim, acabei por aceitar o convite. Mas, ao contrário de muitos amigos, não me sinto atraído pela vida realmente acadêmica.