Caso Mariana Ferrer fere
dignidade da Justiça


04/11/2020


Crédito: Diário do Centro do MUndo (DCM)

As violências contra Mariana Ferrer chamam a atenção para o cotidiano do Sistema de Justiça

Por João Batista Damasceno – membro da ABI e desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro 

A divulgação da fake news de que um empresário, acusado de estupro de pessoa vulnerável, foi absolvido por se tratar de ‘estupro culposo’, agitou as redes sociais e a imprensa.  Mas, da leitura da sentença, de 51 laudas, não se encontra tal fundamento. E não poderia constar. Afinal, inexiste estupro culposo. Somente doloso.

Dolo é o propósito deliberado de agir visando a um resultado, mesmo que não se atinja. Em regra os crimes são dolosos. Mas, por vezes, a lei define a responsabilidade penal por determinados comportamentos culposos causadores de dano. Culpa é a provocação de um resultado indesejado, por desatendimento a uma norma de conduta. Exemplo clássico de comportamento culposo é do pai que, por estar utilizando o celular, atropela o filho causando-lhe lesão corporal.

Estupro consiste em constranger alguém a determinada prática sexual com ameaça ou violência. É sempre doloso. Estupro de vulnerável consiste em determinada prática sexual com menor de 14 anos, com pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência. No Brasil, um jogador de futebol que afirmasse saber estar a vítima sem condições de descrever o que lhe aconteceu estaria confessando saber a vulnerabilidade da vítima.

No estupro de vulnerável, perceber a incapacidade da vítima é requisito para a configuração do crime. Trata-se de uma janela de subjetividade pela qual abusadores conseguem fugir e inocentes demonstrar inocência. Não se trata de tipo culposo do estrupo. Mas, ausência de crime pela ignorância da vulnerabilidade.

A sentença é longa e enfadonha. São 51 páginas de transcrições de depoimentos e citações. Ao final, o juiz considera a falta de prova para a condenação e aplica o princípio do in dubio pro reo, ou seja, na dúvida decide-se pela liberdade. É melhor absolver vários culpados que condenar um inocente. É um princípio.

A sentença transcreve vários depoimentos, inclusive o do motorista de Uber que conduziu a vítima, e todos contrastam com o depoimento dela. Mas a sentença pouco analisa a materialidade do fato estampada nos laudos.

Entre clichês e transcrições, o que se lê é a análise do comportamento da vítima, como se fosse ela a pessoa a ser julgada. A análise do comportamento do acusado somente aparece nas transcrições. Nenhum julgamento sobre quem estava sendo julgado é encontrado. Não há avaliação do julgador do comportamento do acusado. Estranha sentença!

A sentença é tecnicamente vulnerável. Mas, trouxe à luz o comportamento do Sistema de Justiça em tais casos. Na audiência a vítima foi ofendida, agredida, mutilada e violentada, demonstrando a razão dos índices de violência sexual e feminicídio no Brasil. E tudo sob o olhar plácido e solene de um magistrado.

O comportamento dos agentes do Sistema de Justiça na audiência foi grotesco, humilhante e misógino. Atingiu a dignidade da vítima, mas subtraiu igualmente a dignidade da Justiça.

O juiz tinha o dever de silenciar a agressão a que a vítima era submetida. As relações processuais não se estabelecem apenas entre autor e réu. O juiz é parte no processo. É a parte que deve ser desinteressada no resultado como requisito de sua imparcialidade. Mas imparcialidade não é neutralidade. O juiz é o condutor e o presidente do processo e deve zelar pelo respeito aos princípios, direitos e garantias fundamentais constantes da Constituição da República, dentre os quais a dignidade da pessoa humana.

Conforme declarou o Ministro Gilmar Mendes nas redes sociais: “As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram”.

É inaceitável o que vivenciamos no Brasil. A ‘cultura do estupro’ onde uns pregam que “se está com vontade, estupra mas não mata” e outros têm a ousadia de, publicamente, dirigir-se a uma mulher e lhe dizer que “não te estupro porque você não merece”, como se outras mulheres merecessem tal perversidade, é produto de uma cultura que culpabiliza as mulheres vítimas de violência e isenta de responsabilidade seus agressores. Estupro não é sexo. É violência contra a mulher, contra a dignidade da pessoa humana e contra a humanidade que há de nos caracterizar. No caso Mariana Ferrer, o Poder Judiciário produziu uma sentença contra si e contra as suas práticas cotidianas.