Dezembro, 68: bomba tenta calar o Correio da Manhã


07/12/2020


Foto: edifício Marquês de Herval, centro do Rio, sede da agência de anúncios do Correio da Manhã – Foto Rogério Marques

Dezembro de 68: uma bomba tenta calar o Correio da Manhã

Por Rogério Marques*

É provável que os jovens balconistas da lanchonete que funciona atualmente no térreo do edifício Marquês de Herval, na esquina das avenidas Rio Branco e Almirante Barroso, Centro do Rio, nunca tenham ouvido falar do Correio da Manhã. Nem devem saber que no dia 7 de dezembro de 1968, há 52 anos, aquele lugar em que eles servem sucos e sanduíches foi abalado por uma explosão tão violenta que abriu uma cratera no piso e destruiu a fachada do edifício, com danos até mesmo em prédios vizinhos.

Cinquenta e dois anos depois, quase todos que passam diariamente naquele cruzamento movimentado desconhecem essa história. Foram dias de muita tensão no Brasil inteiro, aquele 1968. Passados quatro anos do golpe que depôs o presidente João Goulart,crescia a reação contra a ditadura. De um lado, grandes manifestações de rua organizadas pelo movimento estudantil, ações de grupos de guerrilha, endurecimento da oposição consentida pelos militares, o MDB. De outro, atentados praticados por bandos da extrema-direita que apoiavam a ditadura, ou que estavam dentro dela, contra grupos de teatro, grêmios estudantis, jornais de oposição à ditadura.O Correio da Manhã era um desses jornais.

EXPLOSÃO DE MADRUGADA

1ª página do Correio da Manhã de 8 de dezembro de 1968, dia seguinte ao atentado, com foto da fachada do Edifício Marquês de Herval destruída pelo atentado

Neste cenário tenso, o coração do Centro do Rio, a Avenida Rio Branco, pulsava forte. Era ali que aconteciam as grandes manifestações de protesto contra o regime, como a Passeata dos 100 mil, no dia 26 de junho de 1968.

Era ali, na esquina de Rio Branco com Almirante Barroso, que ficava a principal agência de anúncios do Correio da Manhã, um dos mais importantes jornais do Brasil, que tinha redação na Avenida Gomes Freire, na Lapa. A agência ocupava uma loja no térreo do Marquês de Herval, o edifício de arquitetura moderna construído pelo escritório MMM Roberto, o mesmo que projetou outro clássico do modernismo, o edifício da ABI, também alvo de uma bomba da extrema-direita em agosto de 1976.

Em sua primeira página da edição de 8 de dezembro, dia seguinte ao atentado, o Correio da Manhã informava que a explosão foi tão forte que destruiu completamente a agência e quebrou todas as vidraças do edifício até o décimo andar. Mais de três toneladas de vidros caíram nas calçadas em frente ao prédio, diz a notícia do Correio, e até o edifício da Caixa Econômica Federal, do outro lado da avenida, sofreu danos. Por ser madrugada, apenas um homem que passava no local na hora da explosão ficou ferido por estilhaços de vidros.

O pior estava para acontecer. Àquela altura, quase cinco anos depois do golpe militar de 1964, o Brasil marchava para a fascistização total do regime. O Correio já vinha sendo sufocado financeiramente pelos militares. O jornal não recebia publicidade do governo, que ao mesmo tempo pressionava grandes empresas para que também não anunciassem no diário da Avenida Gomes Freire.
Tradicionalmente inovador, corajoso, defensor da democracia, o Correio da Manhã tropeçou feio, em 1964, ao apoiar a deposição do presidente João Goulart com os famosos editoriais “Basta!” e “Fora!”. Pouco tempo depois, diante dos primeiros atos institucionais do governo militar, cassações de mandatos, prisões, o jornal passou à oposição. Era tarde.

Aviso publicado no Correio da Manha, em 8 de dezembro 1968 , informando que a loja da anúncios estava funcionando, graças aos funcionários

EDITORIAL ACUSA O GOVERNO

Na edição de 8 de dezembro de 1968, um duro editorial acusava a ditadura militar de ser responsável por aquele e outros atentados. No último parágrafo, o texto acusava diretamente o ditador Artur da Costa e Silva:

“O Correio da Manhã, com sua longa história de luta contra a prepotência, onde quer que ela se manifeste e como se manifeste, não se preocupa em denunciar ao país os agentes secundários do terror. Aponta à consciência nacional o responsável direto pelo terrorismo: o presidente da república, marechal Artur da Costa e Silva.”
Apenas cinco dias depois o governo de Costa e Silva decretava o AI-5, em 13 de dezembro de 1968. Para o Brasil, isso significava o mergulho no terror absoluto: fim de quaisquer garantias constitucionais, prisões que na verdade eram sequestros, torturas e assassinatos de presos políticos. Para o Correio da Manhã, o AI-5 representou o caminho acelerado para o fim. No mesmo dia, o redator-chefe Osvaldo Peralva foi preso no jornal por agentes do Dops. Em janeiro de 1969, por insistir na oposição à ditadura, também foi presa a dona do Correio da Manhã, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, viúva do jornalista Paulo Bittencourt.

O FIM, COM APENAS 8 PÁGINAS   

Sufocada por dívidas, naquele mesmo ano de 1969 Niomar arrendou o Correio da Manhã a um grupo de empreiteiros, donos da Construtora Metropolitana. A partir dali o jornal não seria o mesmo, com profundas mudanças na linha editorial.
Acompanhei de perto boa parte daqueles acontecimentos. Primeiro em meados de 1968, no fim da adolescência, quando estagiei por três meses na revisão do Correio, ainda sob o comando de Niomar Bittencourt. Acompanhei, é bem verdade, um tanto atordoado — garoto do subúrbio carioca que de repente deixou as “peladas” e os bailes de fim de semana para cair naquela efervescência política.

Muito se fala nos articulistas e colunistas do Correio da Manhã, grandes nomes, sem dúvida, enquanto a brilhante equipe de revisores, jornalistas experientes que tive a oportunidade de conhecer, quase nunca é lembrada. Profissionais como José Maria de Sá Peixoto, Olympio Marques dos Santos, José Fernandes, Bento Hyarup Cabral, Dilo Potrick, Derlan Navarro, Hélio Barbosa, Carlos Alberto Malcher e tantos outros. Grandes conhecedores do nosso idioma, todos eles   contribuíram muito com o Correio da Manhã, alguns durante quase toda a vida profissional.

Retornei ao Correio em 1970, já com os novos arrendatários, contratado como revisor e depois secretário gráfico. Deixei o jornal em meados de 1973, quando os salários estavam atrasando cada vez mais e o fechamento definitivo já era previsto.Em julho de 1974, o jornal que noticiou parte da história do Brasil no século passado, que enfrentou prisões, censura, bomba, ditadores, oligarcas circulou pela última vez com apenas 8 páginas.

*Rogério Marques, jornalista, conselheiro e membro da Comissão de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos.