Resistência: trabalho portuário, quitandeiras e “feitiços”


24/01/2024


Por Tiago Pestana, historiador, integra a Diretoria de Igualdade Étnico-Racial da ABI

Em comemoração ao Dia Mundial da Cultura Africana e Afrodescendente, que ocorre no dia 24 de janeiro, data que marca o compromisso, principalmente, das nações historicamente envolvidas com a diáspora africana, tendo o objetivo de preservar e valorizar suas contribuições. Neste aspecto, uma abordagem histórica torna-se valiosa, expondo, neste artigo, algumas das formas de resistência e enriquecimento utilizados pelos escravizados que habitavam as cidades atlânticas.

O trabalho era diário nas zonas portuárias do Rio de Janeiro e Salvador e, mesmo em condições adversas, se organizavam e prosperavam. Valiam-se do uso de suas religiosidades e do que era embolsado das tarefas diárias.

Visando o ganho, os cativos trabalhavam em diversas tarefas dentro da Cidade, principalmente, na zona do porto e em seus armazéns de café. Lá, tinham a chance de arrumar ocupação na organização de carregadores, sendo posicionados em tarefas diferentes. Além disso, outra prática que poderia render bons réis, era a atividade religiosa, que oferecia a venda de feitiços e rezas.

No trabalho do porto, era costumeiro encontrar uma divisão de funções e grupos. A tarefa que normalmente iniciavam era a de carregador, passando a ajudante, capitão e, por fim, furadores. Estes últimos, eram donos de cada grão de café que viesse a cair no chão durante os serviços de carregamento, somando, ao final do dia, de duas a três sacas em suas posses, tendo eles a confiança necessária de comerciantes e trapicheiros, com quem costumavam comercializar.

Já nas ruas da Cidade, as respeitadas quitandeiras ganhavam destaque, ocupando ótimos pontos comerciais, vendendo suas mercadorias em tabuleiros ou cestos, sempre vestidas com turbantes e pano-da-costa. Ficaram muito conhecidas pelo nome de “minas”, referindo-se, em uma grande generalização étnica e cultural, à região da África Ocidental de onde vinham.

Outra prática comum era a dos “feitiços”. Em fala do alufá (líder religioso muçulmano), Júlio Ganam, em entrevista à Gazeta de Notícias, em 1905, ao famoso jornalista e cronista, João do Rio, afirma que em cidades portuárias, como Rio de Janeiro e Salvador, existia a demanda por “magias”, prometendo atrações amorosas, fazer mal aos inimigos ou, até mesmo, para resolver questões relativas aos negócios. Esta prática também os rendia boas quantias. Tais atividades religiosas criaram conexões identitárias, aproximando grupos de afinidade como, por exemplo, os muçulmanos (“musulmins”), ou “gente de santo”, que organizavam seus candomblés.

A organização, a partir da religião, dividia e simbolizava os espaços de labuta. No caso da religião islâmica, era praticado pelos indivíduos malês, que recitavam orações, treinavam a escrita do Alcorão e buscavam novos correligionários para o grupo. Sobre o assunto, o historiador baiano, João Reis, afirmou: “os grupos de trabalho se desdobravam em grupos religiosos, sendo possível neles o reforço da identidade de classe e étnica por meio do islã”. Lembrando que no mês de janeiro comemora-se a Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador, durante os dias 24 e 25 de janeiro, de 1835.

As práticas de ganho relatadas devem ser interpretadas como resistências e ressignificações étnicas, religiosas e culturais à sociedade da qual estavam vivenciando, afastados de suas origens e de seus antepassados.

Longe de esgotar o assunto, vale sempre uma passagem pela história, buscando conhecer, cada vez mais, a trajetória e contribuição dos grupos africanos e afrodescendentes. Trata-se de conhecimentos necessários ao combate de entendimentos que afirmam passividade e aceitação da perda de liberdades por parte daqueles que foram trazidos à América no processo violento da diáspora africana.