Relatora da ONU denuncia limpeza étnica de Israel na Faixa de Gaza


10/12/2023


Do Globo

Há dois meses, a italiana Francesca Albanese, de 46 anos, tem denunciado enfaticamente o risco de o povo palestino estar sofrendo genocídio, enquanto classifica de “limpeza étnica” as ações de Israel na Faixa de Gaza. Para a relatora especial da ONU para os Direitos Humanos nos Territórios Palestinos Ocupados, o objetivo de Tel Aviv é deixar a população do enclave sem terra para que se tornem “novamente refugiados no Egito”.

Em entrevista ao GLOBO, Albanese, a primeira mulher a ocupar a relatoria especial das Nações Unidas desde que ela foi criada, em 1993, destacou os “absurdos” cometidos por Israel, mas também classificou de “violento e terrível” o ataque surpresa do Hamas em 7 de outubro, que deixou 1,2 mil mortos em território israelense. Advogada especialista em direito internacional, ela não se furtou de criticar nem mesmo o papel da ONU na resolução do conflito, que classificou como um “fracasso épico”.

Por três vezes, a senhora denunciou em relatórios da ONU que ‘o povo palestino corria grave risco de sofrer um genocídio’. O risco permanece?

De acordo com a convenção sobre genocídio, não é necessário provar 100% que houve um genocídio para que os Estados membros sejam obrigados a intervir. Basta provar o risco de intenção de matar ou infligir danos psicológicos e físicos graves aos membros de um grupo ou de criar condições que tornem a vida desse grupo impossível. Por outro lado, para provar que o genocídio está sendo cometido de fato, é preciso demonstrar que há uma intenção específica de eliminar os membros de um grupo. Não é suficiente dizer que crimes contra a Humanidade estão ocorrendo porque há ataques sistemáticos e generalizados contra a população civil em Gaza. Não há dúvida quanto a isso. Mas é genocídio? Ou seja, Israel tem um plano para destruir totalmente o povo palestino? É por isso que continuamos dizendo que há um risco de que esteja ocorrendo um genocídio.

Que tipo de elementos específicos você observou para concluir esse risco de genocídio do povo palestino?

Observei três elementos básicos. O primeiro de todos foi definitivamente a matança, que tem sido maciça desde os primeiros dias. Também houve o endurecimento do bloqueio, o impedimento da entrada de água, remédios, alimentos e combustível em Gaza por mais de um mês. Por fim, a destruição da infraestrutura hospitalar, que não é acidental. Israel é uma potência militar forte, portanto, sabe muito bem o que está fazendo e ao destruir a infraestrutura médica, sabe que isso levará à morte. Mas é preciso observar que o genocídio não é um ato, é um processo, e começa com a desumanização do outro.

Israel justifica seus ataques a instalações civis em Gaza dizendo que o Hamas teria centros de comando instalados em túneis sob hospitais e mesquitas…

Bem, o Ministério da Defesa e as Forças Armadas de Israel também têm instalações em áreas civis. Isso significa que o Hamas está certo em bombardear toda a vizinhança para atingir o Ministério da Defesa, ou um quartel-general militar? Não. A infraestrutura civil ao redor do alvo militar ainda é uma infraestrutura civil. Esse é o primeiro aspecto. Segundo, a presença de túneis subterrâneos não faz com que o que está acima do solo perca seu status civil. Terceiro, toda infraestrutura civil é protegida, mas há certas estruturas que são particularmente protegidas, como os hospitais.

E por que isso acontece?

Os hospitais são vitais em tempos de paz, mas especialmente em tempos de guerra, quando as pessoas podem ser feridas e precisam de assistência médica. Para que um hospital perca seu status civil, ele deve ser usado para um fim militar. Se houver um agente do Hamas dentro de um hospital, o hospital não perde seu status civil. Ainda que o Hamas tivesse instalado sua sede dentro do hospital, a equipe médica, as enfermeiras, os médicos, os pacientes e as pessoas que buscaram refúgio no hospital manteriam seu status de civis, portanto, não podem ser alvos. Israel não pode simplesmente dizer que “nosso alvo era uma única pessoa”, um agente do Hamas, e presumir que os outros podem morrer como dano colateral. Por isso que é tão importante o princípio da precaução e da proporcionalidade, que foi completamente negligenciado.

Israel também alega que o Hamas usa a população civil de Gaza como escudo humano…

Israel tem usado esse argumento há anos, inclusive na Cisjordânia, onde não há presença militar do Hamas. Comissões de investigação anteriores demonstraram que essa afirmação é falsa. Além disso, não está provado que o Hamas esteja usando civis ou prédios civis como escudos. Pelo contrário, nas últimas semanas, o que vimos foi Israel usando palestinos como escudos humanos, inclusive detentos.

O ataque do Hamas em 7 de outubro deixou mais de 12 mil pessoas feridas e fez mais de 240 reféns…

Foi muito violento e terrível o que o Hamas fez, mas uma coisa é certa: o Hamas não começou a guerra. Não estou minimizando o que o Hamas fez, de forma alguma. Só estou dizendo que não foi o Hamas que começou a guerra. Gaza já estava sob uma punição coletiva desde antes de 7 de outubro, sua população já era oprimida. Os crimes de guerra de Israel passaram despercebidos.

Israel tem dito que irá atacar o sul de Gaza, para onde a população palestina foi empurrada durante a guerra. Quais as implicações disso?

Que agora essas pessoas não têm realmente nenhum lugar para onde ir, a não ser o Sinai. Por que Israel não permite que essas pessoas voltem para o norte, para suas casas? Por que elas têm de ser empurradas para a fronteira de Rafah? Está muito claro que Israel está empurrando os palestinos cada vez mais para o sul, para que eles possam se tornar refugiados no Egito novamente, o que é absurdo. A História dos palestinos é a de um povo deslocado à força desde 1947. Mas o fato de isso poder acontecer em 2023, sob a vigilância de todos, é chocante para mim.

A violência na Cisjordânia ocupada também aumentou significativamente desde 7 de outubro. Há a possibilidade de uma nova frente de batalha?

Não acho que seja uma nova frente da guerra, é a opressão de sempre. Israel vem oprimindo o povo palestino há 56 anos nos territórios ocupados e tem tentado tomar o máximo de terra possível dos palestinos, confinando-os. Mas as pessoas que são confinadas, mais cedo ou mais tarde, se revoltam. O povo judeu deveria saber disso, porque foi isso que fizeram com eles no Gueto de Varsóvia.

Está ocorrendo uma limpeza étnica dos palestinos?

Sim, desde 1947, mas com alguns momentos mais evidentes, como em 1949, 1967 e agora em 2023. Israel não quer os palestinos na terra e usa de meios burocráticos e da força para promover desapropriação, deslocamento forçado, bloqueios e ocupação colonial. É claro que é uma limpeza étnica. Toda a vida dos palestinos desde o estabelecimento de Israel [como Estado] tem sido uma limpeza étnica.

Muito se discute sobre um enfraquecimento da ONU. O que a organização tem feito para dissolver o conflito é suficiente?

Definitivamente não. O que está acontecendo hoje é um fracasso épico para a ONU do ponto de vista político, humanitário e jurídico, porque a ONU não foi capaz de pressionar Israel quanto ao uso da autodefesa. Israel tem o direito de se proteger, mas não tem o direito de travar uma guerra contra a população [de Gaza].

O que é preciso para que os palestinos voltem a ter um nível de normalidade em seu território?

É necessário um cessar-fogo imediato com presença internacional independente, de modo que permita a libertação dos reféns e ajude israelenses e palestinos a sair dessa situação. Não pode ser uma iniciativa liderada pelos EUA [aliado de Israel]. A libertação dos prisioneiros palestinos detidos arbitrariamente e dos reféns israelenses também deveria ser compulsória, sem condicionantes. Por fim, é necessária a desmilitarização do território palestino ocupado, o que significa que a capacidade do Hamas deve ser neutralizada e não pode haver autoridade israelense sobre os palestinos.