Ê mundo velho
Êta mundo sem porteira
Vou me levando
No retão da lembranceira
13/07/2022
Por Maria Luiza Busse, diretora de Cultura da ABI
A vida e obra do músico, compositor, cantor e cineasta Sérgio Ricardo, que marcou os movimentos culturais dos anos de 1960 participando da Bossa Nova, Cinema Novo, e Festivais da Canção com suas músicas de protesto que perturbaram a censura e se tornaram hinos contra a ditadura, podem ser visitadas na Memória Viva! Sérgio Ricardo 90 anos, organizada pelos filhos João Gurgel e Marina Lutfi. Exposição, shows, mostra de filmes e debates percorrem a trajetória do multiartista que neste mês de julho completa dois anos de falecido. No III Festival da Canção de 1967, Sergio Ricardo protagonizou um célebre episódio no palco do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Impedido pelas vaias de cantar sua composição “Beto Bom de Bola”, crítica poética ao regime que infelicitava o país, porque a plateia preferia ouvir “Maria, Carnaval e Cinzas”, de Roberto Carlos, ele quebrou o violão e lançou sobre o público. O incidente deu origem a um dos títulos mais inteligentes e criativos de matéria na imprensa brasileira: “Violada no auditório”, de autoria do jornalista Pinheiro Júnior.
Em exibição até 26 de setembro, nos espaços Estação Net Rio e Estação Botafogo.
Programação completa em @sergioricardomemoriaviva
Por Irene Cristina, presidente do Conselho Deliberativo da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), em 247
Reprodução
Ê mundo velho
Êta mundo sem porteira
Vou me levando
No retão da lembranceira
Em 2022, Sérgio Ricardo completaria 90 anos e, se ainda estivesse entre nós, nos brindaria com novas canções e filmes que, além da poesia, nos levariam a protestar e gritar: fora fascistas!
Foi assim desde suas primeiras incursões musicais quando abandonou o céu, o barquinho e a flor da Bossa Nova e, naquele ritmo contagiante, nos fez chorar com Zelão em pleno Carnaval. E foi com essa obra prima que se apresentou no Carnegie Hall, em Nova York. Segundo ele, um soco de poesia social na sede do imperialismo.
Pesquisador contumaz, Sérgio retratou as injustiças e atrocidades do poder econômico também no futebol com Beto bom de bola que tentou cantar no Festival da canção de 1967. As vaias provocaram o ato mais popular de toda a sua vida com a destruição de seu violão que foi atirado contra a plateia. Mas ele não estava só e muitas pessoas entenderam sua canção crítica. Por vários dias, violões de todos os tipos chegavam pelo correio e ele pode fazer um ampla distribuição para jovens que não poderiam comprar o instrumento. Quanto ao Beto, o bom de bola, era o nosso Garrincha e “foi-se a Copa e foi-se a glória E a nação se esqueceu do maior craque da história.”
Sua determinação o afastou da mídia, mas não dos fãs. Estudantes, jovens revolucionários, trabalhadores progressistas e … mulheres. Sim, Sérgio era romântico e tinha um charme que atraía mulheres de todas as idades. De Maysa a Leila Diniz entre tantas outras nem tão famosas. Maria Bethânia confessou a ele que, ainda muito jovem, rompeu um cordão de isolamento para tacar-lhe um beijo na boca, numa de suas visitas à Bahia. Em sua última morada, no hospital, suas ex-mulheres chegaram a se revezar para acompanhá-lo.
Até o final da vida, Sérgio incentivava jovens talentos no Palco Livre, em Niterói, e no grupo de teatro Nós do Morro, da favela do Vidigal, onde morava e com o qual filmou o longa-metragem Bandeira de Retalhos, aos 85 anos. A temática ? A vitória dos moradores que conseguiram impedir a remoção dos barracos do Vidigal no final da década de 1970, quando Sérgio reuniu amigos da Pastoral das favelas e juristas como Sobral Pinto e parlamentares como Délio dos Santos para a vitória dos moradores. No ano seguinte, trouxeram o papa João Paulo II que doou o anel episcopal para os moradores comprarem o terreno e rezou uma missa no quintal do barraco de Sérgio Ricardo.
Seus filmes também discutiam questões sociais. O primeiro, Menino da Calça Branca chamou a atenção de Glauber Rocha que o convidou para fazer a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol e o refrão passou a ser entoado por presos políticos durante tortura,
informação que trouxeram para Sérgio anos depois e o deixaram aos prantos: “se entrega, Corisco. Eu não me entrego, não. Não me entrego ao tenente, não me entrego ao capitão, só me entrego na morte de parabelo na mão!” Outra composição, Calabouço, em referência ao restaurante estudantil do Rio, onde o estudante Edson Luiz foi assassinado pela ditadura, foi lançada na Catedral da Sé, em São Paulo, durante a missa em memória de outro estudante também assassinado, Alexandre Vanucchi Leme.
Considerado pioneiro da canção de protesto, suas músicas são atuais até hoje como Conversação de Paz, Ponto de Partida, Brincadeira de Angola, Semente, Bichos da noite, Palmares, Cacumbu, Lá vem pedra, Canto do amor armado, Vou renovar, A fábrica etc etc etc, sempre na tentativa de conscientizar através da poesia.
Com esse ser revolucionário, Sérgio Ricardo, nascido João Lutfi, na cidade de Marília, em São Paulo, eu convivi durante décadas junto com as meninas dele Adriana e Marina, as minhas Raiane e Taiana e o nosso João na subida do morro do Vidigal, na zona sul do Rio.
E quando presenciávamos o cotidiano pela janela, ouvíamos Sérgio:
“Tristeza mora na favela
Às vezes ela sai por aí
Felicidade então
Que era saudade sorri
Brinca um pouquinho
Enquanto a tristeza não vem
Canta, Canta
Nasceu uma rosa
Na favela
Enquanto a tristeza não vem”