10/11/2024
Do Globo
O parque industrial de Cambahyba, em Campos: corpos chegavam para serem incinerados — Foto: Divulgação/Gabinete da deputada Marina do MST
A aprovação pela Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) — em segunda votação, na semana passada — de um projeto de lei que tomba o parque industrial da Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense, reascendeu na professora universitária aposentada Dora Santa Cruz uma ponta de esperança. Afinal, esse é um passo importante no caminho para recuperar as ruínas e transformar o local num centro de memória, para não deixar cair no esquecimento as dores de tantas famílias atravessadas pelos horrores da ditadura militar no Brasil. Nos fornos da usina, foram incinerados pelo menos 12 corpos de militantes políticos, incluindo o de Fernando Santa Cruz, irmão de Dora, estudante de direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), preso em 1974.
O filme Ainda Estou Aqui, candidato do Brasil a uma vaga no Oscar de 2025, foi assistido por mais de um milhão de pessoas em menos de duas semanas de exibição no país. Dados de bilheteria, divulgados na segunda-feira (18) pela ComScore, mostram que a produção já arrecadou R$ 23,5 milhões em ingressos nos cinemas.
Sem respostas
Embora o golpe de 64 já tenha completado 60 anos, o Estado do Rio possui apenas um espaço que remeta a esse passado de barbárie. Em maio último, foi criado, em Barra Mansa, no Sul Fluminense, o Museu do Trabalho e Direitos Humanos, no lugar onde funcionou o 1° Batalhão de Infantaria Blindada do Exército (BIB) e o 22° Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército (BIMtz), locais de repressão e tortura no Sul Fluminense.
— A construção desses espaços de memória é uma possibilidade real de marcar territorialmente as violências do passado. Essa é uma pratica que foi adotada em diversos países do mundo, inclusive na Argentina e na Alemanha — lembra Nadine Borges, que presidiu a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro (criada para investigar violações de direitos humanos), citando lugares onde ocorreram prisões ilegais e torturas, que deveriam ter o mesmo tratamento, entre eles o Clube Ipiranga (Macaé), o Estádio Caio Martins (Niterói), o Hospital Geral do Exército (Benfica) e a Fortaleza de Santa Cruz (Niterói).
Para Nadine, há “uma evidente ausência de vontade política para que essa história seja conhecida”:
— Esse comando do esquecimento, que vem do estado para a gente ser forçado a esquecer, revela que todos os governos desde a redemocratização, em 1985, se omitiram em exigir respostas das Forças Armadas. É uma política de Estado produzir esquecimento e esvaziamento da memória.
Contra essa correnteza, familiares das 12 vítimas de Cambahyba e representantes de movimentos sociais participaram de um ato junto as suas ruínas no fim do ano passado. O projeto de tombamento já tinha sido apresentado pela deputada Marina do MST (PT) e pelo presidente da Alerj, Rodrigo Bacellar (União). Aprovado pela Alerj, foi remetido para a sanção do governador Cláudio Castro.
— A gente quer ter a lei sancionada para que seja uma ferramenta que permita abrir portas no sentido de recuperar aquelas ruínas e construir ali um espaço de memória, de verdade e de justiça. Queremos que, de fato, a sociedade tenha a oportunidade tanto de conhecer a história que aconteceu ali como de projetar coisas boas — ressalta Marina.
Dentro do complexo da Usina de Cambahyba, desativada em 1996, há sete fazendas, que somam 3.500 hectares. Em 2012, essas terras foram consideradas improdutivas pela Justiça e, em 2021, desapropriadas e cedidas ao Incra para fins de reforma agrária. Há um assentamento e um acampamento no local.
Incineração após as 18h
O parque industrial da usina, no entanto, ficou fora dessa desapropriação por se tratar de construção. Assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda promete procurar a prefeitura de Campos, para que identifique o proprietário e inicie o processo de desapropriação da área. Segundo ele, o ministério vai buscar fonte de financiamento para o pagamento da indenização e recuperar as ruínas.
— Vamos batalhar para transformar o parque industrial num centro de memória — garante ele, lembrando que a fábrica não parou de funcionar, moendo e produzindo açúcar, durante a ditadura: — Os corpos chegavam da Casa da Morte depois das 18h, quando não havia mais trabalhadores na usina, e eram colocados nos fornos.
Queda de braço
Prédio do Dops, na Rua da Relação, no Centro do Rio: má conservação — Foto: Divulgação/MPF
Já sobre o prédio de três andares do antigo Dops, na Rua da Relação, no Rio, os caminhos são mais nebulosos. Ele foi construído em 1910, inicialmente para abrigar a Polícia Central da República. Nadine Borges estima que, durante a ditadura militar mais de cem pessoas tenham sido torturadas em suas dependências.
— Existe uma luta de 40 anos pela transformação daquele prédio em um espaço de memória. Desde que ele deixou de funcionar como Dops, na época do Governo Leonel Brizola, na década de 1980, existe essa reivindicação — recorda o arquiteto Felipe Nin, do Coletivo RJ – Memória Verdade Justiça e Reparação (associação de ex-presos políticos, familiares de mortos e desaparecidos e militantes de direitos humanos) e sobrinho do engenheiro Raul Amaro Nin Ferreira, torturado e morto em 1971.
Uma queda de braço, porém, persiste. Enquanto o coletivo e o Ministério dos Direitos Humanos defendem a transformação do espaço em memorial, a Secretaria de Polícia Civil afirma que atualmente o prédio “está afetado à instituição”, que tem interesse nele e que “o planejamento prevê a implementação do Centro Cultural da Polícia Civil, em cumprimento à previsão contida na Lei Orgânica da instituição”.
— O ministério pode analisar ceder outro imóvel da União para a polícia construir seu museu — propõe Nilmário.
Quartel da PE na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, onde funcionou o DOI-Codi do Rio de Janeiro
Além disso, o quartel da PE na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, onde funcionou o DOI-Codi do Rio de Janeiro, e foi assassinado Rubem Paiva, Mário Alves, entre outros, continua funcionando normalmente. O seu fechamento e sua transformação em Memorial, em homenagem às vítimas da ditadura, já foi pedido pelo presidente da ABI, Octávio Costa, e pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoas Humana (CDDPH), em outubro deste ano.
São Paulo
Em São Paulo, no prédio onde funcionou o antigo DOPS, onde reinava o todo poderoso e violento delegado Sérgio Paranhos Fleury, foi criado o Memorial da Resistência.
Complexo arquitetônico onde funcionou o DOI-Codi de São Paulo, na Rua Tutóia
Já o DOI-Codi do II Exército, antiga Operação Bandeirantes, na Rua Tutóia, no bairro do Paraíso,um dos mais violentos órgãos de repressão da ditadura militar, onde mais de 7 mil brasileiros foram capturados, a grande maioria torturados, e cerca de 78 foram assassinados sob tortura, apesar de tombado, em 2014, pelo CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado, abriga até hoje a 36ª Delegacia Policial e outros órgãos da Secretaria de Segurança Pública.
Em junho de 2021, o Ministério Público de São Paulo entrou com uma Ação Civil Pública, na 14.a Vara da Fazenda Pública, pedindo a transferência de todo o complexo arquitetônico da Secretaria de Segurança Pública para a Secretaria de Cultura e o início do processo de criação de um Centro de Memória. Em 9 de setembro de 2021 foi realizada uma audiência de conciliação dentro do antigo DOI-Codi. A ação aguarda até hoje uma proposta a ser apresentada pelo Governo do Estado de São Paulo.