Em uma reviravolta significativa, o jornal Folha de S.Paulo revisitou sua posição histórica sobre o regime militar de 1964-1985, classificando-o agora como uma “ditadura cruel e sanguinária”. A mudança foi impulsionada pela recente conquista internacional de Fernanda Torres, que recebeu o Globo de Ouro de melhor atriz de drama por sua interpretação de Eunice Paiva no filme “Ainda Estou Aqui”.
Em 2009, o jornal publicou um controverso editorial onde descreveu o período como uma “ditabranda”, termo que minimizava a gravidade das violações dos direitos humanos ocorridas na época. A premiação de Fernanda Torres, que trouxe à luz a história de resistência de Eunice Paiva, serviu como catalisador para essa reavaliação.
“Em 31 de março de 1964, um golpe militar deu início no Brasil a uma ditadura progressivamente sanguinária que só chegaria ao fim 21 anos depois. No auge da repressão, dois anos após o AI-5 de 1968, o ex-deputado federal Rubens Paiva foi preso, torturado e assassinado por agentes do Estado; seus restos mortais seguem desaparecidos”, escreveu a Folha, em editorial publicado hoje.
Leia o editorial da Folha
Feliz ano novo, Fernanda Torres
Prêmio mostra ao mundo que houve ditadura no Brasil, existiu uma mulher capaz de enfrentá-la e há brasileiras para competir com a nata de Hollywood
A história de sua viúva, a extraordinária Eunice Paiva, mãe de cinco filhos, que passa de dona de casa a militante da causa dos direitos humanos e indígenas, é tema do livro “Ainda Estou Aqui”, escrito por seu filho, Marcelo Rubens Paiva, autor do sucesso literário “Feliz Ano Velho”.
No ano passado, a obra virou filme homônimo dirigido por Walter Salles, e Eunice, morta em 2018 depois de longo período com Alzheimer, ganhou vida na interpretação contida e poderosa de Fernanda Torres.
Na escolha do corpo votante da premiação, formado por 334 jornalistas estrangeiros de 85 países, Fernanda Torres bateu medalhões como Angelina Jolie, Nicole Kidman, Kate Winslet e Tilda Swinton. Não é pouca coisa, e sua vitória foi merecidamente celebrada em todo o Brasil, com repercussão similar à dos grandes feitos esportivos.
Prêmios são um poderoso instrumento de soft power, como bem sabem os Estados Unidos, mestres na tática. Mostrar ao mundo que houve uma ditadura no Brasil, que existiu uma mulher capaz de enfrentá-la e que há atrizes a competir em pé de igualdade com a nata de Hollywood é o saldo da noite.
Não é pouco, mas há mais. Internamente, o filme já levou mais de 3 milhões de espectadores às salas de exibição, colocando-se entre as maiores bilheterias da história do cinema brasileiro. É comum ver nos finais das sessões pessoas aplaudindo, chorando ou gritando “sem anistia”, em referência a projeto que pode beneficiar condenados por crimes contra o Estado de Direito.
Em seu discurso emocionado de agradecimento, Fernanda disse que “a arte pode durar pela vida, até durante momentos difíceis, como esta incrível Eunice Paiva, que eu fiz, passou. E a mesma coisa está acontecendo agora, em um mundo com tanto medo. E este filme nos ajuda a pensar em como sobreviver em momentos duros como este”.
Fernanda, que é colunista da Folha, não está só, como atestam os espectadores de seu filme e pelo menos 69% de brasileiros que, segundo levantamento do Datafolha de dezembro último, defendem a democracia como melhor forma de governo. Ainda estão aqui e são maioria.