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Palácio Capanema foi trauma na vida de um grande arquiteto


20/05/2025


’Por Rogério Marques, conselheiro da ABI, em Quarentena News

A reabertura do Palácio Gustavo Capanema, totalmente restaurado, prevista para o dia 20 de maio, traz de volta a beleza daquele prédio de arquitetura revolucionária, mas também levanta a poeira de lembranças espinhosas, sem o verde dos jardins de Burle Marx que lá estão.

Voltemos a 1935. O Brasil vive dias turbulentos, de muita divisão política. Mesmo reprimido desde sua fundação, em 1922, o Partido Comunista tem forte influência entre sindicatos de trabalhadores, entre estudantes, artistas, intelectuais, e sonha com a revolução proletária.

O integralismo, movimento de inspiração fascista, influenciado por ideais de extrema direita que se espalham pela Europa, seduz setores da classe média com o lema Deus, Pátria e Família, e também almeja o poder. É neste cenário que a arquitetura vive um grande embate, com a luta por espaço entre arquitetos acadêmicos e modernos.

CONCURSO E DISPUTAS

No Rio, então a capital da República, o presidente Getúlio Vargas decide construir um edifício para o Ministério da Educação e Saúde (MES), mas não um edifício qualquer. O prédio, mais tarde conhecido como edifício do MEC (Ministério da Educação e Cultura), deve mostrar ao mundo um país em transformação e um governo desenvolvimentista.

Um concurso público é organizado, com a participação de renomados escritórios de engenharia e arquitetura. Um dos concorrentes de peso é o cearense Archimedes Memória, vinculado à tradição clássica.

Discípulo de Heitor de Mello (1875-1920), Memória tinha no currículo projetos marcantes na paisagem carioca, em parceria com seu sócio Francisque Cuchet. Entre eles, o Palácio Tiradentes, sede da então câmara federal; o Palácio Pedro Ernesto, sede da câmara municipal; o Hipódromo da Gávea; a sede do Botafogo de Futebol e Regatas. Além disso, introduziu novas técnicas construtivas na arquitetura, e havia sido diretor da Escola Nacional de Belas Artes (voltaria a ser, em 1938). Em 1922, foi autor, com Francisque Cuchet, do plano urbanístico da Exposição Internacional do Centenário da Independência.

Com tamanha bagagem profissional, Archimedes Memória jamais esperou que a decisão do júri, concedendo-lhe o primeiro lugar, não fosse acatada, como aconteceu.

O Projeto Pax, com o qual ganhou o concurso para a construção do Ministério da Educação e Saúde, decepcionou o ministro daquela pasta, Gustavo Capanema, que atualmente dá nome ao prédio.

Foto: Reprodução

O projeto Pax, do arquiteto Archimedes Memória, foi rejeitado por Gustavo Capanema, com apoio do poeta Carlos Drummond de Andrade, que era chefe de gabinete do ministro.

Depois de consultar assessores e buscar pareceres técnicos, Capanema tomou uma decisão que logo se transformou em polêmica nacional: pagou o valor do prêmio a Archimedes Memória, mas rejeitou seu trabalho. Convocou, então, o arquiteto Lúcio Costa, ex-aluno de Memória na Escola Nacional de Belas Artes, que concebeu o projeto que conhecemos, com a participação de Affonso Eduardo Reidy, Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos e consultoria do arquiteto franco-suíço Le Corbusier.

O resultado foi um marco da arquitetura moderna brasileira, e um dos maiores símbolos dessa arquitetura no mundo. Além do projeto arrojado, o prédio, tombado pelo Iphan, tem jardins de Burle Marx, azulejos e painéis de Portinari, esculturas de Bruno Giorgi, Adriana Janacópulos, Celso Antônio, pinturas de José Pancetti e Alberto Guignard, entre outros artistas. O edifício principal é sustentado por colunas de 10 metros de altura, o que ressalta a monumentalidade da obra.

ESQUERDA X DIREITA

Talvez nunca venha a se saber, com precisão, se a rejeição de Capanema ao projeto de Archimedes Memória deveu-se apenas a questões estéticas ou se pesou também o lado político-ideológico. Archimedes Memória era membro da Câmara dos Quarenta, órgão máximo da Ação Integralista Brasileira, o Partido Integralista, de extrema direita.

Na outra ponta do embate que se então se travava, na arquitetura e na política, muitos artistas e intelectuais, entre eles arquitetos, militavam no campo da esquerda, ligados ao Partido Comunista, inclusive no Ministério da Educação. Não era o caso do ministro Capanema, mas ele pode ter sido influenciado por amigos a não permitir que um arquiteto vinculado a um partido com inclinações fascistas fosse o autor de uma obra de tamanha importância e forte simbolismo para o governo, como o Ministério da Educação.

No livro Archimedes Memória – o último dos ecléticos (Editora e Livraria Brasil Ltda.), seu neto, o também arquiteto Péricles Memória Filho, descreve assim o projeto rejeitado:
“O projeto Pax de Archimedes seduziu o júri pela sua boa solução de circulações cruciformes e curtas, e boas soluções para o problema de regulação térmica. […] Suas fachadas apresentavam volumetria instigante, com cheios e vazios alternados de forma harmônica, pouco adornada, ensejando leitura cubista e geométrica, e que, embora não muito alta, era verticalista, denotando certa influência do art déco pela sua monumentalidade.”

DRUMMOND ENTRA EM CENA

O arquiteto e antropólogo Lauro Cavalcanti é autor do livro Dezoito graus: a biografia do Palácio Gustavo Capanema. Em artigo no jornal O Globo, de 01/10/2018, ele afirma que o que pesou mesmo foi a questão estética. Cavalcanti considera “passadista” o projeto de Archimedes Memória e diz que o poeta Carlos Drummond de Andrade, assessor de Capanema, teve grande influência na construção do prédio que temos hoje:
“Um concurso escolheria a nova sede do Ministério da Educação. Carlos Drummond, chocado com o primeiro prêmio atribuído a um projeto passadista mesclando Grécia com a Ilha de Marajó, convenceu o ministro Gustavo Capanema a pagar-lhe o prêmio, mas convidar o jovem Lúcio Costa para desenhar a sede. Afinal, de que modo poderiam, aboletados numa fantasia heleno-amazônica, gestar uma nova cultura para o país?”

Em artigo publicado na revista Módulo, de setembro de 1975 , com o título O Ministro que desprezou a rotina, Carlos Drummond de Andrade defende a atitude de Capanema ao rejeitar o projeto de Archimedes Memória:
“Pagando a seu autor o prêmio devido, e obtendo do Presidente da República a anulação do concurso que aprovara tal projeto, Capanema partiu corajosamente para uma solução revolucionária: encomendou a jovens arquitetos, imbuídos de ideias novas, o projeto que viria a concretizar-se na obra hoje reverenciada pelos mestres da arquitetura universal.”

No mesmo artigo da revista Módulo, Drummond transcreve uma carta de protesto enviada por Archimedes Memória ao presidente da República, na qual, revoltado, o arquiteto deixa vir à tona seu posicionamento político reacionário, de extrema direita. Além de protestar contra a atitude do ministro Capanema, Memória acusa Lúcio Costa e outros arquitetos de serem comunistas e de agirem no Ministério da Educação com a proteção de Drummond:
“Esses elementos deletérios se desenvolvem justamente à sombra do Ministério da Educação, onde têm como patrono e intransigente defensor o Sr. Carlos Drummond de Andrade, chefe do gabinete do Ministro.”

REFÚGIO NA ESPIRITUALIDADE

Os dissabores de Memória com o episódio do concurso também são relatados livro do neto do arquiteto, Péricles Memória Filho. O autor diz que seu avô ficou abalado de tal maneira que se desiludiu com a profissão:
“Archimedes iniciou então seu processo de “enclausuramento”, aprofundando-se em leituras filosóficas e religiosas. Seu escritório estava por um fio. Não havia mais ânimo para continuar. Enclausurou-se no Mosteiro de São Bento por seis meses, para aprofundar seus estudos em filosofia, religião e espiritualidade, acabando por desenvolver sólida base na linguagem da arquitetura de templos católicos.”

Ainda assim, além de dar continuidade à vida acadêmica, como diretor da Escola Nacional de Belas Artes, Archimedes Memória não abandonou a arquitetura. No mesmo ano do concurso, 1935, ele e seu sócio Francisque Cuchet fizeram o projeto da Igreja de Santa Teresinha do Menino Jesus, em Botafogo. O templo é considerado um dos mais belos exemplos do estilo art déco em edifícios religiosos do Rio de Janeiro.

Archimedes Memória morreu em decorrência de um acidente vascular cerebral em 20 de setembro de 1960 e foi sepultado no cemitério São João Batista. Em 1991, recebeu a Medalha Tiradentes “post mortem” da Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro. Entrou para a história como um dos maiores nomes da arquitetura das primeiras décadas do século 20, e também como um dos protagonistas da disputa pelo domínio da cena arquitetônica no Brasil dos anos 1930, batalha na qual saiu derrotado.