23/10/2009
“Quem será este crioulo / Este herói popular /Que João Bosco cantou/ Para quem Morel arrumou /Na história um lugar”. O cordel de autoria de Clóvis Correia, editado em 1982 pelos religiosos, seminaristas e padres negros do Rio de Janeiro, se refere a João Cândido, marinheiro que liderou a Revolta da Chibata, em 1910, se insurgindo contra os maus-tratos praticados contra os praças da Marinha de Guerra do Brasil.
O episódio, encarado até hoje como um tabu na História brasileira, teve o primeiro relato consistente publicado pela editora Pongetti, em 1959, no livro “A Revolta da Chibata”, do jornalista Edmar Morel. Desde então, a obra teve mais três edições: pela Letras e Arte, em 1963; e pela Graal em 1979 e 1986. Agora, em virtude dos 50 anos da primeira publicação, uma edição comemorativa organizada pelo neto do jornalista, o historiador Marco Morel, será lançada pela editora Paz e Terra, no dia 26 de outubro, na livraria Argumento, do Leblon.
O volume traz um novo material iconográfico e uma série de notas explicativas feitas por Marco Morel sobre acontecimentos e personagens presentes no livro, atualizando informações. Outra novidade é a publicação das memórias de João Cândido na forma de Apêndice, material ao qual o jornalista não teve acesso na época em que escrevia o livro:
— Essas memórias foram originalmente publicadas em 12 capítulos na Gazeta de Notícias, em 1913. Fui encontrar este material na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo. No livro, o João Cândido disse ao meu avô que as memórias estavam desaparecidas, embora soubesse que tinham sido publicadas, inclusive com o seu consentimento. Acredito que ele omitiu esta informação pelo fato de as memórias terem saído com algumas distorções que o desagradaram.
Castigos físicos
Segundo Marco Morel, Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a prática dos castigos corporais era uma tradição arraigada na Marinha de vários países, sendo que, em 1910, apenas o Brasil ainda mantinha a chibata como instrumento punitivo da marujada:
— Os oficiais não estavam tão interessados na melhoria das relações de trabalho. Não os interessava a suspensão do uso da chibata, devido à mentalidade escravocrata que vigorou no Brasil durante longo período e que ainda se encontrava forte naquela sociedade oligárquica recém-saída da escravidão.
Enquanto o Marechal Hermes da Fonseca tomava posse na Presidência da República (15 de novembro de 1910), os praças da Marinha de Guerra planejavam a insurreição contra os castigos físicos a que eram constantemente submetidos. Constava também da pauta de reivindicações a melhoria dos salários e da qualidade da alimentação.
A revolta, programada inicialmente para o dia da posse do novo Presidente, só ocorreu no dia 22 de novembro, após o marinheiro Marcelino Rodrigues ter recebido 250 chibatadas a bordo do encouraçado “Minas Gerais”. Iniciado neste navio, o motim se estendeu rapidamente a toda a esquadra, num total de 2.379 marinheiros rebelados.
Tabu
Acervo da fundação Biblioteca Nacional |
Edmar Morel e João Cândido |
Para Marco, o episódio colocou abaixo todo um sistema de dominação vigente, causando uma espécie de trauma nos setores mais conservadores e preconceituosos da sociedade brasileira, que se reflete até hoje:
— Este assunto ainda é encarado como um tabu, pois todas as formas de opressão que os marinheiros combateram em 1910 estão presentes hoje no Brasil sob outras aparências, como a violência armada do Estado nacional contra as camadas pobres da população, o racismo, a desigualdade social, o discurso de que os setores subalternos são inferiores culturalmente. Tanto que, no ano passado, a Marinha de Guerra soltou uma nota sobre a revolta, publicada na Folha de S. Paulo pelo Marcelo Beraba, repudiando o episódio e utilizando os mesmos termos preconceituosos do passado.
Essa visão conservadora dos fatos foi contestada por Edmar Morel, que, ao escrever o livro, consolidou uma linha interpretativa oposta, de caráter humanista:
— Ele trouxe o episódio e os personagens para fazerem parte da nossa História, considerando a revolta como um ato em busca da dignidade humana e da justiça social. Colocou os marinheiros negros e pobres como protagonistas dos acontecimentos, assumindo uma atitude corajosa em relação ao passado e ao presente, ao enfrentar a permanência de um sistema injusto de dominação que era forte na época do meu avô e que persiste ainda hoje.
O historiador conta que o avô decidiu se dedicar ao tema há 50 anos ao constatar que todos aqueles que tentavam escrever sobre a revolta tinham sofrido represálias, principalmente durante o Estado Novo, época em que era formalmente proibido abordar o assunto. Com Edmar Morel, não foi diferente:
— Após a publicação do livro, ele teve os direitos políticos cassados em 1964 a pedido dos próprios oficiais da Marinha. Sofreu uma série de sansões e nunca mais conseguiu sobreviver como repórter. Passou a se sustentar trabalhando com relações públicas e assessoria de imprensa. Mas ele era muito orgulhoso e dizia, assim como o João Cândido, que se tivesse que fazer tudo de novo, faria sem hesitação.
Imprensa racista
Marco Morel |
A imprensa brasileira, segundo Marco, foi praticamente unânime ao condenar a revolta, à exceção do Correio da Manhã, que realizou uma cobertura imparcial, rechaçando veementemente a violência com que foram reprimidos os revoltosos já anistiados:
— Os jornais extravasavam muito preconceito racial em charges, caricaturas, artigos e editoriais. Isto eu pude constatar nas últimas pesquisas que empreendi para o Projeto Memória “João Cândido — A luta pelos direitos humanos”. O conservadorismo da nossa imprensa já não é de hoje.
No exterior, o episódio também teve ampla repercussão. Em sua grande maioria, a imprensa estrangeira reproduziu o mesmo discurso racista que vingou por aqui. Como exemplo, Edmar Morel cita no livro a seguinte nota publicada pelo jornal italiano A fanfulla: “É bem doloroso para um País forte e altivo ter de sujeitar-se às imposições de negros e mulatos que, senhores dos canhões, ameaçavam a Capital da República”.