19/10/2025

Entre o final do século XVI e o início do século XVIII, o estado de Alagoas atual serviu de palco para uma verdadeira epopeia, encarnada pelos combatentes do Quilombo dos Palmares. Ao questionar toda uma estrutura que poderíamos denominar de igualitária, a qual prevalece até meados do século XVI, o colonialismo português abre a via para a sociedade de classes no Brasil: no lugar das roças indígenas, o latifúndio; no lugar dos homens livres, os escravos.
O Quilombo representa para os escravos negros, índios, mestiços e brancos pobres – para os que não tinham, enfim, vez nem voz na sociedade colonial – acima de tudo uma alternativa de vida. De uma vida sem perseguições nem espoliações. Contrastando com a penúria generalizada na Colônia, praticamente mergulhada na monocultura do açúcar, existia em Palmares um aparelho produtivo capaz de satisfazer não apenas as necessidades materiais dos membros da comunidade, como também gerar um excedente, negociado junto aos vilarejos coloniais vizinhos. A própria documentação portuguesa atesta isso.
Essa primeira tentativa concreta de superação da realidade colonial foi finalmente esmagada pelas forças portuguesas e pelas tropas arregimentadas pelos senhores de engenho e escravos de várias capitanias. As forças coloniais mobilizaram nada mais nada menos do que 14 mil homens nessa empreitada.
Não obstante isso, a compreensão do que se passou nas florestas que se estendiam do cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, até o norte do curso inferior do rio São Francisco, em Alagoas, se revela de extrema importância: o Quilombo dos Palmares logrou construir uma comunidade conduzida com autonomia pelos ex-escravos e homens livres que ali nasceram.
Convém examinar, além das formas de organização material do Quilombo (trabalho livre, propriedade comunitária da terra), a complexa questão do território efetivamente controlado pelos quilombolas. Um território frequentemente invadido, depredado. Trata-se, na realidade, de uma sociedade acossada.
Nesse contexto, as forças produtivas não têm como se expandir além das atividades de subsistência e se encontram, de fato, bloqueadas. Em Palmares, vigora uma forma social de produção algo coletivizada, cuja especificidade maior consiste em ser transitório e em servir de refúgio para os perseguidos e espoliados da sociedade oficial. A segurança e a sobrevivência, a guerra e o medo – eis os verdadeiros motores da comunidade palmarina.
Zumbi dos Palmares foi o grande nome dessa epopeia. Ao aceitar o confronto final em Macaco, capital do Quilombo, no ano de 1694, Zumbi provavelmente não via outra saída para si e o movimento que ele liderava. Ou seja, fora até o limite de suas forças. Mas essas mesmas forças esbarravam nas chamadas condições históricas objetivas. Afinal, a ordem escravista não dava aos escravos rebelados aquelas condições mínimas para abatê-lo. Ou seja, a realização de uma política de alianças que fosse além do próprio estamento escravista, submetido, de outra parte, a constantes renovações de natureza demográfica, devido à curta duração do ciclo de vida do escravo.
Ora, isso dificultava sobremaneira a formação de uma memória de classe. A transmissão indispensável de experiências. Além do que, os próprios escravos se dividiam entre trabalhadores produtivos – que operavam nos engenhos e no corte da cana-de-açúcar – e trabalhadores domésticos. Isso, para não aludirmos aos diferentes horizontes étnicos presentes no Quilombo. De toda forma, Zumbi e seus companheiros nos deixaram uma grande lição: criaram um Brasil não-oficial, em contraposição ao Brasil oficial, um projeto estatal português sem dúvida. Mesclando culturas e experiências as mais diversas.
Em Palmares, surgia uma Nação chamada Brasil, ainda que às avessas. E, ainda hoje, a luta desses homens ecoa, forçando em todos nós um justo sentimento de admiração.
Ivan Alves Filho