22/08/2005
Defensor do estilo, da ética e da notícia
José Reinaldo Marques
19/08/2005
Para o carioca Luiz Garcia, a boa literatura ajuda o jornalista a usar as palavras e fazer do texto algo que realmente fascine o leitor. Até porque, na sua opinião, “escrever é sempre um ato de presunção” e todo emissor de informações deve estar muito atento à sua capacidade de comunicação.
Com 52 de anos de profissão, Luiz Garcia começou a carreira numa época em que os jornais eram verdadeiros guetos de partidos políticos e pouco profissionalizados. Estreou como estagiário na Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda. Mais tarde, após rápida passagem pelo Globo como copidesque, dirigiu a sucursal carioca do Estadão — “por intermediação do Odylo Costa, filho, fui convidado pelo Prudente de Moraes, neto; fiquei lá cinco anos” — e participou do lançamento da Veja, em 1968. Chefiou a redação da revista no Rio, comandou o escritório da Abril em Nova York, voltou ao Brasil e manteve-se como um dos editores-chefes da revista por quatro anos, até se transferir para a Visão. Quando esta foi vendida, em 1974, voltou para o Globo, onde está até hoje.
ABI Online — Qual é a sua formação acadêmica?
Garcia — Completei o que na época se chamava de curso Científico, mas já então trabalhava em jornal. Naquele tempo não havia o registro profissional, que veio muito tempo depois. Eu então completei o secundário como foca na Tribuna da Imprensa, onde trabalhei muitos anos. Depois consegui uma bolsa na Universidade de Columbia (EUA), para um curso que é o equivalente ao mestrado, mas, como não tinha a graduação formal, eu o completei como uma espécie de estudante especial.
ABI Online — Quando e como ingressou no jornalismo?
Garcia — Comecei pelas relações de amizade da minha família com o jornalista Carlos Lacerda, dono da Tribuna. Fomos seus vizinhos em Copacabana. Meu pai era pediatra e tratava dos filhos dele. Então, quando decidi começar a trabalhar, pedi-lhe uma oportunidade. Comecei em fins de 1953 e fui foca na Reportagem cerca de um ano e meio, mas naquele tempo os estágios nos jornais eram inteiramente amadorísticos e eu então, como filho de amigo, não tinha a menor remuneração.
ABI Online — Era um procedimento comum?
Garcia — No início da década de 1950, os jornais eram muito mais veículos de projetos políticos do que de outra coisa e funcionavam com poucas pessoas. É difícil para o jornalista e o leitor de hoje imaginar. Uma edição completa da Tribuna da Imprensa saía com no máximo 18 páginas.
ABI Online — Mas um estreante conseguia aprender as técnicas do jornalismo?
Garcia — Apesar do improviso, naquele período já começava a se desenvolver a técnica de lead, que foi trazida ao Brasil por dois jornalistas brasileiros: o Lacerda, na Tribuna da Imprensa, onde quase não era notada por causa da linha editorial extremamente política; e o Pompeu de Souza, no Diário Carioca.
ABI Online — E quando acabou o estágio?
Garcia — Fui contratado para Reportagem Geral e, aos 25 anos, fui exercer a função de chefe de Redação. Não tinha experiência para exercer a função, mas essa bagunça era então uma característica dos jornais, que não eram empresarialmente organizados. Mesmo assim, circulavam no Rio cerca de 20 jornais diários. Fechava um, abria outro; e poucos foram aqueles de que a gente pode se orgulhar de terem dado uma grande contribuição à imprensa.
ABI Online — Quais eram estes?
Garcia — Um era o Correio da Manhã, ligado à UDN, pela sua tradição e o estilo literário das pessoas que trabalhavam lá, como o Antônio Callado e o Otto Maria Carpeaux. Posso apontar também o Diário Carioca, pela inovação, a agilidade e o bom humor.
ABI Online — Quando os donos de jornais perceberam que era preciso reformular, para não perder credibilidade e leitores?
Garcia — Acho que no fim dos anos 50, com a reforma do Jornal do Brasil, que iria se transformar no melhor de todos eles. Gradativamente, mudaram também a Tribuna e a Última Hora. O resto era estilo “banho de sangue”.
ABI Online — Como foi sua passagem pela Veja?nbsp;
Garcia — Era muito amigo do Odylo Costa, filho, diretor da Editora Abril no Rio, e ele me chamou para chefiar a Redação da revista, que ia ser lançada. Isso foi em 1968. Um ano depois, fui ser correspondente da Veja em Nova York. Por isso até não sou testemunha dos anos mais difíceis que a imprensa passou sob a ditadura militar.
ABI Online — Em que função fez sua estréia no Globo, em 74?
Garcia — Cheguei sem ter uma função definida, mas comecei como subeditor-chefe, que era um cargo que podia servir para tudo. Naquela época as redações ainda não eram estruturadas por editorias. Então, um editor ou chefe de reportagem acumulava várias funções. No Globo, que era um jornal grande, havia um chefe de reportagem, Alves Pinheiro, que mandava no jornal inteiro. Somente mais tarde, talvez por influência da imprensa norte-americana e européia, é que os jornais passaram a funcionar com a segmentação das editorias, o que coincide também com o surgimento da Veja, que era subdividida por áreas de especialidades.
ABI Online — Qual foi o impacto dessa mudança na imprensa brasileira?
Garcia — Começava ali a despedida do caráter amadorístico que ela carregava desde o início. Quando comecei, a grande maioria dos periódicos brasileiros era a expressão das ambições dos seus donos. Falar no Estado de S. Paulo era se referir ao jornal dos Mesquita; no Globo, o veículo do Roberto Marinho; Última Hora, Samuel Wainer; e assim por diante. Com o desenvolvimento da imprensa em relação às suas comunidades, à indústria e à exigência dos leitores, tudo ficou mais profissional. O empreendedor descobriu que ganhava mais dinheiro fazendo do seu jornal um instrumento a serviço dos interesses dos leitores — que passariam a se multiplicar e a contribuir com o aumento de anunciantes — do que simplesmente um instrumento de uma vontade política, que funcionava como auxiliar de uma atividade empresarial.
ABI Online — Esta foi a grande descoberta do empresariado da mídia no início dos anos 60?
Garcia — Exatamente. De repente se descobriu que o jornal podia ser uma grande empresa economicamente bem-organizada e que, quanto mais credibilidade tivesse juntamente ao leitor, mais iria faturar. Essa mudança de comportamento das empresas jornalísticas coincide com a conscientização da população em relação aos direitos do consumidor e os jornais perceberam que deveriam cumprir o papel de defensores desses direitos. Foi uma revolução na imprensa, porque diminuiu brutalmente o número de jornais. Os picaretas foram todos jogados no escaninho e os que buscavam a credibilidade começaram a ter vantagem, porque passaram a prestar um serviço social mais adequado. Esses foram os benefícios quando os empresários começaram a adquirir a consciência de que deveriam ser mais associados ao bem-estar das comunidades.
ABI Online — Esta linha de pensamento se mantém?
Garcia — O Globo pratica esses princípios há muitos anos e é próspero. Já o Jornal do Brasil, que deixou de agir dessa maneira, foi para o buraco com uma rapidez extraordinária.
ABI Online — Recentemente, o senhor fez um alerta sobre as tentativas de manipulação dos meios de comunicação. Por quê?
Garcia — A tentativa de chantagem é muito fácil de acontecer. Uma pessoa chega e oferece dinheiro, em troca de uma vantagem qualquer. Mas fica mais complicado se aproximar do jornalista e ofertar uma notícia exclusiva, porque nesse caso o repórter, ou o colunista, não se sente ofendido nos seus escrúpulos e acaba cedendo em função de contar com uma informação privilegiada. Isto acontece sem que o profissional perceba que aquela nota exclusiva atende aos interesses espúrios do grupo A contra os do grupo B — e esse não é o papel do jornalista. Precisamos ter uma vigilância extrema para saber quando aceitar ou rejeitar uma informação, especialmente hoje, quando há tanto araponga por aí ganhando dinheiro vendendo matéria para jornal.
ABI Online — O Globo adotou algum mecanismo para se defender desse tipo de assédio?
Garcia — De uns tempos para cá, instituímos o seguinte: qualquer informação sensacional, espetacular que chegue de graça à redação deve ser encarada como ponto de partida de uma apuração e não como matéria pronta. É claro que, para a imprensa de modo geral, às vezes a notícia é tão saborosa que escapa. Alguns editores são mais rigorosos que outros e há os que acham que se deve publicar tudo, deixando o julgamento por conta do leitor. Eu sou da escola do maior rigor, pois entendo que qualquer denúncia é o ponto de partida de uma apuração e que incorre em grave erro o jornalista que acha que resolve esse problema ouvindo os dois lados.
ABI Online — É preciso ir mais além?
Garcia — Com certeza, porque escutar os dois lados é necessário, mas nesse caso é a forma mais preguiçosa do mundo de fazer jornalismo. O repórter tem que ouvir as duas fontes, mas deverá apurar muito bem quem está com a verdade.
ABI Online — Essa seria então a melhor linha de ação para se fazer jornalismo investigativo sem riscos e medo de ameaças?
Garcia — Devemos resistir a intimidações até por questões de sobrevivência, mas é preciso também evitar as tentativas de preencher a publicação com acusações. O dever da imprensa é defender o interesse público quando este está em jogo e o fato é comprovado. Pois notícia é: alguém disse, nós fomos checar e é verdade. O direito à privacidade também deve ser respeitado. No Brasil, os políticos raramente envolvem os parentes na campanha eleitoral, ao contrário dos Estados Unidos. Lá, se o repórter descobre que o político que posava de chefe de família exemplar bate na mulher e chuta o cachorro, isso é notícia legítima, porque ele transformou a vida particular em domínio público.
ABI Online — O senhor se lembra de algum episódio ocorrido no Brasil?
Garcia — Todo mundo respeitou, com uma única exceção, o fato de que o Fernando Henrique Cardoso tem um filho com uma jornalista. Ninguém dava a notícia porque a moral pessoal do ex-Presidente nunca fez parte de seu capital para conquistar votos. Agora, quando o Itamar Franco apareceu de porre num desfile de escola de samba, que é público, a coisa foi diferente.
ABI Online — Quanto à questão da preservação da fonte, a repórter do New York Times que foi presa agiu certo?
Garcia — Ela está absolutamente correta e é muito curioso que isso tenha acontecido nos EUA, onde a liberdade de imprensa, de maneira geral, sempre foi respeitada. Esse caso mostrou que eles têm uma lei muito retrógrada e só teve grande repercussão porque a Judith Miller é famosa. Mas todo ano vários jornalistas vão para a cadeia por decisão judicial.
ABI Online — O que o senhor acha da decisão do Governo Bush de vetar um projeto de lei que protege o jornalista da obrigação de revelar as suas fontes?
Garcia — Está perfeitamente de acordo com a personalidade do Presidente dos EUA, que é autoritário e tenta controlar os meios de comunicação e a opinião pública. É um governo de direita no sentido mais clássico e antigo que eu conheço.
ABI Online — Ser articulista de um grande jornal fazia parte dos seus planos?
Garcia — Não, porque eu morro de medo da falta de assunto. Há muito eu faço a crítica diária do jornal, mas já estou pensando em deixar uma das duas coisas.
ABI Online — Por quê?
Garcia — Porque ando meio cansado. Mas fico na dúvida, porque o que me dá mais prazer é fazer o artigo, mas é na crítica do jornal que tenho mais leitores.
ABI Online — Suas críticas são bem-recebidas pelos colegas de redação?
Garcia — Sim, porque também faço elogios e, se erro, peço desculpas. Não sei de casos de irritação. Em geral, quem não gosta me fala e briga comigo e, no fim, fazemos as pazes.
ABI Online — Numa entrevista, o senhor disse que “escrever é sempre um ato de presunção”. Por quê?
Garcia — Porque você presume uma capacidade de comunicação, que é uma coisa extremamente complicada. Às vezes, entendemos o significado de algumas palavras quando as pronunciamos. Quando as escutamos, porém, elas podem ser interpretadas de outra maneira. O valor de um texto está no receptor e não no emissor. Então, a idéia de escrever um artigo assinado é uma demonstração de presunção do autor, que acha que pode ser corretamente entendido por todo mundo.
ABI Online — O senhor sempre foi um bom redator?
Garcia — Sempre fui muito tímido e, nos primeiros anos da minha formação profissional, era uma porcaria de repórter. Então, eu me refugiava no texto para compensar minhas deficiências na apuração.
ABI Online — Ficou mais fácil escrever com o computador e a fotocomposição?
Garcia — As ferramentas acopladas à máquina, como dicionário e sites de pesquisa, ajudam o jornalista a escrever. Houve também uma mudança no estilo das matérias.
ABI Online — Em que sentido?
Garcia — Antigamente, como a paginação não era uma arte exata, os dados mais importantes não podiam ficar no pé da matéria, porque na oficina, se os textos estivessem estourando na página, o paginador os cortava e a compreensão da notícia podia ficar comprometida. Isso não existe mais. Hoje a tecnologia permite que você deixe para o fim o que o texto tem de mais de surpreendente.
ABI Online — E como ficam o lead e o sublead?
Garcia — Hoje defino o lead como aquilo que faz o leitor continuar lendo. Há poucos anos, um jornal norte-americano fez uma experiência: durante 15 dias publicou uma página contando uma história escrita em quatro estilos diferentes. Somente o primeiro texto foi construído no da pirâmide invertida, com lead e sublead. Quando os leitores foram consultados, o formato tradicional ficou em terceiro lugar na sua preferência.
ABI Online — Qual é a sua opinião sobre o ensino do Jornalismo nas universidades brasileiras?
Garcia — Imaginar que os jovens repórteres estão sendo bem-treinados nas escolas de Jornalismo esconde uma armadilha, pois isso não é verdade. Aqui no Globo, abrimos a cada seis meses um concurso para estagiários e, entre 350, apenas 15 conseguem ser classificados para o curso de trainee que criamos. Isso prova que o ensino do Jornalismo não é de alta qualidade. Inclusive, sofremos muito com a falta de pessoas de outras profissões na redação.
ABI Online — Como assim?
Garcia — Gente formada em História, Ciência Política e Literatura, por exemplo. É claro que 80% do corpo de uma redação devem ser montados com profissionais de formação jornalística básica, mas precisamos de ajuda nessa difícil tarefa de administrar, escolher e editar informações muito variadas.
ABI Online — O senhor é contra a exigência do diploma de Jornalismo?
Garcia — Sim, mas sou a favor da exigência de um diploma universitário e de maior competitividade entre as faculdades de Jornalismo, dando-lhes a liberdade de ter currículos diferenciados.
ABI Online — Por quê?
Garcia — Porque os veículos são obrigados a contratar pessoal com formação uniforme para uma profissão que lida com uma grande variedade de conhecimento. O modelo tradicional diminui a capacidade de se preparar profissionais que já viriam da universidade com um certo grau de especialização, ou seja, em História para a editoria de Política, ou em Ciência Natural para atuar no noticiário científico.
ABI Online — Em 1992 foi lançado o “Manual de redação e estilo” do Globo, que o senhor ajudou a organizar. Ele é bem-utilizado no jornal?
Garcia — Creio que sim. Ele foi criado para a ajudar o jornalista a desenvolver seu próprio estilo e não para padronizar o estilo do jornal. No entanto, como numa grande redação há um alto índice de rotatividade de profissionais, é difícil saber o grau de importância dado ao manual. Muita gente gosta e também sou procurado por advogados que recorrem ao manual para criar seus textos.
ABI Online — Em que estágio se encontra o jornalismo brasileiro?
Garcia — No sentido da ética, melhorou, mas ainda apresenta alguns defeitos. Os veículos ainda não sabem administrar bem essa questão, não conseguiram superar os preconceitos que são da própria sociedade. Ao invés de reagir a eles, acabam absorvendo-os.
ABI Online — As CPIs dos Correios e do Mensalão têm sido noticiadas com a devida isenção?
Garcia — A cobertura é boa, mas, como já disse, devido ao excesso de denúncias prontas que chegam às redações, principalmente por causa de um mercado que se tornou altamente competitivo, nem sempre há tempo para administrar corretamente o fluxo de informações. As revistas semanais, por exemplo, ao mesmo tempo em que são autoras de grandes revelações, cometem muitas gafes, porque publicam quase integralmente as denúncias que recebem.
ABI Online — De que maneira essas gafes podem ser evitadas?
Garcia — É muito simples: é só tratar as denúncias como pautas e não como matérias prontas. Esse mecanismo de tirar do fato a informação e transformá-la em notícia nós conhecemos e executamos há muitos anos, com a melhor das intenções, mas ainda de forma deficiente. A sorte é que ainda não surgiu coisa melhor.