Banner 1
Banner 2
Banner 3

Entrevista – Eliane Brum


05/02/2010


Eliane Brum — a colecionadora de prêmios

Eliane Martins

Uma das mais premiadas jornalistas brasileiras, Eliane Brum, 43 anos, repórter especial da revista Época desde 2000, está esbanjando felicidade deste o último dia 28. Afinal, ela foi uma das ganhadoras do 27º Prêmio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha pela reportagem “O Islã dos Manos”, publicada em fevereiro do ano passado, sobre a presença da religião islâmica nas periferias de cidades brasileiras. Essa premiação é concedida pela Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento(AECID), em parceria com a agência EFE. Ao todo, foram 161 trabalhos inscritos, sendo 42 do Brasil. Eliane venceu e receberá o prêmio das mãos do Rei Juan Carlos I, em data ainda a ser definida. Mas a festa pode não parar por aí, já que ela está indicada para o Troféu Mulher Imprensa na categoria Repórter de Revista e a votação vai até o dia 19 de fevereiro.

Nascida e criada na pequena cidade de Ijuí (RS), com 21 anos de profissão, Eliane Brum já acumula uma enorme bagagem de prêmios que somam mais de 40, entre os quais os mais importantes do país como Esso, Vladimir Herzog, Ayrton Senna, Ethos, Líbero Badaró e Sociedade Interamericana de Imprensa. A jornalista tem ainda três livros publicados — “Coluna Prestes – O Avesso da Lenda”(1994), “A vida que ninguém vê”(2006) e “O Olho da rua” — e assina a direção do documentário “Uma história Severina”, que conta a trajetória de uma nordestina que teve o destino alterado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal.

E se depender de disposição e amor pelo trabalho, Eliane Brum vai continuar sua trajetória de sucesso: Quer escrever outros livros de reportagens e se envolver com o cinema, de novo.

Em entrevista exclusiva ao ABI Online, a jornalista fala de sua trajetória profissional, da emoção com as premiações e indicações, de seu amor e dedicação à família e ao jornalismo, e ainda dá dicas para quem quiser seguir seus passos na profissão:

— Escutar, escutar e escutar. As pessoas valorizam muito as perguntas. Mas esquecem que têm de aprender a escutar as respostas — enfatiza.

ABI OnlineSemana passada, você recebeu o Premio Internacional Rei de Espanha de Imprensa pela reportagem “O Islã dos Manos”, publicada há um ano, e está indicada para o Troféu Mulher Imprensa na categoria Repórter de Revista. O que sente a cada indicação e a cada premiação? Fale um pouco desse prêmio mais recente e dessa indicação.

M. Min-Revista Época

Islã na Laje

Eliane Brum — Naqueles prêmios que só dizem o resultado na hora, eu fico com um iceberg na barriga. E sempre com um dilema: querendo muito ganhar e ficando muito tímida na hora de subir no palco. A necessidade de fazer discursos sempre me assombrou. Eu costumava dizer obrigada, tremendo, e saía quase correndo. Agora melhorei um pouco. Quando ganhei o Rei de Espanha, na quinta passada, fiquei tão feliz que não consegui comer o dia inteiro. Eu saltitava para lá e para cá. Não parava quieta nem conseguia me concentrar em nada. Fiquei muiiiiiito feliz. Estou feliz até hoje. E vou continuar feliz por muito tempo. Eu aproveito bem os momentos de felicidade, espicho…

Lá em casa nós comemoramos tudo. Comemoramos as matérias quando são publicadas — já que toda a família sofre com o meu humor…(risos) —, comemoramos as indicações e comemoramos quando eu ganho. O João, meu marido, me dá flores e tomamos vinho. Meus pais e meu irmão mais velho, que também mora em Ijuí (interior do RS), divulgam nos jornais e rádios da cidade. Minha mãe chega ao cúmulo de xerocar minhas matéria e distribuir entre os conhecidos. Ainda bem que eu moro em São Paulo (risos).

Quando não ganho, eu comemoro também, porque sempre tem uma festa e eu encontro um monte de amigos que moram em outros estados. Eu lido bem com ganhar e perder. Mas, claro, quando ganho, fico em estado de graça por uns dias.

Quanto ao Troféu Mulher imprensa, é muito legal porque são as pessoas que votam. É bacana saber que a gente é lembrada, valorizada. É uma coisa quentinha.

ABI OnlineMas é verdade que você é tímida?

Eliane Brum — Siiiiiiim. Minha mãe diz que eu sou uma tímida espalhafatosa. Mas é uma implicância dela ainda dos meus tempos de adolescência. Eu gosto dos cantos. E de ficar olhando. Não sou muito de falar. Mas, nos últimos anos, por conta dos livros, comecei a dar palestras e oficinas. E já estou bem mais soltinha. Agora, sou quase uma ex-tímida.

ABI OnlineAos 43 anos de idade, como se sente já tendo recebido mais de 40 prêmios ao longo de sua carreira jornalística?

Estágio da editoria de polícia da zero hora, em 1988

Eliane Brum — Cada prêmio é uma história. Eles me lembram de cada reportagem. E cada reportagem é um pedaço da minha vida nestes últimos 21 anos. O primeiro prêmio que eu ganhei foi no final da faculdade (PUC/RS). Eu fiz uma reportagem sobre filas – todas as filas que as pessoas entram, do nascimento até a morte, para um professor que mudou a minha vida, o Marques Leonam. Ele era um apaixonado pela reportagem e me ensinou, pelo exemplo, que ser repórter era a melhor profissão do mundo. Uma amiga me inscreveu no I Set Universitário, um concurso entre as faculdades de comunicação do sul do país. A comissão julgadora era formada por jornalistas e publicitários. Os jornalistas disseram que o que eu fazia não era jornalismo. Os publicitários disseram que era. Como havia mais publicitários que jornalistas, eu ganhei. Isto mudou a minha vida. Eu já tinha desistido de ser repórter, achava que não servia para isso. Mas o Leonam e esta reportagem me mostraram que era possível fazer o que eu acreditava, do jeito que eu acreditava. O prêmio era um estágio na Zero Hora, em Porto Alegre. Lá eu fiquei 11 anos e descobri que ser repórter não é o que eu faço, mas o que eu sou..

Então, os prêmios têm esta função, na minha vida. Eu nunca fiz uma reportagem pensando em inscrever num prêmio. Eles são uma conseqüência. E, para mim, são um reconhecimento de que o que eu faço é relevante. São importantes também para ampliar minhas chances de fazer mais e melhor.

ABI OnlinePor que escolheu o Jornalismo como profissão? O que mais instigou você nessa escolha de vida, digamos assim?

Matéria sobre homem que mora dentro de uma árvore

Eliane Brum — Eu devo ter escolhido ser repórter em algum momento, mas não foi um processo consciente. Eu sempre gostei de escrever e sempre me incomodei com as tristezas e injustiças do mundo. Desde criança, a miséria humana, em todas as suas formas, e não apenas a financeira, me pegavam. Era para onde eu olhava. Eu enxergava e sentia a dor do outro.

E sempre gostei de imaginar a vida das pessoas por trás das luzes acesas das casas que eu só via de longe. O jornalismo me deu uma desculpa para bater, entrar e tentar entender a vida dos outros.

Por outro lado, sempre gostei de ler e de escrever. Os livros, e depois a possibilidade de expressar o que me doía pela escrita, me salvaram na infância. E só suportei a escola e a maldade inerente às crianças inventando enredos na minha cabeça. Eu passei a minha infância vivendo no meu mundo imaginário ou no mundo dos livros. Quando tive de encarar o mundo real, com a adolescência, a maternidade precoce e a vida adulta, acho que foi o jornalismo que me salvou. Ele me permite transformar a realidade em história contada. Assim, eu consigo enfrentar o mundo. Até hoje.

ABI OnlineEm suas reportagens, estar na rua é condição sine qua non. Como você analisa o jornalismo de hoje, em que a tecnologia meio que “fabrica” repórteres que têm na internet sua única fonte?

(foto do livro “O olho da rua”)

Pequeno ianomâmi com uma pata de anta

Eliane Brum — Eu adoro a tecnologia. Tenho uma coluna semanal no site da Época (www.epoca.com.br) e uma crônica semanal no site www.vidabreve.com. Está sendo uma experiência maravilhosa. Porque falo diretamente com os leitores. De certo modo, eles continuam escrevendo meus textos. Além disso, na internet eu não sofro a dor de ter que cortar meus textos. Escrevo colunas enooooormes. Me vingo de todas as páginas perdidas (risos).

Eu não acho que a tecnologia seja um problema. Ela nos ajuda. Sou do tempo em que a gente mandava matéria por telex quando viajava. Posso garantir, era duro. Prefiro bem mais um email.

Acho que a tecnologia não muda a essência da reportagem. A gente continua fazendo reportagem do mesmo jeito. Na rua, no mundo, olhando nos olhos das pessoas, enfiando o pé na lama. Não tem outro jeito de fazer. A realidade, o mundo, continua no mesmo lugar. Do lado de fora das redações. E não há contato virtual que possa remotamente substituir o real.

Agora, se há repórteres que fazem reportagens por email ou por telefone quando poderiam fazer pessoalmente, aí é um problema de quem manda fazer e de quem aceita fazer. Eu não acredito em matérias que se limitam a reproduzir aspas. Isso não é jornalismo. Repórteres não são aplicadores de aspas em série, colecionadas em entrevistas telefônicas ou por e mail. Às vezes, não há outro jeito. Mas, na maioria das vezes, acho que há.

Nós contamos a história cotidiana de nossa época, com toda a sua complexidade, cheiros, texturas, nuances, contradições. Se não somos capazes de fazer isso, seja pelo motivo que for, é melhor fazer outra coisa. Do contrário, estaremos enganando o leitor. E publicando retratos pobres e enganosos para os leitores de hoje, para os historiadores do futuro. Eu sempre encarei minhas reportagens, seja uma nota ou uma reportagem de 20 páginas, do mesmo jeito: com a responsabilidade de produzir um documento histórico.

Não é fácil resistir à pressão das aspas em série. Mas é possível. E me parece o único caminho.

ABI Online Na sua opinião, o que foi positivo e o que foi negativo para o Jornalismo com o avanço tecnológico?

Eliane Brum — Acredito que o avanço tecnológico, especialmente a internet, incluiu novos atores. Transformou antigos “personagens” (não gosto muito desta palavra para gente de carne e osso) em protagonistas, contadores da própria história por meio de blogs e outras ferramentas. A internet ampliou o acesso e permitiu a todos ser contadores da própria história. Valorizou também os pequenos saberes, já que cada um pode falar e ser ouvido. A maior parte dos novos movimentos sociais só existem porque a internet existe. E movimentos que antes eram restritos geograficamente, hoje atuam em rede internacional.

Isso nos coloca vários desafios. Alguns exemplos. Em parte, pelo menos mais perto das capitais, mas hoje há internet também em tribos indígenas da Amazônia, aquela função nobre do jornalismo, de dar voz a quem não tem, mudou. A internet permite que todos possam construir seus próprios discursos e ampliá-los em rede.

Outro aspecto muito interessante é que antes o que não era coberto pela mídia não existia, de certo modo. Agora, se a mídia não enxerga ou prefere não registrar, as pessoas divulgam seus próprios eventos, protestos, movimentos pela internet. E isso gera outros acontecimentos. Então, a imprensa perdeu um pouco uma certa hegemonia no relato da história contemporânea, diária e cotidiana. As vozes se multiplicaram.

Outro aspecto se refere ao fato de que começa a se tornar possível para um jornalista se autofinanciar na internet, criando seu próprio público. Há jornalistas que fizeram seu nome na grande mídia que hoje só trabalham na internet. E não me refiro apenas aos nomes do eixo Rio-São Paulo- Brasília, mas principalmente aos lugares mais distantes. Recentemente fiz uma reportagem sobre os blogueiros da Amazônia. Jornalistas como Altino Machado, no Acre, e Alcinéa Cavalcante, no Amapá, têm escrito sobre temas que não estão nos jornais locais – e, assim, superado o bloqueio da imprensa local, que, por depender muito de recursos oficiais, acaba deixando de abordar assuntos mais espinhosos.

Todos os pontos citados alteram as relações de poder e também redimensionam o papel do jornalista e da imprensa. São muitos os desafios. E acho isso fascinante.

Por outro lado, a reportagem continua sendo algo caro. Exige dinheiro, tempo e rigor ético para ser feita. Hoje, muitos blogueiros se limitam a reproduzir o que é escrito pela mídia tradicional. Reportagem é outra coisa. Sobre tudo isso há muitas tensões e dúvidas. É natural. Estamos tendo o privilégio de participar de uma grande transformação, viver um mundo novo. Temos de achar nosso caminho sem ficarmos presos à nostalgia do “antes era melhor”. Antes existiam coisas melhores e outras piores. Agora também. A vida é assim. E temos de encontrar as brechas para seguir adiante.

ABI OnlineComo você seleciona e decide suas pautas? Que tipo de feeling à leva sempre ao lugar certo, na hora certa para encontrar as pessoas certas?

Marcelo Min – Época

Mulheres do Islã

Eliane Brum — Ah, eu vou a muitos lugares errados até achar os certos. De certo modo, acho que as pessoas são sempre as certas. Basta que a gente olhe de verdade para elas. Sempre têm o que contar. Se ainda não contaram, é porque eu ainda não entendi.

Tenho meu próprio processo. Eu gosto de ir para a rua só com uma pista, uma dúvida, uma ideia. Mas sem nada muito fechado. Vou tateando e tentando descobrir qual é a história. Nunca é a que eu pensei que era no início. Nunca. E acho isso ótimo, senão seria muito chato.

Eu gosto de me perder. Isso não me apavora. No começo apavorava, agora aprendi que faz parte do processo. Eu vou ouvindo, vendo, tateando. Aí, lá pelo meio da matéria, não estou entendendo nada. Aí alguém fala alguma coisa, às vezes até o fotógrafo, ou reparo num determinado detalhe. E aí entendo. Tudo passa a fazer sentido.

É como uma gestação. Você não sabe se dentro de você há um bebê ou um alien.

Seja o que for, faz com que eu me sinta viva. Eu acho a possibilidade de se espantar, na nossa profissão, algo extraordinário. Estou sempre me espantando.

Nesta reportagem do “Islã dos Manos”, por exemplo. Comecei a ver takiahs (aquele chapeuzinho que os muçulmanos usam) nos eventos que eu acompanhava na periferia de São Paulo. Aí fui fazer uma matéria sobre os escritores periféricos e conheci o Dugueto, que se tornou muçulmano. Aí comecei a fazer meus primeiros contatos. Eles eram muito desconfiados. Ficava andando com eles para lá e para cá, até que me deixaram chegar mais perto. Aí, quando estava avançando, fui fazer aquela reportagem no Retiro Vipássana (“O inimigo sou eu”), em que fiquei mais de cem horas na mesma posição de meditação, e tive uma crise na coluna que me deixou sem conseguir trabalhar direito por meses. Perdi parte do movimento do braço direito por uns tempos. Aí, quando voltei a andar sem dor, tive de refazer os contatos. E aí foi acontecendo. Cada um me apresentava outro, fui me aprofundando. Escutando, lendo, estudando, acompanhando, tentando entender o que me diziam, sem preconceitos, e tentando entender o que isso significava.

Sempre que faço uma reportagem, eu vou apurando e pensando nas fotos, na diagramação. A matéria para mim nunca é só texto. Eu vejo tudo junto. É mais natural. Ás vezes as pessoas nem percebem, mas é bacana pensar que tudo tem harmonia, pensar que cada reportagem não tem apenas um texto, mas um jeito visual de contá-la, tanto pelas fotos como pela diagramação. E a gente precisa descobrir que jeito é esse. Nós trabalhamos em conjunto: eu, o fotógrafo (nesta matéria, os excelentes Marcelo Min e Mirian Fichtner), o editor de fotografia (André Sarmento) e o designer, o Xandão (Alexandre Lucas). Na última dupla do “Islã dos Manos”, por exemplo, são duas fotos: são três mulheres andando em Passo Fundo, num campo de soja, e outras três mulheres caminhando no centro de São Paulo. A cerquinha do campo encaixa perfeitamente na murada do viaduto. Não é uma escolha estética, apenas. Há uma informação aí. Estamos contando alguma coisa. O leitor olha para a matéria e vê que tudo conversa com tudo.

ABI OnlineQual foi a reportagem que mais a emocionou?

Eliane Brum — Eu vivo emocionada. De forma geral, eu te diria que é sempre a última. Estou terminando uma agora que mexeu profundamente comigo. Mas, a que ainda está impressa em mim com mais força, neste momento, é a reportagem em que acompanhei a vida de Ailce Oliveira Souza até o fim (ela testemunhou os últimos 115 dias de vida de uma merendeira de escola).

Todas as reportagens me transformam, em geral bastante. Esta me fez iniciar uma peregrinação pessoal para aprender a lidar com minha própria morte e com a morte daqueles que amo. Eu aprendi a cuidar nesta reportagem – e este é um aprendizado muito importante. O que a Ailce me deu é algo para sempre. E algo raro: ela confiou em mim a ponto de me deixar testemunhar o fim da sua vida e contar uma história que ela jamais leria.

ABI OnlineE a mais difícil?

Marcelo Min – Época

Eliane e Ailce

Eliane Brum — Todas são, de alguma maneira. Esta da morte me deu muito, e me deu para a vida inteira. Mas também me arrebentou. Não sei se alguém consegue publicar e seguir adiante, acho que não. Mas, para mim, as reportagens não acabam quando são publicadas. Elas continuam comigo. A Ailce morreu em julho de 2008. Em julho de 2009 eu escrevi uma coluna de adeus, onde, de certa forma, elaborei meu luto. Só então consegui parar de sofrer pela morte dela e por tudo que a morte dela significou na minha vida.

A primeira grande reportagem que fiz, em 1993, foi a reportagem seminal da minha vida de repórter. Refiz a marcha da Coluna Prestes e entrevistei uma centena de pessoas durante milhares de quilômetros e 44 dias. Nela, comecei a conhecer, compreender e me apaixonar pelo Brasil e pela complexidade e diversidade do seu povo. Tive de fazer escolhas difíceis e aprendi quem eu sou. Voltei com uma outra versão, a do povo do caminho. Aqueles que não eram nem governistas nem rebeldes. Foi uma experiência muito difícil, muito profunda e, para mim, definitiva para me tornar o que sou hoje.

Citei apenas as duas. Mas há várias outras. Algumas ainda que preciso terminar de escrever.

Eu me entrego visceralmente às reportagens que faço. Então, elas não são lembranças. Elas são parte do que eu sou. Estão encarnadas em mim.

ABI OnlinePerseverança e insistência são mesmo fundamentais para o bom exercício do Jornalismo? Fale da importância desses dois “ingredientes”.

Eliane Brum — Eu acho que, na vida, a gente precisa ser obstinada. Eu não pertenço à geração do “eu mereço”. Fui educada pelos meus pais com a ideia de que se queria alguma coisa precisava estudar, trabalhar e conquistar. Por mim mesma e sem atropelar ninguém. Nunca achei que a vida – nas Redações e fora dela – era fácil, nunca esperei ter nada de graça. Então, a existência de dificuldades sempre me pareceu natural. Isso me ajudou muito no jornalismo, tanto para fazer as matérias, na apuração, como para brigar por elas dentro da Redação.

Por outro lado, não pressiono ninguém a me dar entrevista. Aprendi isso com o tempo. Não tenho este direito, ninguém tem. A gente explica o que veio fazer, com clareza, e as pessoas decidem. Se não quiserem falar comigo, têm todo o direito. Eu vou embora. Nenhuma reportagem nos autoriza a desrespeitar a vida do outro.

ABI OnlineAutora de livros desde os 11 anos de idade, quando seus pais, Argemiro e Vanyer, publicaram “Gotas da Minha Infância”, com seus textos, fale um pouco desse tempo em que começou sua paixão pela literatura?

Eliane Brum — Os livros foram a primeira grande descoberta da minha vida. Eles me deram acesso a muitos mundos. E me deram a possibilidade de escapar do real. Eu aprendi a ler aos sete anos. E, desde então, leio um livro atrás do outro. Tudo o que eu queria saber procurava na estante de livros da casa dos meus pais. E eles sempre me davam uma resposta. De dilemas existenciais ao sexo. Meus pais sempre estavam sem dinheiro, mas nunca nos faltaram livros. Esta foi uma grande sorte.

Aí, com nove anos, comecei a escrever para suportar/elaborar a dor de viver. Eu nunca entendi aquela poesia: “Que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais”. Achei a infância um terror. Escrevia para não cortar os pulsos. E ia deixando os pedaços de papel pela casa, como uma espécie de pistas que meu pai ia recolhendo. Aí, um dia, ele veio com esta notícia de que ia publicar. Eu fiquei toda orgulhosa. E, ao mesmo tempo, me senti nua. Depois disso, parei de escrever por uns tempos, por causa desta exposição das minhas vísceras. Só voltei na adolescência. Parei quando fui mãe. E voltei quando virei repórter.

ABI Online Com livros premiados (Prêmio Jabuti 2007 por “A vida que ninguém vê” e Prêmio Açores de Literatura 1994 por “Coluna Prestes — O Avesso da Lenda)”, hoje você já pode falar se tem um outro está no prelo?

Eliane Brum — Tenho muitos planos. Quero escrever mais livros de reportagem. E quero me experimentar na ficção.

ABI OnlineE o cinema? O sucesso de seu documentário “Uma história Severina”, que foi contemplado com mais de 20 prêmios nacionais e internacionais, a instiga a fazer outros trabalhos no gênero?

Eliane Brum — Estou terminando um documentário, junto com Paschoal Samora, pela Mixer. Chama-se “Gretchen Filme Estrada” e narra a última turnê e a primeira campanha política da rainha do rebolado. Tirei férias para filmar, na campanha eleitoral de 2008, e montamos durante o segundo semestre do ano passado. Agora está quase pronto. E estou muito animada. Era uma ideia antiga. Havia proposto como reportagem para a Época, quando a Gretchen fez 25 anos de carreira. Queria contar o Brasil da Gretchen, esta mulher incrível que rebola há 30 anos.

O diretor da revista, naquele tempo, não topou. Aí fiquei com esta ideia na cabeça. Eu sou teimosa. Não lido bem com este tipo de “não”. Eu guardo. E um dia encontro um jeito de contar a história. Aí, um dia, conversando com o Paschoal Samora, que é um diretor premiado, excelente, comentei com ele. Cinco anos já haviam se passado e a Gretchen ia completar 30 anos de carreira. No mesmo dia, o Paschoal me ligou: “vamos fazer”. Ele trabalha na Mixer e a a produtora financiou e produziu. Fizemos em co-direção. Eu nem poderia fazer, porque estava escrevendo “O Olho da Rua”, mas não consegui resistir. Quase morri de tanto trabalhar: fiz, ao mesmo tempo, a matéria da morte, o documentário e o livro. Tinha enxaquecas quase diárias, porque passei meses sem finais de semana de folga . Mas valeu a pena. E contamos uma história que eu acho fascinante. E que, se tudo der certo, em breve todos poderão assistir nos cinemas.

ABI OnlineEnquanto uma vertente da mídia acha que o que vende é mostrar celebridades, você faz o caminho inverso: procura pessoas desconhecidas e conta suas histórias. Atrás dessas reportagens vem a avalanche de prêmios. O que acha das celebridades? O que acha que têm em comum com os personagens de suas matérias?

Eliane Brum — As pessoas todas são muito mais parecidas do que diferentes. Sejam elas celebridades ou “pessoas comuns”. Minha busca, no jornalismo, é entender o dá sentido à vida das pessoas. Como elas reinventam suas vidas com muito pouco. Isto é o fascinante do humano. Acho que cada jornalista tem a sua busca. A minha é esta. É ela que me move. Gosto de escarafunchar as pessoas, entender como vivem, quem são, o que tem que é só delas. Quando me perguntam sobre o que eu escrevo, nunca sei o que dizer. Eu não sou uma repórter especializada em nada. Eu conto histórias de gente. E acho que se entendo de alguma coisa, é de gente.

Tenho planos de escrever sobre celebridades, ainda. Acho interessante. Mas eu queria saber outras coisas delas.

ABI OnlineComo é — e como foi no início — conciliar a vida agitada de repórter com a de mulher e mãe?

Maíra e Eliane

Eliane Brum — Eu fui mãe aos 15 anos. Dos dois aos seis anos da Maíra, morei longe dela, em Porto Alegre, para fazer a faculdade. Só a via nos finais de semana. Quando me formei, fui buscá-la. Eu era foca, tinha 22 anos e ganhava um salário que era pouco mais do que o mínimo.

Foi muito difícil. Vivi momentos duríssimos. Quando falo deste tempo, até hoje é difícil. Era muito desamparo, várias formas de desamparo. Nosso apartamento foi assaltado e eu não tinha dinheiro para me mudar. Passava a noite acordada, com medo de não conseguir proteger a Maíra, com tanto medo que quase não conseguia me mexer. Às 5h30 da manhã acordava minha filha e pegávamos dois ônibus até a escola. Às vezes eu tinha de colocá-la por cima do muro, porque precisava pegar mais três ônibus para ir até o jornal, onde eu começava às 8h. Ela ficava lá, sozinha, com seis anos. Quando ia cobrir alguma coisa mais longe, não conseguia voltar a tempo para pegá-la na escola. Lembro de estar com água pela cintura, numa enchente, ligando de um orelhão para uma lista de amigos, para tentar encontrar alguém que buscasse a Maíra na escola, à noite.

Era uma vida complicada. Eu não tinha família em Porto Alegre. Éramos só nós duas. Mas o que eu vivi é o que a maioria das mulheres de periferia vive. Passou, conseguimos e era isso. Como mãe, eu fiz o melhor possível. Não sei se foi o suficiente para a Maíra. Mas a vida é como é. E a gente faz o melhor que consegue.

ABI OnlineVocê teve Maíra muito jovem. Acha que isso a impulsionou para ter uma autoconfiança na vida e no trabalho?

Eliane Brum — Me ensinou a sobreviver. Por uma série de razões, eu me quebrei inteira. Sobrevivi. Não sei se fiquei mais forte. Acho que não. O que aprendi foi a conviver com a minha fragilidade. E isto é uma libertação. Sei que às vezes vou ficar estilhaçada e não vou morrer por causa disso.

Por outro lado, eu era muito viajandona. Ter uma filha me obrigou a construir uma vida, uma identidade, a me tornar mãe. A gente não é mãe porque tem um filho, a gente se torna mãe. É um processo. Eu queria ser alguém de quem ela pudesse se orgulhar. Isso foi importante, me deu rumo na vida.

Ser mãe foi a experiência mais importante da minha vida. Ser mãe da Maíra me dá inteireza. Acho maluco amar alguém tanto assim como a gente ama um filho.

Dias atrás estava pensando o que faria diferente, se pudesse voltar atrás. E descobri que teria de fazer todas as bobagens e aterrorizar os meus pais de novo, porque não queria que nada fosse diferente. Acho que sou mais o que sou pelo supostos erros que pelos supostos acertos. Tudo de importante que aconteceu na minha vida foi considerado “loucura” pelos outros. Então, acho que está na hora de cometer mais algumas. Ando muito pacata.

ABI OnlineVocê está há 10 anos na Época e ficou 11, no Zero Hora. Foi editora, mas pediu para voltar para reportagem. O que a levou a fazer isso?

Eliane Brum — Eu gostava muito de ser editora da minha equipe. Uma equipe de três repórteres. Adoro pensar em pautas, conversar sobre pautas, discutir textos, editar as reportagens. Isso eu gostei muito. Era um divertimento. E era bacana ver as pessoas orgulhosas do que faziam. E saber que eu podia colaborar com isso. Eu gosto de ensinar. E tinha um enorme orgulho dos repórteres que trabalhavam comigo. Esta era a parte boa.

A ruim era que eu tinha de participar de muitas reuniões – e eu não lido muito bem com reuniões. E quando eu fico trancada dentro da redação por muito tempo, vou murchando. Vou ficando triste. Aí, no final de um ano eu já estava com aquela cor horrível de amarelo-redação . E cada vez mais triste. Aí pedi para voltar para a reportagem.

ABI Online Para uma matéria ficar pronta, finalizada mesmo, você disse que ela é metade entrevista, metade percepção e observação. Fale um pouco sobre essa leitura da alma dos entrevistados?

Em 2006 na Mauritânia

Eliane Brum — A gente conta uma história real. Para isso, tem de apreender toda a complexidade do real. E o real é feito de muito mais que palavras. Só as palavras ditas já contêm um mundo. O como são ditas, com que sotaque, com que pausas, com que silêncios, com que hesitações. Só aí já tem um mundo. Além disso, tem todo o resto. Apurar dá um trabalho infernal. Porque você tem de saber exatamente como são as coisas. Não basta saber que o céu era azul quando aconteceu o crime, tem de saber se era um azul sem nuvens, com uma nuvem ou com muitas nuvens. Se as unhas da pessoa são curtas, roídas, se têm marcas de nicotina ou um esmalte pela metade. Se o esmalte está pela metade, vc tem de saber por que razão. Uma informação vai levando a outra. Dá para apurar a vida inteira. Mas, uma hora a gente para.

Não há milagre em texto jornalístico. Pode ser um Prêmio Nobel da Literatura. Se não tiver apurado exaustivamente, vai escrever um texto jornalístico ruim. Só apurando muito – e com precisão – é que dá para escrever um texto substantivo, com tantos detalhes que o leitor pode ler com o prazer de uma ficção. Na matéria da morte, eu tenho umas 500 páginas de entrevistas, observações, sentimentos. Eu escrevo tudo o que eu sinto. Na do “Islã dos Manos” tenho outras 500 páginas de entrevistas transcritas. Eu sempre acho que tudo é histórico e aí não quero perder nada. Não sei o que vou fazer com tudo isso. Ainda bem que agora têm computador, fica tudo lá dentro.

ABI Online Com sua experiência em reportagens, tem algum conselho que considera primordial dar a um jornalista em inicio de carreira?

Eliane Brum — Escutar, escutar e escutar. As pessoas valorizam muito as perguntas. Mas esquecem que tem de aprender a escutar as respostas. Escutar de verdade, com a cabeça aberta e sem preconceitos, prestando atenção nas entrelinhas, nos não-ditos e nos silêncios. Na escolha das palavras. É pela escuta que a gente alcança as pessoas.

Faço muitas perguntas para mim mesma, já que preciso desconfiar de mim, mas poucas para os entrevistados. Quanto mais velha fico, menos perguntas faço.

O outro conselho seria duvidar sempre, começando por nossas próprias certezas.