12/04/2025
A importância da comunicação comunitária para a prestação de informações corretas à população, para a defesa dos direitos humanos e para a preservação da memória da comunidade; os desafios enfrentados pelos comunicadores populares, como a falta de recursos financeiros e a violência; a ausência de políticas públicas para esse nicho da comunicação e a relevância da favela como “energia cultural e espaço de potência” foram algumas das questões levantadas no debate Jornalismo Comunitário, Desafios, Ameaças e Oportunidades, no encerramento da III Semana Nacional de Jornalismo, na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), na sexta-feira (11), no Rio de Janeiro.
Simone Lauar, representando o Garotas da Maré, “jornal da favela pro mundo e do mundo pra favela, furando bolhas”, declarou que antes só via coisas ruins na favela e que “Marielle me ensinou que na favela existe resistência, luta e cultura”. E falou sobre a violência do Estado:
“Eles quebram as nossas casas. Entraram na minha casa, arrombaram a porta, começaram a revistar a casa. Eu já era jornalista e coloquei isso no Garotas da Maré. A gente corre perigo o tempo todo quando busca a verdade. Quantas vezes temos que corrigir que a pessoa que morreu não era um suspeito? Que onde o policial entrou não era boca, mas a casa de trabalhadores? Antigamente, a gente baixava a cabeça, agora a gente fala porque está ganhando espaço. E estando aqui estamos ganhando muito mais”, desabafou.
Letícia Pinheiro, do coletivo Fala Akari, explicou que o grupo que integra se dedica à comunicação comunitária, à defesa dos direitos humanos e à educação popular: “A gente sofre diretamente o impacto de um processo de desinformação sobre o que é a favela. O coletivo surge para pautar a comunicação no território a partir de nós, movimentando uma contra-narrativa sobre nossa própria história, apontando as denúncias de violação de direitos por parte do Estado e a importância da favela como energia cultural e espaço de potência. A comunicação popular é importante para dar voz para aquilo que é estigmatizado – acrescentou Letícia, para quem informação de qualidade, sobre cidadania e direitos humanos é “uma chave potente para podermos pensar em transformação social e na democracia”.
Hélio Euclides, do jornal Maré de Notícias, sustentou que o comunicador popular tem uma característica muito importante: o amor pelo que faz e o amor “pelo José e pela Maria que esperam sair o jornal”: “Quando a gente escreve, escreve pro morador. Aquele cara que está com uma arma ali também é morador, impacta na vida dele, porque o jornal vai chegar pra mãe dele, pro filho”.
Para Hélio, a comunicação comunitária é uma construção coletiva, e o maior desafio é a falta de financiamento, o que obrigou em janeiro último o Maré de Notícias, pela segunda vez em sua história, a parar de ser publicado. Hélio questionou a razão pela qual não há verbas governamentais para os jornais, as rádios e as tevês comunitárias.
Laboratório de Violência
Fábio Leon, coordenador de Comunicação do Fórum Grita Baixada, disse que a Baixada Fluminense é um laboratório para a violência urbana e para a violência do Estado desde a década de 1960. Lembrou que há 20 anos, em 31 de março de 2005, ocorreu a chacina da Baixada Fluminense, considerada o maior massacre promovido por agentes de segurança do Estado e que resultou na morte de 29 pessoas, entre as quais crianças, mulheres, adolescentes e idosos. E criticou o fato de não ter havido em grandes veículos de comunicação nenhuma reportagem de fôlego sobre esses 20 anos.
“Eu pergunto a vocês: e se fossem 29 chacinados no Leblon, em Copacabana, na Lagoa Rodrigo de Freitas? A gente precisa falar sobre esse abismo de narrativas entre os meios de comunicação. É uma disputa de narrativas muito cruel, injusta, existe todo um sistema capitalista por trás na produção dessas narrativas. Até quando a gente vai ser resistente, ter fôlego e escrever nos nossos sites a necessidade de se pensar a segurança pública de uma forma mais humanista, inteligente, não vingativa, através da lógica do extermínio? O jornalismo brasileiro, não só o comunitário, deve discutir isso”, argumentou.
Representando Se Liga, Salgueiro, uma rádio-poste (emissora que transmite através de alto-falantes instalados em postes de ruas e praças), Emerson Menezes falou sobre as dificuldades encontradas em seu trabalho, como os fios cortados ou o sumiço de caixas de som. Contou que a rádio atua na divulgação dos informes dos médicos e que, na pandemia da Covid-19, colocou-se em defesa da vacina, “embarreirando as fake news”. Entre as funções de uma rádio em uma favela, afirmou, estão as de anunciar o falecimento de um morador e a data do velório, comunicar a chegada de cartas ou encomendas na sede da associação de moradores:
“Não temos nenhum apoio institucional. Não temos recursos para recolocar os fios no lugar. O pessoal faz um trabalho voluntário. O trabalho do jornalismo comunitário é árduo, difícil, dificultoso, mas necessário. Falar a verdade hoje parece que é transgredir o status quo, parece que é um ato revolucionário. Precisamos institucionalizar esses espaços, precisamos de políticas públicas”, acrescentou.
Pelo Fala, Roça, da Rocinha, Michel Silva contou que seu envolvimento com a comunicação na favela nasceu quando seu pai e sua mãe, que trabalhavam como faxineiros nos prédios da Zona Sul, levavam jornais para casa no final do expediente. Disse que fazer jornal na favela é muito mais do que informar, que o Fala, Roça tem quatro eixos de atuação: jornalismo, preservação da memória histórica, pesquisa e formações.
O representante do Fala, Roça registrou que o Arquivo Nacional tem a maioria dos jornais impressos brasileiros digitalizados, mas não os jornais das favelas. A partir dessa informação, a diretora da Faculdade de Comunicação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Patrícia Miranda, colocou-se à disposição para formar um núcleo que crie um projeto de pesquisa destinado a permitir o registro do material jornalístico produzido nas comunidades.
Michel contou que o Fala, Roça é feito por dez profissionais, todos remunerados, com recursos obtidos por meio de editais, de ajuda de instituições filantrópicas e da busca de apoio – o “batendo na porta”. Informou que está participando de um projeto da Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República em parceria com a Unesco de mapeamento das organizações de comunicação existentes na favela e na periferia em 19 estados do país.
E conclamou os colegas: ‘Precisamos nos reagrupar para fortalecer a luta da comunicação na favela – acrescentou, para em seguida ouvir de Xico Teixeira, mediador do debate e organizador da mesa, que a ABI é a Casa que pode promover essa aproximação e amplificar essa discussão”.
A Casa política
Na abertura dos trabalhos, o presidente da ABI, Octávio Costa, destacou que as semanas nacionais de jornalismo são eventos que discutem a fundo a profissão e os rumos da comunicação no Brasil e disse que uma das bandeiras da ABI é a regulamentação das big techs – tema do terceiro dia de debates da III Semana Nacional de Jornalismo.
O presidente da ABI entregou em seguida a medalha Barbosa Lima Sobrinho à jornalista Claudia Santiago, diretora-presidente do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), que há 30 anos forma profissionais de comunicação sindical, popular e comunitária.
Já Vitor Iorio afirmou que as três semanas nacionais de jornalismo foram pensadas para que os profissionais pudessem mergulhar no mundo da Comunicação. Ele ressaltou que a ABI não é uma Casa sindical, mas a Casa política do jornalista brasileiro, atuando sempre na defesa dos direitos humanos e da liberdade de expressão. Disse também que a tarefa da gestão atual foi “voltar a colocar a ABI como uma janela política na questão da conjuntura política nacional”, e que a instituição realizou atos fundamentais de resgate da memória “de um Brasil muito perverso”.
Iorio acrescentou que se existe uma saída hoje para a comunicação no Brasil, ela passa pelos comunicadores populares que, em sua opinião, fazem parte de um dos movimentos mais importantes do Brasil atual.
O mediador da mesa, Xico Teixeira, conselheiro da ABI, destacou que os comunicadores populares se identificam com a informação que estão passando, têm a noção exata da responsabilidade política e social que têm, o que não se vê muito hoje nos grandes conglomerados da comunicação comercial. Acrescentou que a ABI estava, naquele momento, cumprindo o seu papel, que é o de abrigar todos os profissionais de Comunicação.
O debate de encerramento da III Semana Nacional de Jornalismo teve a parceria com a UERJ, o Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e a PUC- Rio.