27/06/2025
Por Leonardo Marchetti, em O Globo
Foto: Mohammed Abed/AFP
Em Gaza, a água e a luz são escassas. De dentro do hospital de campanha do Médicos Sem Fronteiras (MSF), em Deir al-Balah, no centro do enclave, uma médica experiente com zonas de guerra chorava copiosamente após ter visto uma criança “muito pequena”, desesperada, clamando por água com uma vasilha nas mãos. Desde abril, quando Israel bombardeou o que restava do encanamento na Cidade de Gaza, os palestinos têm, em média, acesso a cinco litros de água por dia por pessoa, enquanto o mínimo para atender as necessidades básicas é 50.
— É frequente a cena de dezenas de pessoas, incluindo crianças, correndo atrás dos caminhões-pipa que chegam — contou o médico Paulo Reis, um dos profissionais mais experientes do MSF Brasil.
A enfermeira Ruth Barros, coordenadora médica de projetos do MSF, ficou semanas no norte de Gaza, região que, segundo ela, está “completamente destruída” e “virou pó”.
— Em Gaza, não tem água e nem luz. Os caminhões-pipa levam água, e a luz vem dos painéis solares e geradores a gasolina, cuja entrada também foi bloqueada por Israel. Gaza é um território isolado. Não falamos em refugiados, são pessoas que estão presas e sem acesso a suprimentos. Nunca vi isso em nenhum outro lugar — disse ela.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), são necessários aproximadamente 50 litros de água por pessoa diariamente “para garantir que a maioria das necessidades básicas sejam atendidas”. A situação na Faixa de Gaza, porém, é bem diferente. Segundo a coordenadora de comunicação do MSF, Damaris Giuliana, os palestinos têm acesso a cinco litros de água por dia por pessoa.
— O cenário é um dos mais trágicos que o MSF já testemunhou. Em Gaza, há limpeza étnica, crimes de guerra e padrões de genocídio — exclamou Giuliana durante o “evento Humanidade em ruínas: Relatos de Gaza”, evento organizado pelo MSF, que aconteceu na quinta-feira (26) na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro.
No dia 2 de março, Israel anunciou a suspensão total da entrada de ajuda humanitária em Gaza, um pouco antes de romper o cessar-fogo com o grupo terrorista Hamas, que possibilitou uma troca de reféns israelenses por prisioneiros palestinos.
— A política de Israel é clara: em Gaza não entrará nenhuma ajuda humanitária — afirmou o ministro da Defesa israelense, Israel Katz, em abril, dois dias após o Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha), da ONU, alertar que a situação humanitária no enclave era talvez, “a pior” desde o início da guerra.
Além da escassez de água, os palestinos enfrentam a fome. Segundo o mais recente relatório de Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC), consórcio apoiado pela ONU, 470 mil pessoas estão no mais elevado nível de risco de fome, e a insegurança alimentar atinge praticamente toda a população de Gaza, estimada em 2,2 milhões de pessoas. O relatório do IPC diz que cerca de 17 mil mães e 71 mil crianças se encontram em estado de desnutrição aguda.
— Eu vi o nível de desnutrição aumentar muito entre os pacientes. As pessoas enfrentam uma degradação drástica. Ainda há esgoto a céu aberto, o que possibilita a transmissão de doenças — contou Barros.
No final de maio, mais de 90 caminhões carregados com ajuda humanitária entraram na Faixa de Gaza, após um atraso de três dias na travessia. A chegada dos caminhões ocorreu depois de um bloqueio de 11 semanas imposto por Israel, mas, de acordo com a ONU, “o volume [de ajuda] está longe de ser suficiente para atender às vastas necessidades de Gaza”. Antes da guerra, Gaza recebia cerca de 500 caminhões de suprimentos por dia.
— Ninguém tem acesso a proteína lá. Nas últimas semanas, tivemos que parar de fornecer comida para os nossos funcionários para ceder aos pacientes — afirmou Reis, coordenador do hospital de campanha do MSF em Gaza.
A morte de palestinos que buscam ajuda humanitária na Faixa de Gaza tornou-se uma ocorrência quase diária desde que a Fundação Humanitária para Gaza (GHF, na sigla em inglês) — organização apoiada por Israel e pelos Estados Unidos — assumiu a distribuição de alimentos e outros suprimentos essenciais na região, em 26 de maio. Em menos de um mês, cerca de 440 pessoas foram mortas e mais de 3 mil ficaram feridas enquanto tentavam receber auxílio nos centros de distribuição, fazendo com que o chefe da UNRWA, a agência da ONU para os refugiados palestinos, classificasse o sistema como “uma abominação”.
As pessoas são obrigadas a caminhar diversos quilômetros a pé sem a certeza de que voltarão com algum alimento e sob o risco de serem atingidas por tiros. Em média, 15 palestinos foram mortos por dia em Gaza enquanto tentavam receber ajuda humanitária no último mês.
Segundo Giuliana, hoje são oferecidas duas refeições por dia para pacientes no hospital. No entanto, “nunca se sabe o que vão oferecer de alimento para os pacientes no dia seguinte”.
— Os bebês, quando nascem, são muito, muito, muito pequenos, pois as mães não comem direito — relatou Giuliana, com a voz embargada de choro.
A rotina dos médicos em Gaza
Paulo Reis é um dos médicos mais experientes do MSF Brasil. Já esteve em Líbia, Iraque, Síria, Iêmen e, agora, em Gaza. Perguntado sobre as diferenças entre essas missões e a atual, Reis foi peremptório.
— As grandes diferenças são o volume de bombardeios e a grande quantidade de pessoas feridas que chegam aos hospitais. Nunca tinha visto nada igual. Fazemos cerca de 30 cirurgias por dia. E chegam mais ou menos 80 pacientes diariamente — afirmou o médico.
Dois dias depois de forçar um cessar-fogo entre Irã e Israel, colocando em suspenso um conflito que por pouco não arrastou todo o Oriente Médio, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmou que um acordo para a guerra na Faixa de Gaza “está muito perto”, algo corroborado por fontes do grupo terrorista Hamas.
A iminência de um acordo, contudo, ainda não produziu efeitos práticos: na última quarta-feira, mais de 60 palestinos foram mortos em Gaza por bombardeios — na véspera, sete militares israelenses morreram em um ataque no enclave.
— Não digo que são bombardeios diários. Na verdade, são bombardeios horários. Toda hora a gente escuta bombas e drones — acrescentou Reis.
Ainda de acordo com Giuliana, o MSF mantém contato com Israel e Hamas e “negocia sua presença com as partes da guerra”. As Forças Armadas de Israel, segundo ela, decidem o caminho que as equipes humanitárias fazem, mas, muitas vezes, “eles bombardeiam o trajeto”.
Atualmente, a população está proibida de circular por mais de 80% do território, e o Exército israelense emite com frequência ordens de desocupação que determinam a retirada de pessoas de uma determinada área, às vezes com poucas horas de antecedência ou, em alguns casos, minutos.
— Quando eles emitem ordem de evacuação, ou mandam uma mensagem ou jogam panfletos, dizendo que a população daquele local tem duas horas para sair, às vezes, os bombardeios começam em 15 minutos — contou Reis.
Enquanto isso, o Ministério da Saúde palestino, controlado pelo Hamas, informou que a operação israelense já matou mais de 56 mil pessoas e feriu outras 131 mil desde o início da guerra, em outubro de 2023, após o ataque-surpresa do grupo terrorista a Israel. O relatório, que não diferencia civis de combatentes — mas diz que mais da metade dos mortos são mulheres e crianças —, também indica que 5,7 mil foram mortas desde que o Estado judeu retomou os combates, em 18 de março, encerrando uma trégua de dois meses.
— Entre maio de 2024 e maio deste ano, na unidade de queimados do Hospital Nasser, no sul de Gaza, 73% dos pacientes eram crianças. Por conta dos bombardeios, 94% dos hospitais em Gaza estão fora de funcionamento. Historicamente, Gaza é o maior desafio do Médico Sem Fronteiras — concluiu Giuliana.