19/09/2007
José Reinaldo Marques
21/09/2007
A contundência ideológica ultra-esquerdista é um dos principais traços do chargista Carlos Latuff, nascido no Rio de Janeiro, no bairro de São Cristóvão, em 30 de novembro de 1968, em plena ditadura militar. Apontado pelos colegas como um chargista militante, ele se autodefine como radical e diz que não faz concessões políticas. Só não gosta quando o classificam como incendiário — ficou furioso com o comentário de Chico Caruso, do Globo, que o chamou de “um ativista que quer botar fogo no mundo”, durante um debate na UFRJ sobre a charge no Brasil. Suas maiores críticas são dirigidas aos jornais de grande circulação, que, “por causa dos interesses corporativos, limitam a criatividade do desenhista em relação à crítica social”.
Como quase toda criança, Latuff se apaixonou pelos cartuns a partir dos gibis e desenhos animados:
— Sempre gostei muito de ver os desenhos da TV Tupi. Apesar de o meu estilo hoje não ser nada infantil, lembro que os meus prediletos eram os da Hanna-Barbera. Gostava também do Capitão Aza, de Jambo e Ruivão e de Matraca-Trica e Fofoquinha (risos). Mas o que me ajudou mesmo foi o curso que fiz com o Molica, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage.
Para Latuff, o maior desafio enfrentado por um desenhista é a falta de oportunidade de conquistar espaço na grande imprensa, especialmente para quem está começando:
— Tive grande dificuldade para ingressar no mercado de trabalho, porque existe uma ilusão de classe. O profissional acha que vai poder começar trabalhando num jornalão ou na TV, ou fazer quadrinhos para grandes editoras. Mas não é assim que a banda toca. Quem não é apadrinhado não decola — garante.
Início
Latuff começou a desenhar profissionalmente em 1989, numa pequena agência de propaganda no Centro do Rio. Conseguiu a vaga por indicação de um amigo — e por isso acredita que “se o chargista não tiver um bom QI” (quem indica), principalmente no início de carreira, não tem chance no mercado”. Justifica sua posição lembrando que, até se tornar desenhista de verdade, foi obrigado a fazer coisas que não tinham nada a ver com o desenho: foi bancário, vendedor de lojas de aparelhos ortopédicos e mensageiro da Editora Globo:
— Tinha a ilusão de que poderia me tornar um dos desenhistas da equipe da editora. Cheguei a fazer alguns trabalhos, mas, por falta de perspectiva, depois de um ano pedi demissão.
Finalmente, o tal amigo, que trabalhava no jornal Balcão, o indicou para a agência:
— Como venho de família humilde e não conhecia pessoas influentes, ia batendo nas portas, mas elas acabavam se fechando. Ninguém sabia quem eu era. A experiência que tive na Editora Globo corrobora a minha posição. Não tive oportunidade porque, originalmente, lá eu trabalhava como mensageiro. BR>
Saída
Um ano depois de deixar a agência, Latuff publicou sua primeira charge no boletim do Sindicato dos Estivadores do Rio de Janeiro. A partir de então, engrenou como frila de outros veículos sindicais, segmento com que mais se identifica:
— Minha saída foi a imprensa sindical. Eu não tinha telefone em casa, mas vasculhava o catálogo telefônico à procura de entidades que tivessem publicação. Comprava várias fichas, ia para o orelhão e ligava perguntando se podia marcar uma reunião para apresentar o meu portfolio. Foi assim meu contato com o Sindicato dos Estivadores. Logo depois, conheci o Paulo Lopes, que era Presidente do Sindicato dos Radialistas do Rio, para o qual também trabalhei. Aí começou minha carreira como cartunista sindical.
As charges de Latuff, que abordam a política nacional e questões ligadas às categorias profissionais, ilustram as páginas dos jornais dos sindicatos dos Servidores da Justiça Federal e dos Servidores da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, dos Trabalhadores do Serviço Federal e das associações dos Servidores do Proderj, dos Docentes da UFF e dos Docentes da UFRJ. Hoje, diz ele, esse entrosamento deixou de ser unicamente comercial:
— Comecei a trabalhar para essa mídia por falta espaço na grande imprensa. Depois, minha relação com os sindicalistas passou a ser ideológica, em função de tudo o que me era apresentado. Foi um processo contagiante. Comecei a ter consciência de que ali era o meu lugar e parei de procurar espaço em jornalões. Hoje, nem que me fosse oferecido eu aceitaria. Antigamente eu pensava que era possível separar o ativista político do profissional. Não dá, e não vejo incoerência no meu procedimento atual. Incoerente é quem se diz comunista, combate a injustiça do capitalismo e aceita trabalhar numa empresa que defende esse sistema. Só trabalho para jornais de esquerda. Se não tivesse outra alternativa, abandonaria a profissão e ia virar camelô.
Causa palestina
Em 99, Latuff fez uma viagem à Cisjordânia, tornou-se simpatizante da causa palestina e passou a dedicar grande parte de seus desenhos ao tema. Foi também o primeiro chargista brasileiro a participar do concurso de charges sobre o Holocausto, promovido pela Casa da Caricatura do Irã, com o desenho de um palestino chorando diante de um muro erguido por Israel, vestido com um uniforme de prisioneiro de campo de concentração com o Crescente Vermelho no peito:
— Recentemente, recebi por e-mail uma foto de um campo de refugiados palestinos no Líbano, onde meu desenho aparece grafitado — conta. — O mais importante para um chargista é conseguir passar sua mensagem. A charge é um desenho absolutamente ideológico que deve estar disponível para qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo.
Por acreditar nisso, ele usa a internet para difundir seus trabalhos sem cobrança de direitos autorais (copyleft) para quem quiser usar:
— Quero ver meu trabalho sendo apropriado não pelas Organizações Globo, mas pelos palestinos, os sem-teto, os sem-terra, ou organizações do movimento social como aquela que se apropriou da charge do mascote do Pan com um fuzil.
Latuff enfatiza que o papel social do chargista é “abrir as cortinas da ignorância” e não reproduzir os discursos da grande imprensa:
— É isso que motiva todas as minhas charges. Quando eu desenhei o Cauê armado, quis mostrar a falácia do Governo em torno do Pan, durante o qual o comportamento da imprensa foi absolutamente cretino. Antes dos Jogos, a notícia era a violência no Complexo do Alemão. Começou o torneio e a violência cedeu lugar ao esporte no noticiário. Só não encobriram a queda do avião da TAM porque não foi possível — conclui.