20/06/2025
Por Jamil Chade, em UOL
Foto: Marri Nogueira/Folhapress
Num momento em que há uma ofensiva para rescrever a história de golpes de estado na América Latina e o apagamento dos crimes cometidos por ditaduras na região, o brasileiro Paulo de Tarso Vannuchi é eleito como um dos integrantes do Comitê sobre Desaparecimentos Forçados da ONU.
Composto por dez membros, o Comitê tem a função de receber denúncias e investigar casos de desaparecimentos, tanto em casos de regimes autoritários no passado quanto da realidade atual.
O mandato de Vannuchi irá até 2029 e a eleição sinaliza o compromisso ainda do Brasil com os mecanismos de direitos humanos da ONU, principalmente num momento em que o corte de recursos por parte do governo dos EUA vem afetando o funcionamento de vários dos órgãos da entidade.
Mal-estar marcou relação entre Comitê da ONU e governo Bolsonaro
A eleição do brasileiro também faz parte de um processo de ruptura em relação ao comportamento que o governo de Jair Bolsonaro vinha mantendo com o comitê. Em 2021, o exame realizado pelo comitê em relação ao país se transformou num ato de constrangimento para o governo Bolsonaro.
Naquele momento, os membros do comitê cobraram esclarecimentos sobre a relação entre a milícia e agentes do Estado, apontando que receberam dados de envolvimento de ambos em crimes no país. Mas os mesmos peritos internacionais ficaram indignados diante da declaração de um dos membros da delegação brasileira de que o número de desaparecimentos no país não justificava a criação de um mecanismo para reunir dados e investigações.
Coube à relatora do comitê, Milica Kolakovic-Bojovic, apresentar perguntas durante a sabatina. “Temos informações sobre desaparecimentos que ocorrem hoje, incluindo por parte da polícia militar, assim como por grupos paramilitares formados por agentes do Estado”, disse.
Segundo ela, as vítimas mais frequentes eram indígenas, afrobrasileiros, pobres e população das periferias. A relatora ainda destaca como famílias têm hesitado em denunciar desaparecimentos, alegando o risco de represália, e como a falta de progresso nas investigações tem levado à impunidade.
Mas um mal-estar tomou conta do evento. Brasília deixou claro que não iria responder a algumas das perguntas, consideradas como “fora da realidade” e rejeitando também denúncias de que haveria base para falar em extermínio de povos indígenas.
“Rejeitamos qualquer afirmação nesse sentido”, disse a delegação. “Não é a realidade. O Brasil cuida e cuida muito bem de seus indígenas”, afirmou o governo. Para a delegação de Bolsonaro, o governo tinha “talvez o maior programa de assistência emergencial do mundo”.
Quem é o brasileiro
Vannuchi foi ministro de Direitos Humanos nos primeiros governos de Luiz Inácio Lula da Silva e é, atualmente, conselheiro do Instituto Vladimir Herzog. Ele foi membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2014-2017), foi um dos fundadores da Comissão Arns de Direitos Humanos e é o responsável pelo Mecanismo Permanente de Combate à Tortura no Brasil.
Ao longo de sua vida, ele participou da equipe que elaborou clandestinamente, entre 1979 e 1985, o relatório sobre torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados durante a ditadura militar.
Vannuchi fez parte da elaboração do texto final do livro-reportagem “Brasil: Nunca Mais”, a primeira pesquisa clandestina sobre vítimas de tortura, identificação de torturadores, assassinatos e desaparecimentos forçados de opositores políticos no Brasil durante a ditadura militar.
O ex-ministro foi responsável pela elaboração do Decreto Presidencial que instituiu, em 21 de dezembro de 2009, o Programa Nacional de Direitos Humanos-III, que incluiu a criação da Comissão Nacional da Verdade.
Foi uma iniciativa sua que levou o governo a contratar o laboratório Genomic em São Paulo e visita à Equipe Argentina de Antropologia Forense para repetir exames de DNA tecnologicamente atualizados. O resultado foi a identificação final da ossada do líder estudantil cearense Bergson Gurjão Farias (2009), um dos 67 opositores executados na Guerrilha do Araguaia.
“É uma vitória da diplomacia brasileira, do Itamaraty e do Governo Lula. O Brasil foi o terceiro país a assinar essa Convenção da ONU contra os Desaparecimentos, em Paris, em fevereiro de 2007, logo após a França e Argentina, Estados que lideraram a construção desse tratado durante mais de 10 anos. O impacto causado pelo filme sobre Rubens Paiva mudou a consciência nacional sobre um nó que ainda precisa ser desatado. Desafio essencial para proteger a democracia em nosso país. É provável que, ainda em 2025, o STF corrija a jurisprudência sobre impunidade dos torturadores, tendo como primeiro passo o entendimento de que desaparecimento constitui crime continuado, não acobertado pela interpretação errônea adotada em 2010”, disse Vannuchi em suas redes sociais.