13/06/2025
Por Paulo Baía (*), em Agenda do Poder
Na imensidão de um país que ainda treme sob os escombros de seus próprios alicerces coloniais, há um lugar onde a História, como uma serpente, muda de pele sem jamais abandonar o veneno. O Congresso Nacional, em sua 57ª Legislatura, é o espelho limpo — e ao mesmo tempo opaco — de uma alma nacional que jamais rompeu com os fantasmas de seu passado. Ali, entre paredes envidraçadas e vozes que se erguem como trombetas ou sussurram como preces, desfila com gravata e mandato o Brasil profundo, o Brasil senhorial, o Brasil que nunca aboliu de fato a escravidão.
Ali, não se trama o novo, mas se repete — com sutileza ou brutalidade — o que já conhecemos há mais de cinco séculos. O que se vê no plenário, sob os ritos da institucionalidade, é a expressão mais sofisticada da velha casa-grande, agora reconfigurada com aparelhos eletrônicos, discursos moderados, manuais de orçamento e uma fé inabalável na desigualdade. De tempos em tempos, um deputado sorri diante das câmeras e diz estar protegendo a pátria, enquanto, nos bastidores, se vota pela redução do mínimo existencial: salário mínimo, BPC, SUS, Fundeb. O Brasil dos vulneráveis é fatiado como um pão velho na mesa dos patrícios.
Há, é claro, uma liturgia: o decoro, as comissões, as audiências públicas. Mas por trás do véu dos rituais, está a verdadeira alma dessa legislatura — uma alma ciosa em manter intacta a arquitetura da exclusão. Em nome da responsabilidade fiscal, sacrifica-se o pobre; em nome do equilíbrio orçamentário, perpetua-se o desequilíbrio humano. Nenhum projeto para auditar a dívida pública; nenhuma iniciativa para mexer nos super salários; silêncio absoluto sobre a aposentadoria dos militares. Mas ruído, muito ruído, quando se fala em taxar fortunas ou cortar isenções indecentes.
Esses homens e mulheres que compõem o Congresso não são aberrações. São retratos fiéis de uma maioria que ainda carrega, no mais íntimo da subjetividade nacional, o desejo secreto de que as hierarquias sociais permaneçam intactas. São ecos do Brasil que aplaudiu a monarquia, que protegeu os latifúndios, que justificou o tronco, que desconfiou da República quando ela ousou falar em povo. O que vemos hoje não é novo: é o retorno com vestes de gala do que sempre esteve entre nós.
Na legislatura que começou em 2023 e se estenderá até fevereiro de 2027, essa pulsação ancestral se manifesta com vigor particular. O Estado que ampara é visto como um estorvo; o Estado que regula, como um inimigo; o Estado que cuida, como um desvio de rota. A ideia de que os pobres possam viver com dignidade é tratada como extravagância. O voto, que deveria ser ponte entre o desejo popular e a justiça social, transforma-se em selo de legitimação para a manutenção de uma ordem excludente.
É uma política de travo seco e dentes cerrados. Discute-se a dor com a frieza de planilhas. Calcula-se a miséria com gráficos coloridos. O Congresso parece dizer, todos os dias, que o Brasil é dos fortes, dos rentistas, dos herdeiros. As emendas parlamentares fluem como rios caudalosos para projetos opacos, enquanto os professores pedem socorro e os hospitais fecham leitos. No mesmo edifício onde se declara o compromisso com o futuro, o presente é saqueado em nome de privilégios antigos.
Não se trata de ignorância, tampouco de má-fé simples. Trata-se de um projeto. Um projeto lúcido, coerente, articulado — e brutal. O que se busca é a manutenção de um pacto secular: manter os de cima em seus tronos e os de baixo em seus labirintos. O Congresso Nacional, nesse sentido, funciona como uma espécie de órgão vital desse corpo antigo chamado Brasil. Não o Brasil da esperança ou da rebeldia, mas o Brasil da obediência social, do clientelismo estruturado, do medo das reformas de base.
Ainda assim, entre os corredores dessa catedral laica, há vozes que discordam, votos que lutam, corpos que resistem. Há parlamentares que sabem que o tempo da escravidão terminou no papel, mas não na vida. Gritam, denunciam, tentam impedir a marcha do retrocesso. Mas são poucos, e quase sempre abafados pelo coro dos que defendem o status quo em nome da ordem, da família, da fé, do mercado.
E o povo? O povo assiste, espremido entre as promessas e os cortes. O povo adoecido, endividado, humilhado, clama por justiça, mas recebe austeridade. O povo invisível nas galerias, nas pautas, nas prioridades. Dele se espera paciência, resignação, gratidão até. Afinal, não há fome que resista a uma boa campanha publicitária.
A história do Brasil tem sido, desde sempre, o desafio de reescrever o que foi escrito a ferro e sangue. Mas há legislaturas que mais parecem réplicas de capítulos passados. Esta, a de 2023 a 2027, é uma delas. Não inventa o retrocesso: apenas o administra com competência. Não propõe um novo Brasil: conserva o velho com zelo e afeição.
O Congresso Nacional, respeitável em sua estrutura e necessário em sua função republicana, é hoje habitado por uma maioria que reencena, com gestos atualizados, o drama de um país que não deseja mudar. E quando deseja, muda apenas a casca, nunca o conteúdo. A modernidade das tecnologias, a sofisticação dos discursos, o vocabulário da tecnocracia — tudo isso ao serviço de um país que prefere manter sua desigualdade do que arriscar a justiça.
E assim segue o Brasil, votando, esperando, rezando, sobrevivendo. Enquanto os discursos sobem à tribuna com a altivez dos que se acham fundadores do futuro, a realidade escoa pelos ralos da indiferença. E o povo, esse povo cansado de esperar, segue em sua caminhada de séculos, esperando que um dia, quem sabe, o Congresso fale de fato em seu nome — e não apenas em sua ausência.
(*) Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ