03/06/2025
Por Ivair Augusto Alves dos Santos (*)
Em conversa animada com o saudoso Professor Eduardo de Oliveira, autor do Hino à Negritude, ele comentou que em dada ocasião, lá pelos idos da década de 1950, estava em campanha para ser candidato a vereador no Município de São Paulo. Então ele teve a brilhante ideia de fazer a rifa de um liquidificador, utensilio doméstico muito disputado na época.
Então, em um baile da moçada, ele apresentou a seguinte ideia: cada pessoa que apresentasse o seu título de eleitor ganharia um número para concorrer ao liquidificador. Foi um alvoroço no baile. Porém, qual foi a grande surpresa?
No baile, que deveria ter cerca de mil pessoas, quase ninguém tinha o título de eleitor. A maioria dos presentes era analfabeta e não tinha o direito de votar. O direito ao voto dos analfabetos só foi conquistado em 1985. Há pouco mais 40 anos!
Pouca gente sabe, mas durante o período de escravização, as pessoas negras foram proibidas de frequentar a escola. A Lei nº 1 de 14 de janeiro de 1837 soma-se a outras leis e portarias de províncias e de instituições de ensino, que deixaram demarcado de forma explícita o impedimento de pessoas negras de estudarem. As poucas escolas públicas criadas no início do século XIX foram proibidas aos homens negros e mulheres negras.
Lei n. 1, de 1837, e o Decreto nº 15, de 1839, sobre Instrução Primária no Rio de Janeiro,
o Artigo 3º da lei de 1837 dizia:
São prohibidos de frequentar as Escolas Publicas:
1º Todas as pessoas que padecerem de moléstias contagiosas.
2º Os escravos, e pretos ainda que sejão livres, ou libertos
Ao longo do século XIX, o esforço de ensinar a ler e escrever coube às Irmandades de cor, aos Clubes Sociais Negros e às Organizações Negras, que criaram a imprensa negra e a iniciativas de professores negros como professor Pretextato, em 1856, no Rio de Janeiro e Antônio Cesarino, em 1860, na cidade de Campinas no estado de São Paulo . O Estado brasileiro se omitiu e proibiu que os negros pudessem frequentar escolas.
Os efeitos desta tragédia humana impactaram no acesso à educação e criaram obstáculos à participação política de homens e mulheres negras. A aprovação da Emenda Constitucional nº 25 de 1985 iniciou mudanças a esse cenário e, em seguida, a Constituição Federal de 1988 ampliou o direito ao voto de pessoas analfabetas.
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu um arcabouço reconhecendo a importância da educação para pessoas negras, em especial os Artigos 4º,5º, 205º,206º,208º,211º,212º, 212ºA, 213º e 214º. O resultado desses marcos institucionais, fruto da luta do movimento negro, é que hoje podemos formular políticas públicas de equidade para enfrentar as múltiplas desigualdades que ainda persistem em nosso sistema educacional.
O Ministério da Educação, no dia 14 de maio de 2024, lançou a Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (PNEERQ) coordenada pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi). O objetivo é fortalecer ações e programas educacionais sobre relações étnico-raciais e a educação escolar quilombola, com impacto em 5.570 municípios das 27 unidades federativas. Uma verdadeira revolução, como nunca foi realizado na história da educação brasileira.
É a continuidade de um processo de reparação histórica, realizada pela luta do movimento negro ao longo do século XX e XXI contra a omissão e o racismo do Estado brasileiro.
Neste primeiro ano, houve adesão recorde à PNEERQ: de 97,3% das secretarias municipais e 100% das secretarias estaduais. Nos estados de Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará e Rio de Janeiro, houve a adesão de 100% dos municípios, reforçando o compromisso nacional com a implementação da política. Sua capilaridade é assegurada por uma rede nacional de governança, composta por mais de 1.500 agentes de articulação e formação distribuídos em todo o território nacional. Até 2027, a PNEERQ investirá R$ 1,5 bilhão em ações afirmativas para educação básica brasileira.
Para a secretária da Secadi, Zara Figueiredo, a PNEERQ, que completou um ano, é tida como a política mais estratégica do MEC para promover equidade racial na educação básica. “É a primeira vez que introduzimos um princípio de ação afirmativa na educação básica. Ela nasce da certeza de que existe uma dívida histórica com a população negra e quilombola, mas, também, do reconhecimento de todos os que vieram antes de nós e pavimentaram este caminho. Equidade racial e educação para as relações étnico-raciais dizem respeito à garantia do direito à educação, com um padrão de qualidade para essas populações”, ressalta.
Conhecendo o professor Eduardo de Oliveira, acredito que ele daria uma gargalhada bem gostosa de alegria com os resultados e o impacto do PNEERQ na vida de nossa gente, ele, que foi sempre otimista em relação à força do movimento negro no enfrentamento do racismo. Depois, eu o veria com o semblante sério, e com a voz animada nos convidaria a entoar os versos do Hino à Negritude:
“De um passado de heróico labor
Todos numa só voz
Bradam nossos avós
Viver é lutar com destemor
Para frente marchemos impávidos
Que a vitória nos há de sorrir
Cidadãs, cidadãos
Somos todos irmãos
Conquistando o melhor por vir
Ergue a tocha no alto da glória
Quem, herói, nos combates, se fez
Pois que as páginas da História
São galardões aos negros de altivez”
Em 28 de maio de 2014 promulgada a lei 12981 que dispõe do hino à Negritude de autoria do Professor Eduardo de Oliveira(1926-2012)
(*) Ivair dos Santos é Doutor em Sociologia pela UnB e integra a diretoria de Igualdade Étnico Racial da ABI