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Adeus a Lourenço Diaféria


17/09/2008


O jornalista e escritor Lourenço Diaféria, 75 anos, morreu na madrugada desta quarta-feira, 17, em São Paulo, vítima de problemas cardíacos. O enterro será esta tarde, às 16h, no cemitério Getsêmani, no Morumbi.

Nascido no bairro do Brás, em 28 de agosto de 1933, em São Paulo, o contista, cronista e autor de livros infantis iniciou a carreira em 1956, no jornal Folha da Manhã, atual Folha de S. Paulo.

Em 1977, foi preso e processado pela autoria da crônica “Herói. Morto. Nós”, considerada ofensiva pelo regime militar (o texto está reproduzido abaixo). No mesmo ano, foi um dos vencedores do VII Concurso Nacional de Contos do Paraná, com “Como se fosse um boi”.

Ao longo da carreira, Diaféria trabalhou no Jornal da Tarde, no Diário Popular e no Diário do Grande ABC, nas rádios Excelsior, Gazeta, Record e Bandeirantes e na TV Globo.

O jornalista é autor dos seguintes livros: “Um gato na terra do tamborim” (1976); “Circo dos cavalões” (1978); “A morte sem colete” (1983); “A longa busca da comodidade” (1988); “O invisível cavalo voador — Falas contemporâneas” (1990); “Papéis íntimos de um ex-boy assumido” (1994); “O imitador de gato” (2000); e “Brás — Sotaques e desmemorias” (2002). 


Herói. Morto. Nós.

Crônica publicada em 1º de setembro de 1977

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Que nome devo dar a esse homem?

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói — como o santo — é aquele que vive sua vida até as últimas conseqüências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.

E todavia.

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel — onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer — oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento — apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher — salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que — como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem — não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas — como você tirou o menino de catorze anos — mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.

Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis — tarde demais.