10/02/2009
A operação policial militar coordenada nesta segunda-feira, dia 9 de fevereiro, na Cidade de Deus, pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), com apoio do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (Bope), que resultou no fechamento de cinco rádios comunitárias na favela carioca está sendo duramente criticada por entidades e pessoas ligadas ao movimento de emissoras populares.
De acordo com fontes da Anatel, a ação na Cidade de Deus foi desencadeada a partir de uma denúncia anônima recebida pelo órgão de que na favela estariam funcionando rádios que a Agência classifica de piratas, e que seriam “financiadas por comerciantes locais e congregações”, conforme noticiou o jornal O Globo, na edição desta terça-feira, dia 10 de fevereiro.
Para a Conselheira do Conselho Federal de Psicologia, Roseli Goffman, não cabe à Anatel desenvolver ações de polícia:
— A Anatel é uma agência reguladora, por isso não deve se prestar a agir como polícia. Quando isso acontece fica difícil saber a que interesse o órgão está servindo. Agência reguladora foi feita para regular, a sua missão não é policiar.
Roseli Goffman chama as ações da Anatel de “choque de ordem discriminatório” porque só atinge a população menos favorecida, pobre e marginalizada, sem grande representatividade social:
— É por isso que devemos discutir mais esse projeto de lei que o Governo Federal encaminhou para o Congresso, para descriminalizar as rádios comunitárias, que já prestam serviços à comunidade. Ou seja, elas já avançaram porque já vêm desempenhando esse papel que é dar voz a quem não tem.
Roseli acha que a Anatel deve reconsiderar o seu papel, e informou que o debate sobre a regulamentação das rádios comunitárias vai ser levado para a Conferência Nacional de Comunicação:
— Esse ponto já foi defendido em audiências públicas, como a que aconteceu em outubro do ano passado com a participação da ABI. O povo que não tem acesso às rádios hegemônicas vai poder participar dessas discussões, declarou Roseli Goffman.
Equívocos
A forma como a Anatel vem tratando a questão das rádios comunitárias é considerada “um conjunto de absurdos” pelo jornalista Gustavo Gindre, mestre em comunicação (UFRJ), coordenador-geral do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs):
— A começar pela legislação que é repressiva e muito ruim. Trata-se do único caso constitucional em que uma autorização (de funcionamento das rádios comunitárias) precisa passar pelo Congresso, enquanto que as grandes emissoras são concessões.
Gustavo Gindre criticou os Governos Fernando Henrique e Lula. O primeiro, porque não cuidou bem da questão da regulamentação; o segundo porque ele acha que não precisava submeter essa questão ao Congresso Nacional, pois teria condições de mudar as regras atuais sem necessidade de submeter a sua decisão ao Legislativo.
Desobediência civil
Gustavo Gindre critica também o Ministério das Comunicações, que segundo ele leva anos para analisar os pedidos de autorização de funcionamento das rádios comunitárias.
De acordo com o jornalista, essa demora que as rádios comunitárias enfrentam para obter respostas aos seus pedidos de autorização de funcionamento, que muitas vezes nem acontecem, acaba levando essas emissoras “para a desobediência civil”:
— A lei é incompreensível, foi feita para não ser cumprida. É uma dinâmica que obriga as rádios a deixarem de funcionar, principalmente porque além da demora enfrentam uma forte repressão da Anatel e da Polícia Federal, que vêm cometendo o absurdo de apreenderem os equipamentos das rádios, como computadores, e não somente os transmissores.
Segundo Gindre esse procedimento da Anatel com o apoio policial é que empurra as rádios comunitárias para a ilegalidade:
— Infelizmente esse tem sido a posição do Governo.
Advertência
Ao analisar a ação da Anatel na Cidade de Deus, o Presidente da Associação das Rádios Públicas do Brasil (ARPUB), Orlando Gilhon, disse que antes de se tomar qualquer atitude repressiva contra as chamadas rádios clandestinas é necessário, em primeiro lugar, “de forma cirúrgica diferenciar o que são rádios comunitárias e as que não são”.
Segundo Orlando Guilhon, o próprio movimento das rádios comunitárias tem dificuldades nesse quesito. Mas adverte:
— As rádios comunitárias são produtos da luta social das comunidades, contamos com inúmeras iniciativas nesse sentido. Por isso é muito importante separar o joio do trigo. Ou seja, as rádios que realmente estão a serviço das suas comunidades, daquelas que se travestem por pertencerem a traficantes, comerciantes ou grupos religiosos.
Outro fato relevante observado por Orlando Guilhom nas reportagens publicadas sobre a operação repressiva da Anatel na Cidade de Deus é que não há entrevistas com ninguém da favela:
— As fontes ouvidas são da Abert, da PM e da Anatel. Vejo uma insinuação de que houve o apoio da população a esse tipo de atitude da polícia. É como se estivesse (a comunidade local) assumindo a denúncia de que as rádios pertenciam ao tráfico assinasse em baixo essa informação.
Segundo o Presidente da ARPUB, muitas emissoras comunitárias tradicionais, com mais de 15 anos de atuação vem sofrendo com a ação do Poder Público:
— Concordo com a queixa do movimento das rádios comunitárias de que há muito rigor do Poder Público em reprimir de forma indiscriminada essas emissoras. Não dá para fazer uma defesa genérica, mas a repressão acaba atingindo as rádios que não pertencem a traficantes.
Orlando Guilhon disse que a legislação atual é draconiana, sendo assim reconhecida pelo próprio Governo Federal, que tem ouvido muitas reclamações muito fortes das rádios que querem se regularizar:
— São quase 2 mil rádios nessa situação aguardando o processo de regularização, mas como não conseguem esse trâmite acabam sendo consideradas ilegais, afirmou o Presidente da ARPUB.
Projeto
O projeto de lei que descriminaliza as rádio-comunitárias foi enviado ao Congresso Nacional pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 15 de janeiro. A elaboração do projeto foi da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.
Pela legislação atual, possuir ou operar uma rádio comunitária é considerado crime pelo Código de Processo Penal, com pena prevista de dois a quatro anos de reclusão.