30/04/2025
Por Angélica Santa Cruz , em revista piauí
Arte: Andrés Sandoval
Nos últimos meses, as notícias sobre reparações a familiares de mortos e desaparecidos da ditadura militar foram se avolumando, em um ritmo poucas vezes visto. Na manhã de 16 de abril passado, uma cerimônia no auditório da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) anunciou a identificação de dois opositores do regime enterrados na vala clandestina de Perus, na Grande São Paulo. As famílias do ex-marinheiro Grenaldo de Jesus da Silva, morto em 1972, e do pedreiro Denis Casemiro, que desapareceu em 1971, enfim, podem receber seus restos mortais.
Dias antes, o governo federal havia feito um pedido de desculpas formal às famílias das pessoas enterradas na vala. E, logo no início do ano, o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma resolução para que cartórios coloquem nos atestados de óbito das vítimas da ditadura a informação de que suas mortes foram causadas por violência do Estado.
Por trás dessas medidas em série, está a urgência dos escaldados. “Estamos correndo”, diz a procuradora Eugênia Augusta Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Ela assumiu a presidência do colegiado pela primeira vez em 2014. Cinco anos depois, foi exonerada por Jair Bolsonaro. Em 2022, a própria comissão foi extinta. No ano passado, foi reconstituída, e Gonzaga voltou à presidência. Trabalha com outros seis membros, entre representantes do governo, da sociedade civil e de familiares de vítimas da repressão. Dentro do sistema da Justiça, a procuradora se transformou na personificação desse tipo de busca por reparação.
Filha de agricultores do interior de Minas Gerais, Gonzaga cresceu em um ambiente no qual não se falava de ditadura militar. Quando foi estudar em uma escola pública, aprendeu o nome da fieira de generais presidentes da República. Aquilo parecia um passado difuso, sem grandes consequências. “É horrível, mas grande parte da nação brasileira cresceu assim, completamente alheia ao que aconteceu”, diz ela.
Em 1997, aos 27 anos, entrou no Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo. Cinco anos depois, assumiu a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), em São Paulo, e herdou parte do trabalho iniciado por Marlon Alberto Weichert, que acabara de ser promovido.
Vindo de uma família conservadora de Niterói, Weichert também cresceu com vaga noção do que foi a ditadura. Ele se lembra de, na infância, perguntar ao pai o que significavam os adesivos colados por toda parte que diziam “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita”. Era a campanha que resultaria, em 1979, na Lei da Anistia, que perdoou todos os crimes políticos ou conexos a eles, cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Depois, já na adolescência, Weichert topou com o livro Brasil: Nunca mais, que escancarava a truculência da repressão. Lançada em 1985, a obra foi um best-seller. A leitura deixou Weichert impressionado – e, aí sim, ele teve um panorama exato do que significou aquele período sombrio.
Logo que assumiu a PRDC de São Paulo, em 1999, Weichert recebeu uma representação enviada pelo grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro. O documento denunciava a paralisação na identificação dos restos mortais do desaparecido político Flávio Carvalho Molina, que haviam sido retirados da vala de Perus, junto com mais de mil ossadas. Weichert fez uma inspeção na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para onde os restos mortais haviam sido levados. Descobriu que estavam amontoados em um galpão, em sacos cheios de lama, e começou a acionar o governo paulista para pedir providências. Foi se inteirando mais e mais dos horrores da ditadura.
Anos depois, quando Eugênia Gonzaga assumiu o caso da vala de Perus, ela pediu para trabalhar em parceria com Weichert. Os dois viraram grandes amigos, a corda e a caçamba.
As ossadas ainda seriam distribuídas para várias instituições e ficariam sob os cuidados de vários peritos, em um trabalho até hoje inconcluso. Mas, em 2005, os restos mortais de Flávio Molina foram enfim identificados.
Como a representação que motivou o envolvimento dos procuradores estava resolvida, a tarefa de Gonzaga e Weichert terminaria ali. Mas ela se recusou a arquivar o caso – achou que o Brasil devia uma explicação às famílias das outras pessoas enterradas na vala. “A Eugênia, então, me falou mais ou menos assim: ‘Marlon, e agora? O que a gente faz? Temos a prova de um crime, cometido pelo Estado’”, conta Weichert. “Respondi que era um crime alcançado pela Lei da Anistia. Ela lembrou que países como Chile e Argentina estavam reabrindo casos do gênero e sugeriu: ‘Por que você não estuda o assunto e depois a gente conversa?’”
Weichert passou a estudar a legislação internacional. Descobriu que trabalhava com justiça de transição. É um conjunto de medidas, judiciais ou não, adotadas para enfrentar o passado de uma ditadura. Na mesma época, a Corte Interamericana de Direitos Humanos soltou umasentença dizendo que os crimes praticados pelo regime militar do Chile foram cometidos contra a humanidade e, portanto, não poderiam ser anistiados ou prescritos. A dupla tinha agora um arcabouço jurídico internacional para defender que, no Brasil, os crimes da repressão não poderiam ser perdoados pela Lei da Anistia de 1979.
Mais de uma vez, eles ouviram de autoridades brasileiras que era melhor deixar esse tema quieto, porque a redemocratização no país havia sido construída em cima de um grande pacto de esquecimento. Os dois fizeram o contrário. Com outros integrantes do MPF que aos poucos foram se juntando na busca por reparação, decidiram entrar com ações civis públicas.
Uma delas, de 2008, fez um barulhão. Pedia que a União e dois militares reformados, Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, comandantes do doi-Codi nos anos 1970, fossem responsabilizados pela tortura e morte de 64 pessoas. A cúpula do segundo governo Lula se dividiu. Uma ala pediu que o governo aderisse à ação, entrando também como autor.
Outra banda defendeu o pacto de anistia. “O presidente Lula arbitrou, e infelizmente a União fez uma defesa virulenta contra a nossa iniciativa, defendendo os torturadores. Foi um capítulo triste. E é uma posição processual que persiste até hoje, porque essa ação ainda não terminou”, diz Weichert.
Nos vários anos em que vem atuando na área, Eugênia Gonzaga participou de pencas de diligências, atrás de restos mortais dos desaparecidos. Embrenhou-se no Cemitério Vila Formosa, em São Paulo, o maior da América Latina. Percorreu o Cemitério Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro. Entrou em matas de Minas Gerais, fez parte de uma expedição no Parque Nacional do Iguaçu. Algumas vezes, Weichert foi junto. minha conta
As diligências são trabalhos penosos. Envolvem a dolorosa espera das famílias dos desaparecidos, a constatação da truculência dos torturadores e muitos desafios – quanto mais o tempo passa, mais difícil fica identificar as ossadas, por exemplo. Gonzaga foi tateando.
“No começo, eu evitava chamar as famílias, para não criar uma falsa esperança. Depois, já na comissão, aprendi que elas é que precisam decidir se querem participar. Muitas vezes, a busca em si já é uma resposta do Estado.”
Antes de telefonar para os familiares e dar qualquer notícia, a comissão consulta uma planilha onde a história de cada família é meticulosamente anotada. Ali tem de tudo – há pessoas com atuações políticas e expectativas diferentes. Em todos os casos, a tensão emocional é imensa.
Nos próximos meses, Eugênia Gonzaga vai retomar as diligências em cemitérios. Depois de liderar projetos como uma versão online de todo o material do Brasil: nunca mais, o livro que fez sua cabeça na adolescência, Marlon Weichert se dedica à responsabilização de empresas que colaboraram com a repressão. “Uma das bases da justiça de transição é que impunidade gera recorrência. Infelizmente, tanto o STF quanto o governo Lula viram isso na pele, nos atos golpistas de 2023”, diz ele.
Por causa das voltas que o mundo dá, agora o STF vai analisar se a Lei da Anistia pode mesmo ser usada para perdoar crimes ainda sem solução de ocultação de cadáver, cometidos durante a ditadura militar.