19/06/2020
Por Kelly Lima, da Comissão Mulher& Diversidade da ABI
O Cotidiano de Teresa Cristina, a live de todas as noites
Toda noite ela faz tudo sempre igual. Nos sacode às 10 da noite com um sorriso pontual, passa batom e entre goles na cerveja gelada disposta numa caneca com o logo do Vasco, e mordidas nas coxinhas que os fãs mandam entregar em casa, ela nos brinda com histórias do samba, e muita, mas muita música boa. É Teresa Cristina, que muitos conhecem das casas de samba da Lapa, outros pela voz poderosa que acompanhava Zeca Pagodinho na abertura da novela Bonsucesso, da Rede Globo, ou do disco que fez em homenagem a Cartola. Referências não faltam para conhecê-la, mas certamente suas lives durante a quarentena serão marcadas com um dos poucos momentos felizes destes tempos nebulosos.
Chico Buarque certamente perdoaria a tentativa de paródia feita com genial letra de Construção no início desse texto. Afinal já deu sua benção para as lives. Passou por lá na noite em que ela homenageava os 81 anos de Antônio Pitanga. Ele, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, e outros mestres que passaram só para dar os parabéns à Pitanga. Aliás, ele próprio ao lado de Benedita Silva, também passou por lá, e a filha, Camila também como milhares de outros artistas de todas as idades, de todas as gerações. De Simone, Joana e Rosana, a Céu, Mariana Aydar, Daniela Mercury e Alice Caymi. Em outra noite, feita em sua homenagem, Gilberto Gil já entrou cantando e levou às lágrimas TT, como é chamada pelos íntimos. Íntimos, entenda-se, como todos nós que desde o início da quarentena em março acompanhamos sua cantoria à capela, noite adentro por três ou quatro horas seguidas…
Sim, você leu certo. Todas as noites, nos últimos três meses, ininterruptamente, por mais de três horas. Haja voz, haja fôlego e mais que tudo, haja coração para dar conta de acompanhá-la. Emoções estão sempre à flor da pele e, não raras vezes, essa carioca da Vila da Penha encerra a live em lágrimas depois de ver ali tão perto os ídolos cantando, a chamando pelo nome, somos todos íntimos dela, afinal. Caetano e Gil entraram na live de pijama e sentados na cama. Todos dividimos a cama com Teresa Cristina nesta quarentena solitária ou acompanhada. É impossível ir para cama sem ela, já dizem…
Mas ela não é a tiete que se emociona apenas com ídolos geniais. Vai aos prantos literalmente com talentos desconhecidos do grande público. Em sua generosidade, alcançando picos de 13 mil pessoas assistindo simultaneamente, e manter média frequente acima de 2 mil pessoas, mesmo em segundas-feiras, TT convida figuras indicadas pela plateia presente, recebe nomes regionais que vem se apresentar ali. Foi assim com Jonathan Ferr, que depois de uma única música brilhantemente apresentada no piano, foi convidado a abrir as lives diariamente. Foi assim com Chico Viola, que trouxe do Maranhão linda homenagem a João do Valle, de sua autoria, ou a pernambucana Silvia Borba, que hoje mora no Paraná, e que marca presença em todas as lives enchendo a noite com seu timbre poderosíssimo. Ou ainda com o mineiro Maurício Tizumba, indicado nos comentários da live por Dona Conceição Evaristo. Com imagem congelada por falha de tecnologia, cantou os orixás, em seu sítio no interior de Minas e acalentou a noite, chorosa, claro.
Se engana quem pensa que essa choradeira triste a todos. Pelo contrário. A live de Teresa Cristina se tornou um multialívio da pressão diária exercida pela quarentena. É lá, como nos bares da vida, que cantamos para espantar a tristeza, nos solidarizamos com os que estão também sozinhos e isolados, ganhamos voz na revolta de Teresa comentando as notícias do dia e com a indignação dos convidados que sempre também tratam da situação geral, num exercício de empatia e resistência com o público que está ali e com os mais vulneráveis.
As lives são políticas, não se engane, e não entre lá desavisado. Aliás, nem passe perto se você for do tipo que acha normal o que está acontecendo no País. Certamente será bloqueado, ou se sentirá confuso com tamanha força dos discursos anti-racistas, anti-homofóbicos, anti-homofóbicos e anti-Bolsonaro. Claro. Quando TT precisa encontrar um convidado entre os milhares que ali comentam, ela pede uma palavra de ordem: “Posta um #FORABOLSONARO ou um #CALABOCAREGINA (ainda durante a brevíssima gestão da atriz e ex-ministra) para eu te achar”.
Essa forma particular de convite, as coxinhas, os goles de cerveja, o batom sendo reposto entre as músicas, os olhinhos espremidos para encontrar um nome, as gargalhadas que ecoam e rebatem no coração de quem ouve, já construíram o fã-clube Cristiners, e também o encontro virtual dos Cristinders, que ali se conhecem e partem para encontros paralelos, como no aplicativo. Nada disso será esquecido, mesmo que alguns programas não tenham infelizmente ficado gravados. Teresa Cristina ficará antologicamente marcada pelas suas lives. Qualquer show ao vivo, abraço do público, ovação, aclamação que venham para agradecê-la, será pouco, será mínimo, será nada, perto do que ela faz, mantendo nestas noites pandêmicas, um círculo de afeto e resistência para dar suporte à sanidade emocional do seu público fiel, que só aumenta dia após dia. O cotidiano de Teresa Cristina nesta quarentena, tijolinho por tijolinho, é sólida e deve perdurar como as músicas que ela canta.