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A arte fura a bolha do silêncio


13/02/2025


Por Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay) (*), em Coluna do Kakay, no O Dia

“Quem é essa que me olha de tão longe, com olhos que foram meus?” (Helena Kolody)

O Brasil é um país sem memória. Ainda hoje, pessoas públicas das mais diversas matizes ousam desprezar o óbvio e afirmam que não existiu o golpe militar e que sustentar que houve ditadura no país é um excesso. Certamente esse foi um dos motivos que fez com que bolsonaristas, desinformados, obtusos e, em regra, de extrema direita, fossem às ruas pedir a intervenção e a volta dos militares. Um povo que não conhece a sua história tende a repetir os seus erros. Mesmo quando esses significam evocar a morte, a tortura, o estupro de mulheres grávidas e o desaparecimento de pessoas.

Foi preciso uma mulher de esquerda, que foi barbaramente torturada, assumir a Presidência da República para ser instalada a Comissão da Verdade, que jogou luzes no período sangrento e nebuloso da Ditadura militar. O Brasil não fez um museu, ou um memorial, para mostrar ao seu povo os horrores dos porões da barbárie. Agora, em 15 de fevereiro, haverá um debate sobre a construção de um museu-memorial no lugar do antigo DOI-CODI do II Exército, no bairro do Paraíso em São Paulo. O local era chamado de “sucursal do inferno” pelo seu comandante, o torturador Brilhante Ustra, ídolo do fascista Bolsonaro. Estima-se que mais de 7000 pessoas foram barbaridades naquele espaço. Quase todas torturadas e com o registro de 78 mortos por agentes do Estado. O Brasil merece que essa história seja contada, até para que não se repita.

Com a lembrança do Mário Quintana: “O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente…”.

A esquerda brasileira é, em boa parte, ranzinza e mal-humorada. Ouvi críticas ao emocionante filme Ainda Estou Aqui de pessoas que o consideraram romanceado demais e sem o foco na denúncia mais explícita da Ditadura e da tortura. Uma crítica exatamente ao grande mérito do filme, conduzido com maestria pelo genial diretor Walter Salles, que soube tirar do excelente livro do Marcelo Paiva uma comovente história conduzida com magia por Fernanda Torres e Selton Mello. A participação da Fernanda Montenegro é um momento de grande impacto e reflexão.

O filme, dentre outros méritos, teve a inteligência de conduzir a história por caminhos que, mesmo os que se negam a encarar de frente o período da Ditadura, querem ver e, certamente, serão tocados de alguma forma. Por isso, é emocionante constatar que não só o filme está sendo visto por milhões de espectadores ao redor do mundo, como a lembrança dos tempos da Ditadura é reforçada por cada matéria sobre o filme, em cada debate, em toda menção à história e ao enredo, a qual tem que ser explicada. Na entrega do prêmio GOYA, no discurso de agradecimento, a citação expressa à Ditadura militar no Brasil, com o mundo inteiro acompanhando, valeu milhões de vezes mais do que se o filme fosse panfletário e mais contundente, como reclama parte da nossa esquerda.

Não dou muito valor a essa história de OSCAR, mas vai ser genial se a estatueta for para o filme. Os políticos e a elite brasileira, que esconderam a tortura, as mortes, os estupros e os desaparecimentos, vão ver o valor da arte do cinema, de magia que comove. Foi preciso reunir um grupo talentoso de artistas, um grande escritor e um diretor sensível para que, através da arte, a bolha do silêncio fosse furada. Mais uma vez, a arte salva.

Remeto-me, novamente, ao grande Mário Quintana, em Esconderijos do Tempo:

“é quando as portas são fechadas e abertas ao mesmo tempo, é quando estamos metade na luz e a outra metade na escuridão, é quando o mundo real chama e preferimos outro…”

(*) jurista, advogado criminalista

Memorial no antigo DOI-Codi

No próximo sábado, dia 15/02, das 10h30 às 18h00, no Centro de Pesquisa e Formação do SESC, na Bela Vista, em São Paulo (Rua Dr. Plínio Barreto, 285, 4º andar), será realizado o workshop Memorial antigo Doi-Codi: o museu-memorial que queremos.

Reconhecido, em junho de 2024, como Ponto de Memória pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), o complexo arquitetônico onde funcionou o DOI-Codi do II Exército, entre as ruas Tutóia, Tomás Carvalhal e Coronel Paulino Carlos, no bairro do Paraíso, em São Paulo, foi tombado, em janeiro de 2014, pelo CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado, com a recomendação de que ali fosse criado um Memorial, em homenagem às vítimas da tortura.

De 1969 a 1976, cerca de 7 mil pessoas foram presas ali, quase todas torturadas, das quais 78 foram mortas por ação direta de seus agentes – 38 sob tortura no DOI-Codi, 22 executadas em operações de rua e 18 em outros centros clandestinos de tortura, como a Casa da Morte, em Petrópolis, a Casa de Itapevi, conhecida como Boate, e o Sítio 31 de Março.

Seu comandante mais famoso foi o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, já falecido, que usava o codinome de Doutor Tibiriçá. Dos 60 mortos no e pelo DOI-CODI, 43 (72%) foram no comando de Ustra, entre setembro de 1970 e janeiro de 1974.

Em junho de 2021, o Ministério Público de São Paulo entrou com uma Ação Civil Pública, na 14.a Vara da Fazenda Pública, pedindo a transferência dos prédios da Secretaria de Segurança Pública para a Secretaria de Cultura e o início do processo de criação de um Centro de Memória.  Em 9 de setembro de 2021 foi realizada ali uma audiência de conciliação, quando o governo de São Paulo pediu um prazo de 90 dias para apresentar uma contraproposta. O que, até hoje, não aconteceu

O workshop quer debater com um público amplo, diverso e interessado em qual museu-memorial queremos ver instalado naqueles edifícios que contam tantas histórias sobre o Brasil do passado, mas sobretudo do presente.

Neste sentido, propõe mesas de debate e grupos de trabalhos voltados para analisar experiências e aprofundar reflexões para contribuir no processo de construção das diretrizes para o futuro museu-memorial no antigo DOI-CODI.

O diretor de Jornalismo da ABI, Moacyr Oliveira Filho, que foi capturado e torturado no DOI-Codi de São Paulo, em maio de 1972, e integra o GT Memorial DOI-Codi, participará do worhshopp.