Vasco, 110 anos (II)


08/08/2008


No período sem títulos, de 1937 a 1944, a melhor colocação do Vasco foi o vice-campeonato carioca de 44. A formação do time que passaria para a história como o “Expresso da Vitória” começou no início da década de 40. O primeiro a chegar foi Ademir Marques de Menezes, que, revelado pelo Esporte Clube de Recife, se tornou um dos maiores atacantes da história do futebol mundial por seus chutes certeiros e suas fulminantes arrancadas, terror das defesas adversárias. Depois do 4º lugar, em 43, houve a reformulação do time, com novas contratações solicitadas por Ondino Viera, técnico uruguaio, bicampeão carioca no comando do Fluminense (1940-41) e com passagem pelo River Plate, da Argentina, cuja camisa inspirou o novo uniforme que substituiu as camisas pretas.

Chegaram o zagueiro argentino Rafanelli, do Santa Fé; o médio Eli do Amparo, revelação do Canto do Rio; o versátil Djalma, do Esporte Clube Recife; o ponta-esquerda gaúcho Chico; e Lelé, Isaias e Jair, o trio atacante sensação do Madureira, de onde veio também o massagista Mário Américo.

Ondino levou o Vasco à decisão do campeonato carioca de 44 contra o Flamengo. Vascaínos e rubro-negros pisaram o gramado do estádio da Gávea, ambos com oito pontos perdidos. O extraordinário “Mestre Ziza”, quando o entrevistamos no programa “Álbum dos esportes”, da Rádio Capital, em 1984, me falou sobre a histórica partida:
“Bem, em 44, o time do Vasco já era melhor do que o do Flamengo. Honestamente, já era melhor e nós tínhamos que ganhar aquela. Nosso time já estava caindo e uma campanha de tricampeonato é muito cansativa. Os jogadores jogaram em péssimas condições a última partida. O Vasco cresceu muito, sendo campeão em 1945.

O Vasco teve dois lances de saída, com duas grandes defesas de Jurandir, e depois nós dominamos a partida. Perdemos muitas oportunidades e o gol saiu porque nós merecíamos.”

Gol decisivo

O discutido gol que decidiu o título do campeonato carioca de 1944 aconteceu aos 43 minutos do segundo tempo. Vevé bateu a falta da esquerda, Valido e Argemiro saltaram e o ponta-direita do Flamengo cabeceou para o fundo da meta de Barqueta. Zizinho me disse como viu a jogada:
“O lance foi normal. Naturalmente, pegaram uma fotografia do Valido caindo e, na caída, ele deve ter se apoiado nas costas do Argemiro, mas a bola já estava no gol.”

No ano seguinte, passaram a integrar a equipe vascaína o goleiro Rodrigues, ex-Portuguesa de Desportos; o lateral-direito Augusto, do São Cristóvão; o ex-americano Danilo Alvim, que, por seu futebol de alta categoria, passou a ser chamado de “Príncipe”; o lateral-esquerdo Jorge; e o ponta-direita Santo Cristo, ex-são-cristovense. O grande Barbosa, revelação do futebol paulista defendendo o Ypiranga, chegou ao final da temporada, atuando no último jogo diante do Madureira. Estava formado o “Expresso da Vitória” (na foto ao lado, em pé, Ismael, Eli, Berascochea, Augusto, Rodrigues, Rafanelli e Ondino Viera; agachados, Mário Américo — massagista —, Santo Cristo, Ademir, Isaias, Jair e Chico).

Título invicto

A primeira conquista da poderosa equipe foi o título invicto do campeonato carioca de 1945 com a diferença de quatro pontos para o Botafogo, segundo colocado. Foram 13 vitórias e cinco empates. Lelé liderou a artilharia do campeonato, com 15 gols.

Em 46, surpreendentemente, o Vasco começou mal o campeonato, perdendo jogos incríveis e terminando os dois turnos em 5º lugar, sem participar da disputa extra do supercampeonato vencido pelo Fluminense. A base do time era a mesma de 1945, com exceção de Ademir, que se transferiu para o tricolor das Laranjeiras.

A má campanha ensejou a contratação de Flávio Costa em substituição a Ondino Viera. Flávio fez algumas alterações na equipe, com a entrada do baiano Maneca no lugar de Lelé, que passou a atuar na meia-esquerda; Dimas revezou com Friaça no comando de ataque, após Isaias contrair tuberculose que o levou a morte; e Eli, Danilo e Jorge formavam a famosa linha intermediária, uma das marcas do “Expresso da Vitória”. Barbosa, titular absoluto, completava com Augusto e Rafanelli o trio final.

Mais um título invicto, agora, com a vantagem de sete pontos sobre o Botafogo. O Vasco obteve 17 vitórias e três empates. Dimas foi o artilheiro do campeonato, com 18 gols.

Representante do Brasil

No ano seguinte, o Vasco manteve a base do time e contou ainda com o retorno de Ademir. Como representante do futebol brasileiro, a delegação vascaína embarcou para Santiago do Chile para disputar o Torneio dos Campeões com Colo-Colo, do Chile; Emelec, do Equador; El Litoral, da Bolívia; Municipal, do Peru; Nacional, do Uruguai; e River Plate, da Argentina.

Na estréia, o Vasco conseguiu uma vitória apertada por 2 a 1 contra o El Litoral, especialmente após a expulsão de Ismael. Os gols foram de Lelé (2) e Sandoval. E foi exatamente diante de um desafio maior que o Vasco se mostrou Vasco. O time que encantava em terras nacionais passava a justificar, no exterior, a fama ainda pouco conhecida por nossos vizinhos. O Expresso entrava nos trilhos da vitória com uma contundente e convincente goleada sobre os representantes da já consagrada camisa celeste.

O placar de 4 a 1 sobre o Nacional foi a senha de que a equipe poderia almejar muito mais. Foi uma epopéia construída, a partir dos 11 minutos do primeiro tempo, com uma incrível arrancada de Ademir Marques de Menezes. O Queixada deixou para trás uma zaga uruguaia espantada com a sua velocidade e vigor. O gol de empate do Nacional, marcado por Walter Gomez, 14 minutos depois, não abalou o Vasco, que prosseguiu dominando a partida. Apesar disso, esse domínio só se traduziu em gols no segundo tempo (pelo menos em gols válidos, já que Friaça teve um gol invalidado ainda na primeira etapa). Maneca, Danilo e Friaça completaram o placar.

O Vasco saiu de campo mais respeitado, visto com outros olhos pelos adversários. Tudo estaria perfeito se não fosse uma lamentável baixa. Ademir, que voltava ao Vasco depois de se recusar a renovar contrato com o Fluminense, deixou o gramado com o pé fraturado. Estava irreversivelmente afastado da disputa.

Entretanto, os danos pela perda de seu maior artilheiro não superaram a enorme injeção de confiança que a vitória sobre o Nacional proporcionou. Na partida seguinte, o Vasco novamente se impôs, dessa vez diante do Municipal, de Lima. Implacáveis 4 a 0 (dois gols de Friaça, um de Lelé e outro de Ismael) deixaram tontos os peruanos e botaram o Vasco em outro patamar. Mas ainda era grande o cartaz dos argentinos do River, apesar da derrota inesperada de 3 a 0 para o Nacional. Já o Vasco prosseguia sua campanha invicta, vencendo a retranca dos equatorianos do Emelec. Retranca furada a duras penas no segundo tempo, com um gol de Ismael, que entrou no lugar de Lelé na etapa final. O Vasco iniciou o jogo com Augusto, Barbosa, Rafanelli, Danilo, Jorge e Eli (em pé, na foto ao lado); Djalma, Maneca, Friaça, Lelé e Chico (agachados). 

Desafio da superação

Na seqüência, o desafio do Vasco era superar os donos da casa. O Colo-Colo tinha a torcida a favor, a equipe reforçada e o pensamento de que a vitória era uma questão de honra. Não é de hoje que é muito complicado ter pela frente um time que põe na ponta das chuteiras todos os anseios da nação. O ambiente não chegava a ser hostil, mas mostrava que o Vasco teria que se desdobrar para obter um resultado satisfatório. A previsão era de um jogo encardido e temia-se que recursos antiesportivos pudessem ser usados pelo adversário (faltas mais ríspidas, pressão em cima do árbitro etc.).

                                                          Friaça em ação

Porém, nada de grave aconteceu, apesar de a partida ter sido dificílima. Zero a zero no primeiro tempo. E, logo no primeiro minuto do segundo, os chilenos ficaram em vantagem. O Vasco teve que lutar muito para conseguir o empate. Isso ocorreu aos 22 minutos, com um gol de Friaça, o quarto dele no campeonato, que garantiu ao centro-avante a artilharia do time — condição até então dividida com Lelé. O resultado final deu ao Vasco a convicção de que o título estava muito próximo. Mas, para erguer a taça, teria que parar “La Maquina”, que vinha mordida pela derrota para o Nacional.

No dia 14 de março de 1948, as equipes do Vasco e do River Plate pisavam o gramado do Estádio Nacional de Santiago, perante 70 mil espectadores que proporcionaram a renda de 1.628.440,00 cruzeiros. O Vasco com Barbosa, Augusto e Wilson; Ely, Danilo e Jorge; Djalma, Maneca, Friaça, Ismael e Chico. No decorrer da partida, Rafanelli, Lelé e Dimas substituíram, respectivamente, Wilson, Lelé e Friaça. O River Plate iniciou o jogo com Grisetti, Vaghi e Rodrigues; Iácomo, Nestor Rossi e Ramos; Reyes, Moreno, Di Stéfano, Labruna e Losteau. Nos lugares de Iácomo, Ramos e Reyes, entraram Mendes, Ferrari e Muñoz. O uruguaio Nobel Valentini arbitrou o jogo.

A grande final entre Vasco e River Plate mobilizou Santiago e lotou o Estádio Nacional. Os brasileiros, com um ponto perdido, jogavam com a vantagem do empate. Ao River, com dois perdidos, só a vitória interessava. Nesse momento, entrou em ação o experiente técnico Flávio Costa. Contrariando aquela velha e batida máxima de que não se mexe em time que está ganhando, ele resolveu mudar a equipe. Na verdade, foi uma mudança estratégica e mais de ordem psicológica. Flávio barrou o zagueiro argentino Rafanelli, pondo em seu lugar o novato Wilson. Pela lógica de Flávio, Rafanelli, revelado pelo inexpressivo Santa Fé, poderia “tremer” diante da responsabilidade de marcar seus compatriotas ou, no mínimo, não jogar com a dureza e a rispidez que uma decisão histórica entre brasileiro e argentinos exigia.

A medida do técnico deu certo: o jovem Wilson se comportou como um veterano, ganhando o posto de titular a partir de então. Em nenhum instante ele se impressionou diante de Di Stéfano & Cia. Jogou com raça, impedindo que o craque argentino atuasse com brilhantismo habitual. Deixou o campo no fim da partida com uma torção no tornozelo. Só então Rafanelli pôde jogar. Com poucos minutos pela frente, o zagueiro argentino do Vasco não comprometeria.

Chico foi também um dos principais personagens do jogo. Lutou o tempo todo, fez um gol invalidado pelo juiz uruguaio Nobel Valentini, deu pancada — talvez ainda traumatizado pela surra que levara da polícia argentina na final do Sul-americano de 1946 —, levou pancada e, como também acontecera dois anos antes, acabou expulso. Resumindo, como de hábito, enquanto esteve em campo Chico foi um leão.

O jogo era disputado em cada detalhe. Os argentinos, mestres na arte de catimbar, usavam todo tipo de recurso. O goleiro Grisetti, por exemplo, não parava de reclamar com o árbitro. Dizia que os flashes das máquinas fotográficas dificultavam suas intervenções.

 Moacir Barbosa

Com as garras de gato de Barbosa pegando tudo, a meta do Vasco se manteve imaculada nos 90 minutos de partida; assim foi disputada a prorrogação de cinco minutos prevista no regulamento. Tempo suficiente para que alguém marcasse. O empate de zero, contrariando todas as expectativas, dava o título ao Vasco. Barbosa acabou eleito o melhor jogador em campo.

Quando entrevistei Barbosa, em 1984, no programa “Álbum dos esportes”, na Rádio Capital, ele me falou sobre a participação do Vasco no Torneio dos Campeões:
No Chile, enfrentamos, além do River Plate, que era uma máquina de jogar futebol, o Nacional, do Uruguai; Colo-Colo, do Chile; Municipal, do Peru; Emelec, do Equador; El Litoral, da Bolívia. Empatamos apenas duas partidas e eu fui o goleiro menos vazado.

A decisão contra o River Plate foi um jogo dramático, muito catimbado. O River Plate tinha grandes jogadores como Di Stéfano, Rossi. Era um desfile de astros de parte a parte.” (continua)