Vamos esperar a corda arrebentar?


29/06/2021


Por Luiz Alexandre Souza da Costa, Professor de Direito Militar e membro do Laboratório de Estudos Políticos de Defesa e Segurança Pública da Uerj, publicado no jornal O Globo. 

A participação do ex-ministro Pazuello na motociata do presidente da República gerou enorme repercussão entre militares, políticos e acadêmicos. Houve quase um consenso de que o general deveria ter sido punido por ter se manifestado politicamente, contrariando as normas da caserna. Entretanto a entrevista concedida pelo presidente do Superior Tribunal Militar (STM), o ministro — e ao mesmo tempo general — Luis Carlos Gomes Mattos, passou praticamente imune a críticas, apesar do contexto muito mais preocupante. Em sequência, para deixar os defensores da democracia ainda mais aturdidos, a Advocacia-Geral da União (AGU) defendeu a possibilidade de civis responderem por crime militar caso tenham “conduta que ofenda diretamente” as Forças Armadas.

As declarações de Mattos trilharam a retórica de Bolsonaro, entre elas a afirmação de que não o deixam governar. Tal acusação é reiterada pelo presidente contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), colegas magistrados de Mattos. Sobre seu colega de caserna Pazuello, ele advogou por sua atuação na Saúde, opinando não ter havido demora na compra de vacinas.

O ministro afiançou que “Bolsonaro é um democrata” e, ainda, deu pitaco sobre eleições. Depois de decretar que o brasileiro precisa saber votar, apresentou como exemplo o atual ministro da Infraestrutura, o militar da reserva Tarcísio Gomes de Freitas, pertencente, segundo o general, a um governo sem corrupção.

Para completar sua fala, longe de assuntos militares ou jurídicos, que seriam da alçada de um ministro do STM, realizou mais uma análise política. Disparou: os opositores do governo estariam “esticando demais a corda” até que ela arrebentasse. Segundo ele, a “corda arrebentar” representaria alguma medida tomada fora das regras constitucionais, porém sem definir por quem.

Mattos, general da ativa e presidente de um Tribunal Superior, de uma Justiça usada intensamente na ditadura para julgar desafetos, demonstrou-se engajado no discurso ideológico bolsonarista. Suas declarações defenderam o governo, alçaram militares como mais honestos que civis, indicaram voto para possíveis futuros candidatos e, além disso, intimidaram, indiretamente, uma oposição democrática e legítima a Bolsonaro.

Cabe registrar que o STM é uma Corte sui generis. Nela, generais das Forças Armadas, permanecendo na ativa, são alçados concomitantemente a cargos de magistrados, com todas as prerrogativas e obrigações. Esses ministros pertencem, ao mesmo tempo, aos Poderes Executivo e Judiciário, estando sujeitos às normas impostas aos militares e magistrados. Nessa toada, o ministro general, em sua entrevista, fardado e representando o STM e o Exército, se manifestou explicitamente de forma político-partidária, o que é proibido — e passível de punição — tanto pelos regramentos militares quanto pelos da magistratura.

É nesse ambiente que, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 826, ajuizada no STF, em que a Associação Brasileira de Imprensa pede a garantia da liberdade de expressão e direito à informação, a AGU enviou parecer favorável para que civis sejam processados na Justiça Militar caso ofendam as Forças Armadas. Civis responderiam a inquéritos policiais militares, por crime de opinião, e seriam julgados na mesma Justiça Militar cujo presidente se declara alinhado ao governo e avesso a seus opositores.

A entrevista do presidente do STM é mais uma demonstração de que os limites estão sendo, todos, ultrapassados. Cabe a nós, enquanto a corda não arrebenta, fazer a pergunta não retórica às instituições brasileiras — notadamente ao Conselho Nacional de Justiça e ao Exército — proposta por Levitsky e Ziblatt, autores de “Como as democracias morrem”: “Uma vez que um aspirante a ditador consegue chegar ao poder, ele subverterá as instituições democráticas ou será constrangido por elas?”.