Uma carta à Condessa Maurina, do JB


29/07/2010


Estagiário do “Jornal do Brasil” em 1981 e, depois, admitido até 1988 e de 1991 a 1995, o jornalista Jorge Antônio Barros da Costa ficou chocado com a notícia do fim da versão impressa do “Jornal do Brasil”, e tão chocado que escreveu uma carta à Condessa Pereira Carneiro, antiga dona do jornal, falecida em dezembro de 1983, historiando momentos destacados da existência de 119 anos do JB.
 
Jorge Antônio, que guarda até hoje sua carteira de estagiário, faz menção a dezenas de companheiros com que conviveu no JB: são mais de 60, “entre tantos outros que são traídos pela memória”. Seu texto, com intertítulos da Redação do ABI Online:
 
 
“Se houvesse correio eletrônico para o céu, gostaria de enviar um e-mail para a Condessa Maurina Pereira Carneiro, que foi a dona de um jornal que povoou o imaginário de gerações de jornalistas e leitores de jornal bem informados e sintonizados com seu tempo.
 
Como nunca vivi, nas últimas três décadas, a experiência de ver um jornal diário se extinguir, exceto a “Última Hora”, este é um e-mail-desabafo por conta da notícia triste que é publicada hoje no “Globo”: o “Jornal do Brasil” vai acabar em papel, e permanecer apenas na internet.
 
Não se trata de uma posição de vanguarda, de forma alguma. Mas da dilapidação de um dos maiores patrimônios da história da imprensa brasileira e até mesmo mundial. Mas vamos à carta, antes que acabe o papel e se esgote a paciência do caro leitor.
 
“Estimada Condessa Pereira Carneiro,
 
Fui estagiário, repórter, repórter especial, chefe de Reportagem e editor-assistente de cidade do seu jornal entre os anos 81 a 88 e depois de 91 a 95.
 
Venho por meio deste, mui respeitosamente, lhe dar essa triste notícia, em primeira mão. O “Jornal do Brasil” acabou em papel. Primeiro perdeu o tamanho standard e virou berliner. Já havia doído em mim aquela transformação. Eu sou da época em que jornal era grande e se lia com as duas mãos, dobrando em quatro partes, no ônibus, na praia ou no banheiro.
 
Aprendi a ler jornal no seu matutino, ensinado por meu falecido pai, que insistia que eu começasse pela Coluna do Castello. Como eu não engrenava em assuntos complicados, comecei mesmo foi pelo Caderno B, o pioneiro suplemento de cultura, onde mais tarde admirei algumas das repórteres mais bonitas de uma Redação. Como Luciana Villas-Boas, Susana Schild, Norma Curi, Sônia Racy, Cleusa Maria, e alguns dos críticos mais fustigantes, como Wilson Coutinho, José Carlos Avellar, Macksen Luís, Luiz Paulo Horta, Tárik de Souza.
 
Foi no seu jornal onde vivi as emoções do princípio no exercício do ofício de repórter, o mais puro e carregado de perplexidade, entre as funções do jornalismo. Na Avenida  Brasil 500, no início dos anos 80, foi ali que escrevi a primeira reportagem, me infiltrei no primeiro presídio, dei o primeiro “furo jornalístico”, levei o primeiro furo, convenci a primeira pessoa a fazer confidências, fiz a primeira entrevista, perdi o primeiro bloco de anotações, fui ao primeiro local do crime, cobri a primeira chacina, sofri a primeira ameaça, levei o primeiro processo, publiquei a primeira denúncia, cobri e aderi à primeira greve, fui enviado especial para cobrir a primeira guerra, acompanhei o primeiro escândalo em Brasília, a primeira posse de presidente da República, assim como seu impeachment, participei da primeira coletiva, ganhei o primeiro prêmio e, pela primeira vez, compartilhei de um trabalho em equipe, com um grupo extraordinário de jornalistas, que ensinavam a fazer jornalismo, enquanto se divertiam.
 
Fui aprendiz de repórter com Luiz Mário Gazzaneo, Ronald Carvalho, Sérgio Fleury, Heraldo Dias, Hedyl Valle Júnior, Luciano de Moares, Paulo Henrique Amorim, Marcos Sá Corrêa, Flávio Pinheiro, Celina Cortes – minha primeira professora-, Bella Stal, Beth Marins, Valéria Fernandes, Xico Vargas, Carlos Rangel, Joaquim Ferreira dos Santos, Zuenir Ventura, Artur Xexéo, Altair Thury, Sandra Chaves, Maurício Dias, José Luiz Alcântara, Bruno Thys, Paulo Motta, Luiz Fernando Gomes, J. Paulo da Silva, Jairo Costa, Abel Mathias, Ubirajara Moura Roulien, Bartolomeu Brito, Ronaldo Braga, Milton Amaral, Mônica Freitas, Tânia Rodrigues, Carlos Peixoto, Christine Ajuz, Maria Alice Paes Barreto, Glória O. Castro, Deborah Dumar, Regis Farr, Israel Tabak, Fritz Utzeri, Joelle Rouchou, José Gonçalves Fontes, Orivaldo Perin, Dácio Malta, João Batista de Freitas, Ricardo de Hollanda, Almir Veiga, Evandro Teixeira, Vidal Cavalcânti, Rogério Reis, Kiko Nascimento Brito, Telmo Wambier, Luiz Paulo Coutinho, entre tantos outros que são traídos pela memória.
 
No seu jornal foi onde comecei a perder a timidez ao lidar com pessoas e a gostar muito de tirar delas alguns segredos de interesse público. Senhora Condessa, foi no seu jornal que eu iniciei como estagiário sem QI (Quem Indica), numa época em que ainda era possível um estudante de Jornalismo conseguir uma audiência com o diretor de Redação (Walter Fontoura), que me recebeu e me deu o estágio, depois que eu obtive a dica de um motorista, seu Cosme, que também já partiu desta para melhor, como a Senhora. Cosme estava ao volante de uma das Brasílias creme com o letreiro do “Jornal do Brasil” em preto, em frente ao antigo Rio Palace Hotel (hoje Sofitel), no Posto 6, quando me aproximei e perguntei como seria possível estagiar no JB, o jornal da minha infância. Eu era panfleteiro de uma joalheria e estudava à noite.
 
Um endereço inesquecível
 
A Avenida Brasil 500 – que vai virar um hospital público – é um endereço inesquecível. Foi ali no seu jornal, Condessa, que eu virei rato do departamento de pesquisa e da biblioteca. Que biblioteca! Eu adorava o espaço amplo da Redação com grandes janelas de onde se podia avistar, de um lado, o Cais do Porto e, do outro, o trânsito do Elevado da Perimetral. Um dia, ali, o fotógrafo Carlos Hungria fez a fantástica foto de um policial rapinando galinhas, do caminhão particular para o carro da polícia. Eu não tinha carro, mas ouvia falar que muita gente gostava de namorar no estacionamento, entre uma reportagem e outra. É claro que eu preferia almoçar no Brito’s, o apelido do restaurante a la carte, em vez do bandejão. Brito era o sobrenome do Dr. Nascimento Brito, genro da Condessa, que assumiu a presidência do jornal. Foi ali que estive com muitas fontes que olhavam pro “Jornal do Brasil” com devoção hoje só comparável à de muita gente diante de uma grande emissora de TV. Num desses almoços, já como chefe de Reportagem, conheci um jovem deputado arrojado que acabou virando governador.
 
Foi lá também que eu a conheci, numa tarde de 1979, quando participava do projeto Jovem Jornalista, aberto a secundarista, onde eu era “gato”, porque não tinha mais idade para freqüentar. A Senhora era uma grande entusiasta de novos talentos, Condessa. De modo geral, as corporações de hoje se ressentem desse olhar mais artesanal, uma espécie de convicção de que o negócio de comunicação não é apenas uma fábrica de salsichas, mas lida com valores um pouco mais profundos, nos quais o ser humano é o objetivo principal.
 
Tudo bem, Senhora Condessa, eu tenho saudades. Tenho saudades até de um tempo que não vivi. Imagine dos anos que vivi no JB… Da dupla que formei como o fotógrafo Raimundo Valentim, com César ao volante. Das matérias com o fotógrafo Marco Antônio Cavalcânti. Dos amigos maravilhosos que fiz, que apesar da distância só nós sabemos o quanto nos une. Saudade de passar o dia na rua, batendo perna, e voltar no fim da tarde para escrever a matéria. Era a supremacia do papel, nem sonhávamos com computador. Era indescritível o barulho das máquinas de escrever, como uma sinfonia desorganizada e metálica, todas as tardes, no calor do fechamento. As laudas – o papel com medidas especiais para a impressão – com cópias em carbono, para deixar na chefia, na pesquisa e na Agência JB, que pagava uma merreca de direitos autorais, no fim do ano. Eu gostava tanto da minha Olivetti Lexikon 80, que até hoje sua imagem me acompanha como avatar no Twitter. Twitter, a Senhora jamais imaginou, é aquilo que chamam de mídia social, onde todo mundo passou a ser dono da própria notícia e acreditar piamente que a qualquer momento jornal impresso vai se tornar algo obsoleto. Uma falácia. Jornais jamais vão acabar. Poderão apenas mudar de superfície. Mas tenho certeza de que vai doer, como a perda de um ente querido. Eu sou fanático por papel, tinta e letras.
 
Lançado em 1981, o “Jornal do Brasil” tem uma longa trajetória de respeito às liberdades democráticas. A meu ver, o jornal tem praticamente três grandes fases consideradas importantes em sua história. A primeira é logo no início da fundação, quando foi alvo de grande violência por parte do governo da República, antes ou depois da Revolta da Armada, quando o jornal sofreu censura e até empastelamento. O jornal ficou sem circular durante cerca de um ano, entre 1893 e 1894, quando acabou o Governo de Floriano Peixoto, o carneiro de batalhão.
 
A segunda fase importante é a reforma gráfica promovida por Odylo Costa, filho, e Amílcar de Castro, em 1957. Foi marcante porque foi uma verdadeira revolução, que influenciou as mudanças gráficas nos grandes jornais brasileiros. Artista plástico experiente e escultor de prestígio, Amílcar tirou o fio que havia entre as letras e, do aspecto antigo, restaram apenas os anúncios classificados em forma de L, na margem esquerda da primeira página. Os classificados do JB deram ao periódico o apelido de jornal das cozinheiras, até o início da década de 60. Com a morte do “Correio da Manhã”, depois do golpe militar de 64, o JB herdou não apenas os leitores como seu estilo liberal.
 
A terceira grande fase do jornal ocorreu justamente na década de 60, com o recrudescimento da ditadura. Houve momentos memoráveis como o da cobertura fotográfica dos históricos conflitos entre a Polícia e os estudantes no Centro do Rio, feita por Evandro Teixeira e Antônio Teixeira – dois nordestinos cabras da peste. No dia seguinte ao AI-5, 14 de dezembro de 1968, o jornal teve uma de suas primeira páginas mais brilhantes na qual a previsão meteorológica era uma metáfora da crise política e um prenúncio dos anos de chumbo que nasciam com o golpe dentro do golpe. Do outro lado da página uma lembrança que tinha tudo a ver com o 13 de dezembro: Ontem foi dia dos cegos. A homenagem aos deficientes visuais era uma mensagem cifrada, que driblou os censores que já haviam se instalado dentro da Redação, como ocorreu em outros diários e publicações.
 
Com o recrudescimento da censura, o jornal cresceu ainda mais seja pela criatividade de seus editores ou pela ousadia de seus repórteres. Em 1973, no golpe militar contra o Governo Allende, o jornal enviou a Santiago o jornalista Humberto Vasconcellos. Sob censura, o relato foi publicado na primeira página em seis colunas de texto sem fotos e sem título. Uma das primeiras páginas mais criativas de todos os tempos.
 
As décadas de 60 e 70 foram uma época em que a reportagem do “Jornal do Brasil” virou uma escola de grandes repórteres como Fritz Utzeri, Heraldo Dias, Israel Tabak, José Gonçalves Fontes, Sérgio Fleury, Ghioldi Jacinto, Beatriz Bonfim, Lilian Newlands. A Redação da Rio Branco foi celeiro de grandes redatores como Nélson Pereira dos Santos, Tite de Lemos, Ivan Junqueira e Lago Burnett. Juntos formaram um dos times mais prestigiados de jornalistas de todos os tempos num só jornal. O grupo era conhecido como o “copy” na época em que a atividade de reescrever matérias era chamada de copydesk.
 
Os pioneirismos
 
Com a Redação sob o comando de Alberto Dines, na década de 60, o jornal antingiu o auge entre os veículos impressos de maior credibilidade do País. O jornal da Condessa Pereira Carneiro ficou conhecido como o verdadeiro bastião contra a ditadura militar. A posição política do jornal impediu inclusive o grupo empresarial que o administrava de conseguir uma concessão de canal de TV. O jornalista Walder de Góes deve ter escrito algo sobre isso.
 
O JB influenciou tanto e tão bem várias gerações de jornalistas que criou uma publicação mensal, bimensal ou trimestral que foi o primeiro manual de jornalismo de muitos profissionais, muito tempo antes de as escolas de Jornalismo cuspirem talentos ou blefadores. Os “Cadernos de Jornalismo e comunicação” do JB traziam periodicamente o que havia de mais moderno nas ciências da comunicação de massa, na época.
 
Outro ineditismo do jornal foi o investimento num dos maiores e mais eficientes departamentos de pesquisa de publicação. Daquela seção do jornal, saíram grandes jornalistas. Era uma época em que os jornalistas da pesquisa produziam belos textos, que alimentavam belas edições. Foi um dos primeiros locais do jornal que eu adorava freqüentar, ao lado da biblioteca, uma das melhores já adotadas por um matutino do Rio. Flor era a biblioteca inesquecível por sua eficiência e simpatia.
 
O Caderno B é um capítulo à parte na história desse matutino. Foi um suplemento pioneiro na formação de uma cultura jornalística antenada com o modismo e comportamentos nos grande centros urbanos e descobriu logo que Ipanema era a capital da república cultural do Rio. Foi o suplemento onde aprendi a ler jornal, orientado pelo meu pai, que não conseguia me convencer a ler o primeiro caderno (ali teve). O JB deixava definitivamente a imagem de jornal das cozinheiras para virar o jornal dos literatos e intelectuais, da esquerda festiva de Ipanema e do executivo do mercado financeiro. Era a época em que repórteres como Vitor Passos enchiam a boca para dizer que haviam sido enviados pelo “Jornal do Brasil” para cobrir esse ou aquele evento. Vitor lembra que era nítido o tratamento superior dado aos enviados do “Jornal do Brasil”, em relação aos de outros jornais.
 
O JB foi pioneiro também no lançamento da revista “Domingo”, em 1976. Deve ter sido um dos primeiros jornais brasileiros a ter suplemento semelhante. O jornal inovou ainda com o Caderno Cidade , idealizado por Dácio Malta e lançado em 1986, quando a Redação estava sob a direção de Marcos Sá Corrêa. Foi o primeiro jornal brasileiro a lançar um suplemento diário com a cobertura dos assuntos de cidade. Dácio teve a idéia depois de informado que o Plano Cruzado havia detonado uma sobra de caixa para os consumidores. Havia papel sobrando para se fazer jornais.
 
O começo da derrocada
 
Um dos períodos mais críticos da história recente do JB ocorreu às vésperas da última eleição indireta para a Presidência da República, quando se dizia pelos corredores da Redação que o jornal estava nas mãos de um político do mal – Paulo Maluf, que disputava a eleição com Tancredo Neves. O assunto nunca foi tratado abertamente e nem sequer ventilado pela imprensa. Deixo aos historiadores a tarefa de comparar a cobertura daquelas eleições. Coincidentemente foi quando a cúpula do jornal foi dominada por um grupo de jornalistas que veio de São Paulo, alguns deles muito talentosos e até simpáticos. Esse grupo era liderado pelo jornalista JB Lemos, que substituíra Paulo Henrique Amorim, um dos criativos editores que vi passar pelo JB. Mas nos bastidores começava um questionamento silencioso da tradição democrática do jornal. Era a primeira vez que se ouvia falar da necessidade de o jornal receber não apenas investimentos financeiros mas a influência direta de grupos de lobistas de plantão.
 
Em 1985, o jornal iniciou seu primeiro programa de informatização, que não foi adiante, sendo retomado mais tarde, com certo atraso. Fiquei fora do jornal entre 88 e 91, retornando para o centenário. A Redação estava sob o comando de Dácio Malta, que me convidou para assumir a chefia de Reportagem da seção onde eu começara dez anos antes, como estagiário. Voltei com o entusiasmo de estar lá no centenário, crente que estava vivendo um momento histórico. Mas a festa foi pífia e só me recordo de apenas uma edição especial, no dia do aniversário. Não me lembro de coquetel nem de algum livro ou exposição especial. Eu sonhava com uma semana de debates, intercâmbio com jornalistas do “The New York Times” e um caderno especial com as melhores reportagens dos últimos cem anos. Que nada. Com certeza, agora dá para entender que era o princípio das dores.”