Um olhar diferenciado para as favelas


19/09/2008


A periferia e as favelas do Rio de Janeiro são assuntos abordados de forma recorrente nos jornais. Segundo pesquisa realizada em 2006 pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC) com oito jornais cariocas, essas regiões são citadas em 27% das matérias sobre segurança e criminalidade. E é um desafio para a imprensa pensar em soluções para driblar as barreiras impostas pelo poder paralelo que controla essas áreas e conseguir uma cobertura abrangente, não restrita apenas à violência.

 Walter Mesquita

Uma experiência bem-sucedida nesse sentido é o portal de internet Viva Favela (www.vivafavela.com.br), criado pela ONG Viva Rio em 2001. A proposta inicial era montar uma equipe formada por jornalistas e correspondentes residentes em áreas periféricas da cidade, que, por meio de programas de capacitação, sugeririam pautas e produziriam matérias mais abrangentes:
— Quando o portal foi pensado, a Viva Rio, a partir da rede de projetos e parceiros que tinha nas favelas, procurou identificar nas comunidades pessoas que tinham facilidade para se expressar, que faziam parte de algum pequeno jornal comunitário, ou que apenas tinham interesse em participar — diz Walter Mesquita, editor de Fotografia do Viva Favela. — Eu, por exemplo, morava em Queimados e atuava numa rádio local. Um dia, foi noticiado que estavam selecionando pessoas para participar de um projeto de comunicação comunitária. Gostei, me inscrevi e estou no Viva Favela até hoje.

Citando uma passagem do livro “Notícias da favela”, escrito por uma das primeiras editoras do portal, Cristiane Ramalho, o editor de Conteúdo Rodrigo Nogueira conta que, no início, muitos correspondentes relutavam em abordar temas relacionados à violência, o que poderia gerar uma imagem distorcida e alienada da realidade:
— A Cristiane então argumentava que eles estavam fazendo a memória dessas áreas da cidade, e que este material serviria de objeto de estudo no futuro. Se eles omitissem a violência existente, estariam apagando, por exemplo, a morte de pessoas inocentes. A idéia não é pintar a favela de cor-de-rosa, dizer que tudo ali é mágico. É necessário falar sobre a violência, e buscamos fazer isso de uma forma mais humana, tentando entender quem são essas pessoas, o que sentem e o que sofrem com as dificuldades que enfrentam.

Credibilidade

                           Rodrigo Nogueira

Ao longo dos sete anos de existência, o Viva Favela tem procurado lançar um olhar mais humanizado para as áreas carentes do Rio, com um jornalismo praticado a partir da perspectiva de quem mora ali. A matéria “Por trás do conflito”, feita por Rodrigo dois meses antes da megaoperação no Complexo do Alemão que matou 19 pessoas em 2007, é um exemplo que ilustra bem a proposta:
— Fui fazer um dia na favela, numa época em que estavam ocorrendo várias operações no Morro. Minha visita à comunidade coincidiu com o momento em que a polícia fazia uma incursão no local. Minha intenção era mostrar outros aspectos, porque estavam batendo na favela como se ali fosse um antro de violência — diz Rodrigo. — Faz parte, mas existe toda uma cultura particular do lugar, que é um celeiro de boas histórias. Tem tudo ali, tem o companheirismo das pessoas, a solidariedade de dar um jeitinho para ajudar o outro etc. Naquele dia eu conheci projetos sociais, personagens riquíssimos, incríveis, que já seriam temas de matérias eles próprios. Não deixei de falar da violência que estava acontecendo naquele dia, mas dei voz aos moradores.

 Walter Mesquita

Com o tempo, a proposta do portal foi sendo compreendida pelas pessoas, o que facilitou o trânsito da equipe nas comunidades:
— Ao longo dos anos, conseguimos credibilidade junto à população das favelas. Às vezes, a confiança é tão grande que as pessoas acabam falando coisas que, se a gente publicar, pode pôr o entrevistado em risco. E a matéria não é mais importante que a vida de alguém — diz Walter Mesquita. — No início, não tínhamos como existir sem os correspondentes que moravam lá. Hoje, isso mudou. Por exemplo, o Rodrigo é editor e está no portal há dois anos. Ele não vem de nenhuma comunidade e circula nos ambientes como eu, que estou no projeto desde o início e morei em favela.

Comportamento

                                Sandra Delgado

      Abertura da exposição na Cidade de Deus

O editor de Fotografia acredita que o comportamento da equipe é primordial para romper as barreiras impostas pelo poder paralelo. Barreiras estas que se tornaram visíveis em casos como o assassinato de Tim Lopes, praticado por traficantes da Vila Cruzeiro em 2002, e a tortura sofrida pela equipe do jornal O Dia na favela do Batan, orquestrada por milicianos:
— A partir de acontecimentos deste tipo, alguns veículos orientaram seus jornalistas a só entrar nas favelas com colete à prova de balas e acompanhados por policiais. Conseqüentemente, em poucas ocasiões eles ouvem os moradores e acaba prevalecendo a versão da polícia. Estas atitudes afastam o profissional da comunidade. Como você vai entrevistar um morador vestido como se estivesse indo para a guerra? A pessoa trava na hora. Mas é importante não generalizar. Há muitos bons jornalistas que lutam contra esta política e buscam a população local como fonte.

O trabalho do Viva Favela mostra que os obstáculos não são intransponíveis. A equipe estabeleceu relações com moradores de diversas comunidades e muitas vezes eles entram em contato com o portal:
— Houve um caso na Cidade de Deus, onde uma mulher foi morta por bala perdida após uma incursão policial. No dia seguinte, a comunidade fechou a Linha Amarela para protestar e chamar a atenção da mídia. Ligaram para cá e pediram para a gente ir lá — conta Walter. — Quando chegamos, fomos à casa da vítima e o marido agradeceu por estarmos ali, ouvindo o que ele tinha para dizer, porque a grande imprensa não passou dos limites da Linha Amarela. Pouco depois, num bar, vendo uma matéria ao vivo que passava na TV, o marido se indignou, dizendo que a versão contada pelo repórter não era a verdadeira. 

 Deise Lane

Comunidade do Caranguejo, no Cantagalo

Diferencial

Para Rodrigo, o grande diferencial das matérias do Viva Favela é fazer entrevistas “quando as pessoas estão relaxadas, abertas a falar, e não apenas quando a polícia está lá dentro e o clima está tenso”. Como exemplo, ele cita uma reportagem sobre os seis meses em que tropas do Exército ocuparam o Morro da Providência para garantir a segurança de obras do programa “Cimento social”, culminando com a morte de três jovens:
— Toda a imprensa foi cobrir o assassinato dos garotos. Com a mídia presente, os moradores perdem a naturalidade e aproveitam para protestar. Nós esperamos a poeira baixar e, num momento mais leve, fomos lá para mostrar o período de ocupação a partir da perspectiva dos moradores.

Integração

Desde março de 2007, a partir de uma parceria com as Organizações Globo, o portal ganhou espaço no jornal Expresso, como conta Rodrigo:
— Nossa coluna chama-se “Viva comunidade”. Às terças-feiras, destinamos um espaço para as imagens no “Click da comunidade”: publicamos uma foto central, com um texto-legenda, e mais seis notas. Às quintas, reproduzimos reportagens que já saíram no portal. Acho interessante ter este olhar do Viva Favela dentro de um diário popular; as pessoas se reconhecem e nos ligam para contar que saíram no jornal, que todo mundo viu e comprou…

O portal ganhou premiações importantes em 2005, como a Menção Honrosa pelo conjunto da obra no Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e a do Open Society Institute, da Fundação George Soros, pelo estímulo à distribuição da fotografia documental, cuja verba proporcionou a organização da mostra itinerante “Moro na favela”, apresentada em diversas comunidades do Rio, com 50 imagens produzidas pela equipe do portal:
— Esta exposição era um projeto antigo, pois, quando a gente começou, pouca gente tinha acesso à internet — diz Walter. — Então, imprimíamos as fotos em material resistente à chuva e ao sol, e as exibíamos um mês em cada comunidade. Foi intervenção urbana mesmo. Começou na Cidade de Deus, depois foi para a Rocinha, o Complexo do Alemão, a Favela da Maré e assim por diante.

 Renata Sequeira, Walter e Rodrigo

Miniportais

Uma reportagem recente do portal, “Diários da favela”, feita por Renata Sequeira, fala sobre blogs de moradores das comunidades que usam o espaço para contar as experiências que vivem no dia-a-dia. Para Rodrigo, esses blogs são diversos “mini Vivas Favelas” que podem ser integrados a partir da Web 2.0 — em que o usuário deixa de ser passivo e passa a produzir conteúdo. Este próximo passo do portal, que pretende expandir em nível nacional o que é feito no Rio, ainda precisa de financiadores para acontecer:
— Seria uma retomada da capacitação que ocorria no início com os correspondentes, só que de uma forma mais dinâmica e abrangente — diz Rodrigo. — As pessoas vão poder postar vídeos, áudios, textos, fotos, sem uma linha editorial específica. A idéia é criar um site colaborativo, que permita uma conexão com as favelas e periferias de todo o Brasil.