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Um mundo na ponta do lápis


15/12/2024


Por Bolívar Torres, em O Globo

Foto: Leo Martins/Agência O Globo

Às 17h40 de uma quarta-feira, 11 de dezembro, Chico Caruso olhava uma centena de recortes de charges antigas espalhados em sua mesa. Uma miríade de caricaturas de políticos em evidência se estendia à sua frente: Milei, Lula, Trump… O chargista buscava uma ideia de desenho paraaprimeira página do dia seguinte, mas ela não vinha. Chico, que completou quatro décadas no jornal O GLOBO em 2024, perdeu a conta de quantas vezes passou pela mesma situação. No fim, decidiu-se por uma solução cômica que traduzia a resiliência do presidente daVenezuela, coma legenda: “Maduro dura.”

Naquela mesma tarde, ele recebeu uma dupla homenagem na redação, pelo aniversário de casa e pelos 75 anos de idade comemorados no último dia 6. No lugar de um discurso, Chico entoou a plenos pulmões a canção “Caruso”, composta por Lucio Dalla. Metáfora da perda das ilusões e das buscas inatingíveis,a letra imagina os últimos momentos do famoso tenor homônimo.

— O mais tarde para achar a ideia de um desenho é 20h—explica Chico, que no geral não costuma ter problemas com o prazo.

— Nesses 40 anos, nunca deixei de publicar um desenho por falta de inspiração. Hoje, foi um pouco difícil por conta da doença do Lula. Fica delicado fazer humor tendo em vista o risco de mais uma cirurgia. Tive que quebrar a cabeça
para achar outra coisa.

Estréia com gol de placa

Nascido em São Paulo, Chico se mudou para o Rio em 1978, trazido pelo chargista ítalocarioca Lan. O amigo  trabalhava no Jornal do Brasil, ia fazer uma cirurgia e decidiu indicar Chico para substituí-lo.

A primeira charge no GLOBO foi publicada em fevereiro de 1984. O Brasil vivia o fim de uma ditadura, com seu último presidente-general, João Figueiredo. Além do chefe de Estado, estavam retratados na charge José Sarney, Delfim Netto, Jarbas Passarinho e outras figuras do governo. Eles se alinham em duas fileiras, como
time de futebol. Delfim ainda segura a cabeça do futuro presidente Lula, transformada em uma bola.

“A partir de hoje, este time e muitos outros personagens de Chico Caruso estarão diariamente no GLOBO”, anunciava o jornal naquele dia 5 de fevereiro. O cartunista calcula ter publicado cerca de 13 mil desenhos para o GLOBO desde então. Em 2025, as charges de Chico serão publicadas na primeira página do GLOBO às quintas e aos domingos.

Desafio da sintese

É um trabalho que exige olhar e ouvido atentos para os eventos cotidianos.

— Meu método segue o mesmo:leio os jornais sem muita preocupação e depois começo a rabiscar caricaturas para tentar sintetizar o que está acontecendo — diz Chico. — A gente vai envelhecendo. Como certas bebidas, algumas melhoram, algumas pioram.Mas sinto que estou melhorando, ficando mais aguçado.

Chico se define como um “viciado” em jornalismo. Mais especificamente, jornalismo impresso. Ele, que lê quatro jornais por dia, conta que essa ligação com o papelse reflete no seu estilo. Nos últimos anos,Chico tem trabalhado menos com caricatura propriamente dita e mais com colagens e reciclagem de fotos, o que dá a suas charges um aspecto único.

— Não sou muito de internet nem de mídias sociais— conta. — Sou um leitor à moda antiga.

A mudança do Jornal do Brasil para o GLOBO foi motivada pela possibilidade de fazer charges coloridas. Naquela época, o jornal jáhavia começado a sair com cores às segundas-feiras, por conta do esporte. Chico aproveitou e propôs fazer também a charge colorida na capa.

— Foi um desenvolvimento para mim também, virei “pintor” — diz. — Embora não possa chamar de pintura, porque o desenho de humor tem necessidade de se relacionar com o jornalismo.

Talento em família

Com a revolução das cores, Chico se tornou “o maior caricaturista do globo (com g
minúsculo)”, como brincou Millôr Fernandes, ao falar do amigo, há 20 anos.

— Foi um movimento histórico — explica Alessandro Alvim, editor executivo Visual do GLOBO. — A gente tem uma tradição de charge ilustrada em capas de revistas e capa de jornal. Mas o que o Chico fez foi tornar isso um elemento diário, cotidiano, da primeira página. Quem faz um livro sobre a história da charge no Brasil obrigatoriamente precisa mencionar Chico.

Alvim, que trabalha há 27 anos com Chico no GLOBO, lembra de outras características marcantes
do colega.

—Chico é um cara muito amigável na relação do dia a dia — conta. — Já vi gente pedir para ele fazer a caricatura do seu casamento e ele foi lá e fez, com toda naturalidade.

Em 2023, Chico perdeu o irmão gêmeo, o também cartunista Paulo Caruso, vítima de um câncer. Ambos começaram a desenhar por influência do avô materno, um pintor amador que dava tintas e cadernos para os netos, e desenvolveram uma relação muito próxima. Chico admirava a capacidade do irmão de fazer charges e caricaturas ao vivo no programa “Roda Viva”, na TV Cultura. Ele retratava entrevistados e integrantes da bancada desde a estreia
da atração, em 1986.

“Nosso avô fazia charges de brincadeira dos amigos, e levamos esse legado adiante. Eu e Paulo desenhávamos cada um em seu caderno, e depois mostrávamos ao outro o que tínhamos criado. Passamos o resto da vida fazendo isso, mesmo trabalhando em veículos e cidades diferentes”, disse Chico em 2023.

Menir de Ulisses

Chico diz que não tinha a velocidade do irmão, mas tinha o seu talento. Talvez o cartunista esteja sendo
apenas modesto. Ex-colega de redação e amigo há quatro décadas, Aroeira conta ter testemunhado episódios em que Chico criava obras-primas com grande rapidez.

— Nunca me esqueço uma vez em que ele pegou um pincel largo e, com um ecoline (tinta aquarela
líquida) cinza, construiu em poucos minutos um enorme menir, como aqueles das histórias em quadrinho do Asterix — diz Aroeira. — E, de repente, com um lápis de cor branco, ele foi esculpindo aquele menir, até transformar ele em
um Ulisses Guimarães. Eu vi isso, ninguém me contou. Faz 40 anos que o GLOBO tem um gênio desenhando.