21/04/2025
Por Jamil Chade, em UOL
Foto:Filippo Monteforte/AFP
O Papa Francisco morreu às 7h35, horário de Roma, desta segunda-feira (21), no Vaticano, em Roma, aos 88 anos. O anúncio da morte foi feito pelo Camerlengo Farrell da Casa Santa Marta.
O papa Francisco promoveu o que muitos vaticanistas e membros da Santa Sé consideram como uma das maiores revoluções na Igreja em décadas. Mas isso não impedirá que a disputa pelo poder, agora, seja intensa.
Seu esforço foi por universalizar a instituição, nomeando bispos e cardeais de regiões distantes de Roma, dando poderes para religiosos de fora da Europa, nomeando santos de países pobres e percorrendo o que ele mesmo chamou de “margens” do mundo.
“Francisco construiu a Igreja do Terceiro Milênio”, constatou Massimo Faggiioli, professor de teologia da Universidade Villanova, na Filadélfia.
Ele promoveu a aproximação com outras religiões, especialmente intensificando o diálogo da Igreja com o Islã e reatando com os protestantes cristãos.
Francisco ainda abriu a Igreja para que os católicos divorciados e recasados pudessem receber a comunhão e, numa frase considerada histórica dentro da Igreja, afirmou que “não poderia julgar” os homossexuais.
Na estrutura da Santa Sé, declarou guerra ao clericalismo e lutou para desmontar os privilégios de uma casta de religiosos.
Ainda que uma reforma tenha sido realizada, o ponto cego de seu pontificado foi a presença de mulheres, tanto na Igreja como na estrutura de poder do Vaticano. Temas como o aborto ficaram intocados. Enquanto isso, a possibilidade de que padres possam casar ou religiosos casados possam administrar cerimônias chegaram a ser propostos. Mas acabaram barrados.
Outros pontos de suas reformas, ainda assim, foram adiante. O Banco do Vaticano, infestado por suspeitas de lavagem de dinheiro, foi alvo de uma profunda transformação.
Francisco ainda enfureceu líderes mundiais com suas posturas, sempre ao lado dos mais vulneráveis.
Sua primeira viagem foi para a ilha de Lampedusa, porta de entrada para a Europa para imigrantes. Lá, ele denunciou a “globalização da indiferença”. Durante uma visita ao México, Francisco rezou na fronteira com os EUA. Ao ser questionado sobre o risco de um primeiro mandato de Donald Trump, ele respondeu: “Uma pessoa que só constrói muros e não pontes não é cristã”.
Em 2025, ele enviou uma carta aos bispos americanos, uma vez mais criticando a postura de Trump sobre os imigrantes.
O meio ambiente também foi outro tema central de sua agenda. Mais uma vez, deixou líderes ultraconservadores incomodados.
Na Bolívia, em 2015, Francisco alertou sobre o “esterco do demônio, a busca desenfreada pelo dinheiro”.
“Uma vez que o capital se torna um ídolo e guia as decisões das pessoas. uma vez que a ganância pelo dinheiro preside todo o sistema socioeconômico, ele arruína a sociedade, coloca as pessoas umas contra as outras e até mesmo coloca em risco nossa casa comum, nossa irmã mãe Terra”, afirmou.
Em 2019, no Sínodo da Amazônia, Francisco apontou como a Igreja precisaria reatar as relações com a população da região, e não com os poderes que governam. O encontro causou um profundo mal-estar no governo de Jair Bolsonaro, que chegou a enviar homens da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) para monitorar o evento.
Blindar legado?
O que Francisco fez, porém, foi criar uma congregação de cardeais de pessoas com uma linha de pensamento mais próxima às ideias de reforma que ele tentou implementar.
No final de 2024, pela décima vez, Francisco nomeou uma nova safra de cardeais, o que significa que ele escolheu cerca de 80% dos cardeais que elegerão o próximo papa.
Dos 141 cardeais com menos de 80 anos de idade, 111 foram nomeados por Francisco, 24 pelo Papa Bento XVI e seis pelo Papa João Paulo 2º.
Ou seja, a Igreja que vai ao conclave para escolher o novo pontífice é um esforço de Francisco de que suas reformas continuem.
Quando assumiu a Igreja, em 13 de março de 2013, Jorge Bergoglio afirmou que a Santa Sé havia escolhido um papa “do fim do mundo”. Era o primeiro não-europeu em mais de mil anos.
E, desde aquele dia, sua ofensiva foi por transferir o poder para fora do Velho Continente. Se a Igreja estava viva nos países em desenvolvimento, era de lá que seus novos cardeais deveriam surgir.
Ofensiva da extrema-direita
Nada disso, porém, significa que o conclave não esteja sob a ameaça de uma nova onda ultraconservadora.
Para Faggioli, a pressão de fora já começou há anos. Grupos passaram a pedir a saída do papa, por supostamente violar alguns cânones da Igreja. A relação com movimentos políticos também ampliou a força dessas vozes, questionando a postura progressista do papa em temas sociais e seu constante ataque ao capitalismo.
A principal linha de acusação alega que Francisco se concentrou e questões pastorais e teria abandonado a doutrina. O cardeal australiano George Pell chegou a acusá-lo de ser “uma catástrofe”. O cardeal alemão Gerhard Müller atacou abertamente a agenda progressista de Francisco.
“Essa ocupação da Igreja Católica é uma aquisição hostil da Igreja de Jesus Cristo”, disse Mueller. “E eles pensam que a doutrina é apenas como um programa de um partido político, que pode mudar de acordo com seus eleitores”, disse.
Francisco não ficou indiferente, alertando que essas vozes não eram de religiosos. “Elas são de um partido político, não da Igreja”, alertou.
Nas últimas semanas, sites anônimos surgiram, principalmente nos EUA, com potenciais nomes de cardeais que poderiam ser considerados para substituir Francisco.
Faggioli destaca que dúvidas ainda existem sobre o fato de que muitos desses cardeais sequer se conhecem, criando um clima de incerteza para o que pode ser o conclave.
Para membros da Santa Sé, isso pode se refletir no clima que irá dominar quando o conclave se reunir. Um religioso brasileiro que pediu para não ser identificado admitiu, em Roma, que nunca foi tão importante o isolamento dos cardeais para a escolha do novo papa como numa era de fake news e campanhas de desinformação.
Permeado por católicos ultraconservadores e tradicionalistas, o governo de Donald Trump colocou o conclave como seu próximo grande objetivo político.
Com a participação da diplomacia americana, de deputados da base mais conservadora e uma rede de entidades e religiosos, a Casa Branca tenta influenciar a direção que pode tomar a escolha do novo papa.
Fontes em Washington confirmaram ao UOL que os trabalhos já começaram. Ainda em dezembro, Trump anunciou a escolha de Brian Burch como o embaixador dos EUA na Santa Sé. No Vaticano, o gesto foi considerado como uma declaração de guerra contra o papa Francisco e sua linha de atuação.
Nos últimos anos, Burch acusou o papa de populismo, e de “criar confusão” ao permitir que padres abençoem casais do mesmo sexo e de flexibilizar na doutrina. Ele ainda tem sido um crítico da decisão de Francisco de destituir líderes católicos conservadores de seus cargos, entre eles o arcebispo Carlo Maria Vigano, excomungado. Um sentimento de indignação ainda tomou conta dos mais radicais quando o papa morto nesta segunda-feira afastou o bispo Joseph Strickland de sua diocese no Texas ou quando houve a retirada de benefícios do cardeal Raymond Burke.
Mas é nos bastidores que sua atuação é mais esperada neste momento. Ainda que o voto seja exclusividade de cardeais e que muitos deles tenham sido nomeados por Francisco, a percepção é de que se pode criar um “clima” de pressão e, desde já, articular nomes que poderiam se apresentar como alternativas a uma continuação da gestão de Francisco.
Do lado político, reconquistar o Vaticano seria estratégico para permitir que a agenda ultraconservadora americana ganhe a benção e a chancela diplomática da Santa Sé para ser difundida pelo mundo.
Ao anunciar seu embaixador em Roma, Trump escancarou a relação entre a política, a fé e sua escolha. “Brian é um católico devoto, pai de nove filhos e presidente da CatholicVote. Ele recebeu inúmeros prêmios e demonstrou uma liderança excepcional, ajudando a construir um dos maiores grupos católicos de defesa de direitos do país”, anunciou o republicano.
O presidente lembrou que Burch “me representou bem durante a última eleição, tendo obtido mais votos católicos do que qualquer outro candidato presidencial na história”. Os dados de fato confirmaram que os católicos optaram por Trump por uma margem de 20 pontos e foram decisivos nos estados decisivos no Cinturão da Ferrugem e no Sudoeste.
Burch sinalizou que sua missão no Vaticano iria muito além de representar Trump e, em sua declaração pública, omitiu qualquer referência ao papa. “Estou comprometido em trabalhar com líderes dentro do Vaticano e com a nova administração para promover a dignidade de todas as pessoas e o bem comum”, disse.
Nos bastidores, sua entidade tem sido fundamental para solidificar a aliança entre as alas mais conservadoras dos EUA e os republicanos. Desde 2009, o grupo fez doações de US$ 2 milhões para as campanhas de mais de 40 deputados do partido de Trump.
Ele se aliou, em 2018, a Steve Bannon para rastrear dados de localização de celulares para enviar mensagens a pessoas que estavam nas igrejas para que fossem votar. A CatholicVote também foi crítica para mobilizar o voto católico em 2024.
Fontes em Washington explicaram ao UOL que Burch é apenas uma das peças da engrenagem, ainda que crítica. Dentro do governo, os católicos mais tradicionais contam com representantes de peso, entre eles Tom Homam, o “czar das fronteiras”, Karoline Leavitt, a porta-voz da Casa Branca, e JD Vance, o vice-presidente.
Também são católicos Linda McMahon, secretária de Educação, Elise Stefanik, que seria a embaixadora para a ONU e que afirmou que Israel tem “direito bíblico” sobre as terras palestinas. A lista ainda inclui Marco Rubio (Departamento de Estado), Sean Duffy (Transporte), o diretor da CIA, John Ratcliffe, e Robert F. Kennedy Jr., na Saúde.
Vaticano respondeu, mudando de última hora a escolha do arcebispo de Washington DC e colocando o cardeal Roberto McElroy no cargo. O religioso tem sido um dos principais críticos da política de Trump. Se não bastasse, Francisco enviou uma carta aos bispos americanos, atacando medidas de deportação do novo presidente.
A reação da Casa Branca foi imediata. Homam sugeriu que o papa se ocupasse de sua própria instituição, enquanto JD Vance disse que o argentino “precisa se olhar no espelho”.
Outro aspecto fundamental tem sido a aproximação de republicanos e da Casa Branca aos bispos e cardeais mais conservadores, tanto nos EUA como no resto do mundo.
Um dos articuladores desse trabalho é Chris Smith, deputado republicano e que passou a ser um dos pontos de apoio dos católicos ultraconservadores. Foi a gestão do parlamentar que conseguiu retirar da Nicarágua os bispos perseguidos por Daniel Ortega. Com uma ação só, os republicanos atacaram o governo Sandinista, a esquerda latino-americana e sinalizaram para a ala conservadora do Vaticano de que estavam ao seu lado.
Internamente, Trump fez questão de retribuir o apoio dos grupos de linha dura do catolicismo. Em fevereiro, ele assinou uma ordem executiva para criar uma força-tarefa na procuradoria-geral dos EUA para investigar ações na sociedade americana contra cristãos. Ele também determinou a “erradicação” de qualquer “tendência anticristã” nas agências federais, sem definir o que seria essa “tendência”.
Trump ainda criou um Escritório de Fé da Casa Branca e afirmou que houve uma tentativa de “criminalizar” o cristianismo em gestões passadas, em mais um aceno aos grupos mais radicais da Igreja.
Nos primeiros dias de seu governo, Trump anunciou diversas medidas reivindicadas pela base religiosa e de caráter conservador. Um delas foi a definição da existência apenas do sexo biológico em documentos oficiais, assim como a suspensão de ajuda internacional para programas que lidem com direitos reprodutivos e sexuais.
No dia 21 de janeiro, horas depois de Trump tomar posse, o vice-presidente da CatholicVote, Joshua Mercer, deixou explícito que a vitória do republicano era parte de um plano maior.
“Pela graça de Deus, recebemos uma oportunidade que tem sido cada vez mais rara na história moderna: levar nossa visão de mundo política católica para os corredores da maior potência do mundo.”
Agora, falta o trono de São Pedro.
Próximo papa ‘tende a ser de centro à direita’, diz Frei Betto
O frade dominicano Frei Betto falou à Globo News sobre o legado e a sucessão do papa Francisco.
Para ele, Francisco governou uma Igreja “com a cabeça progressista, mas um pouco conservadora”, precedido por 34 anos dos pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI.
“Então, hoje em dia, a safra que temos hoje de sacerdotes, cardeais e bispos, tende a ser de centro à direita. De uma tendência de moderados a conservadores”, analisou.
“Aqueles progressistas que tanto se destacaram nos anos 60, 70, até 80… aqui no Brasil tivemos muitos, como Dom Helder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo Evaristo Arns e tantos outros, essa safra praticamente já não existe”. “Peço a Deus que nos dê um padre que possa dar continuidade à linha dele”, completou.
‘Nenhum chefe de Estado na Europa era tão respeitado’
Para o frade, Francisco fez uma “opção radical pelos mais pobres, marginalizados e vulneráveis”, defendendo os imigrantes e o meio ambiente. “[Francisco] se tornou na Europa, talvez em todo o mundo, a figura mais proeminente em defesa dos direitos humanos. Nenhum chefe de Estado na Europa era uma figura tão respeitada quanto Francisco”, avaliou.
Frei Betto também afirmou que Francisco aproximou religiões, criando diálogo entre o papa de Roma e o líder da igreja ortodoxa. Para ele, a postura conciliadora do papa se manteve até o final.
“O papa discordava totalmente dessa atual política das grandes nações, de buscar a paz pelo equilíbrio de armas, e retomava o que o profeta Isaías proclamou 700 anos antes de Cristo: a paz só virá como filha da justiça”.
Lula decreta luto oficial de sete dias
O presidente Lula decretou nesta segunda-feira (21) luto oficial de sete dias em homenagem ao Papa Francisco. Por meio de nota, o presidente destacou o legado do pontífice argentino Jorge Mario Bergoglio e lamentou profundamente a perda de uma “voz de respeito e acolhimento ao próximo”.
Lula ressaltou que Francisco viveu e propagou valores como o amor, a tolerância e a solidariedade
“Assim como ensinado na oração de São Francisco de Assis, o Papa buscou de forma incansável levar o amor onde existia o ódio. A união, onde havia a discórdia”, disse.
O presidente também destacou a atuação do Papa em temas centrais da agenda social e ambiental global. Segundo ele, com simplicidade, coragem e empatia, Francisco levou ao Vaticano o debate sobre as mudanças climáticas e denunciou modelos econômicos geradores de injustiças e desigualdades.
“Ele sempre se colocou ao lado daqueles que mais precisam: os pobres, os refugiados, os jovens, os idosos e as vítimas das guerras e de todas as formas de preconceito”, afirmou Lula.
Ao finalizar a nota, o presidente desejou consolo a todos que sofrem com a perda do líder religioso. “O Santo Padre se vai, mas suas mensagens seguirão gravadas em nossos corações”, concluiu.