Tendler: o cineasta dos inconformados


03/11/2020


Cineasta Silvio Tendler

Por Álvaro Caldas

Com uma comprida barba branca que lhe dá a imagem bíblica de um pastor judeu marxista, que se desloca numa cadeira de rodas, o chamado cineasta dos sonhos interrompidos, que já rodou o mundo, continua sonhando em busca de novos personagens que possam contradizer e iluminar a conturbada e trágica realidade dos nossos dias, dominada pela onda do fascismo negacionista. 

Silvio Tendler comemora os 70 anos com cerca de 80 obras na bagagem, trabalhando com o fervor de um iniciante. É maluco por cinema e fotografia. Acaba de ter o seu Santiago das Américas – O Olho do Terceiro Mundo exibido no Festival É Tudo Verdade 2020 on-line, ao mesmo tempo em que comemora os 40 anos de lançamento de Os anos JK – uma trajetória política, em que traça o perfil do presidente bossa-nova, seu longa-metragem de estreia lançado com grande sucesso em agosto de 1980.

Com uma comprida barba branca que lhe dá a imagem bíblica de um pastor judeu marxista, que se desloca numa cadeira de rodas, o chamado cineasta dos sonhos interrompidos, que já rodou o mundo, continua sonhando em busca de novos personagens que possam contradizer e iluminar a conturbada e trágica realidade dos nossos dias, dominada pela onda do fascismo negacionista.

Santiago das Américas, uma de suas últimas criações, é uma homenagem para celebrar o centenário de nascimento do documentarista cubano Santiago Álvarez (1919-1998), autor do clássico Now! e de um obra que revolucionou  a linguagem do cinema documental latino-americano. Com o relato de pessoas próximas, o longa discute a realidade cubana pós-revolução e sua interferência no processo cultural, mesclando  jornalismo e cinema. Uma contribuição histórica que realça a visão do premiado Álvares, que Tendler conheceu em sua formação.

Sob o lema “faça do cinema uma arma de luta e de reflexão”, em que se nutre da memória e do acaso, três anos depois de JK, Tendler fez Jango, em 1984, prêmio Margarida de Prata da CNBB. Foi consagrado como um documentarista que leva seus temas ao grande público. Põe em cena a história, a política, a cultura, as revoluções. Estão lá, entre seus personagens, o geógrafo Milton Santos, o político mineiro Tancredo Neves, o guerrilheiro Carlos Marighela, o cineasta Glauber Rocha e seus labirintos, prêmio hors concours em Cannes. O poeta Ferreira Gullar, os advogados dos presos políticos e os perseguidos pela ditadura. E O mundo mágico dos Trapalhões, de 198l, que ultrapassou 1 milhão de espectadores.

 

 

Em Utopia e Barbárie, traz à discussão acontecimentos políticos marcantes dos últimos 50 anos, reunindo uma sequência de cenas e depoimentos de personalidades que estiveram presentes em momentos definidores da história recente. As revoluções socialistas, a queda do Muro de Berlim, a contracultura, a Guerra do Vietnã, onde entrevistou o lendário general Giap, 94 anos, o estrategista que derrotou os colonialistas franceses e norte-americanos.

Uma síntese cinematográfica e histórica que ultrapassa o registro documental, a partir de suas observações e experiência pessoal. Tendler teve como inspiração o “cinema verdade”, de Joris Ivens, em sua proposta de um cinema documental engajado, com posicionamento político. Fez uma parte de sua formação acadêmica e artística em Paris, onde se exilou na década de 70. Trabalhou com o francês Chris Marker, outra grande referência no setor, com quem teve a primeira experiência na realização de um documentário, o filme La Spirale (1975).

Não há uma relação de proximidade entre os temas e a realidade captada pelas câmeras de Silvio Tendler e de Rainer Werner Fassbinder, que são contemporâneos. Mas o nome do alemão me veio à memória por um caminho subterrâneo. Talvez ligados pela ponte de uma vertiginosa produção. Em 13 anos de carreira, Fassbinder dirigiu alucinadamente 43 filmes. Sempre polêmico, escandalizou a sociedade alemã do pós-guerra com seu comportamento anticonvencional. Morreu aos 37 anos vítima de uma overdose, depois de ganhar o Urso de Ouro no Festival de Berlim com “O desespero de Veronica Voss, em 1981.

Obcecado por seu trabalho, às vezes extenso e repetitivo, às vezes didático e com lacunas na montagem, Tendler realizou, com sua produtora Caliban Produções Cinematográficas, uma obra de 80 produtos fílmicos. Os mais notáveis estão saindo do baú e seria instrutivo que os jovens se aproximassem deste variado e rico banquete cinematográfico. Além da homenagem no É Tudo Verdade, Santiago das Américas foi exibido no cineclube Macunaíma, da ABI. Quase todos podem ser vistos no YouTube.

 

 

Três de seus curtas integram a programação do canal Curta! Os anos JK, Jango, a trajetória política do presidente João Goulart, deposto pelo golpe de 1964, e Glauber o filme, Labirintos do Brasil. Ao longo da construção de sua paixão pelo cinema, Silvio Tendler tentou decifrar alguns destes labirintos que desviaram o Brasil de seu caminho. Neste momento de proliferação de séries de terror e seriados nas plataformas de streaming, seus filmes, que fazem um inventário da História recente, conservam o impacto inicial e merecem ser vistos e revistos.