STF rejeita revisão da Lei da Anistia


30/04/2010


Por 7 votos a 2, após dois dias de julgamento, os Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram arquivar nesta quinta-feira, 29, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contestando a Lei 6.683/1979, a Lei da Anistia, e a sua abrangência para casos de tortura e crimes comuns cometidos por civis e agentes do Estado durante a ditadura militar (1964-1985). 

O Ministro Eros Grau, relator da ADPF, julgou improcedente o pedido da OAB. Para ele, “não cabe ao Poder Judiciário rever o acordo político que na transição do regime militar para a democracia resultou na anistia de todos aqueles que cometeram crimes políticos no Brasil entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979”.

Acompanharam o voto do relator as Ministras Carmen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie, e os Ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso. Os Ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto defenderam uma revisão da lei, alegando que a anistia não teve “caráter amplo, geral e irrestrito”, e que “certos crimes são, pela sua natureza, absolutamente incompatíveis com qualquer ideia de criminalidade política pura ou por conexão”. 

O Ministro Dias Toffoli não participou do julgamento porque estava à frente da Advocacia Geral da União à época em que a ação foi ajuizada e chegou a anexar informações ao processo. O Ministro Joaquim Barbosa está de licença médica. 

OAB 

Na ação,a OAB defendeu uma interpretação mais clara quanto ao que foi considerado como perdão aos crimes conexos “de qualquer natureza” quando relacionados aos crimes políticos ou praticados por motivação política.

Segundo a OAB, a lei “estende a anistia a classes absolutamente indefinidas de crime” e, nesse contexto, não deveria alcançar os autores de crimes comuns praticados por agentes públicos acusados de homicídio, abuso de autoridade, lesões corporais, desaparecimento forçado, estupro e atentado violento ao pudor, contra opositores ao regime político da época.

A entidade argumentou que delitos de opinião não podem ser comparados ao cometidos por pessoas contrárias ao regime e os crimes violentos contra a vida, a liberdade e a integridade pessoal cometidos por representantes do Estado contra elas.

Na interpretação da Ordem, os agentes policiais e militares da repressão política não teriam cometido crimes políticos, mas comuns, uma vez que os crimes políticos seriam apenas aqueles contrários à segurança nacional e à ordem política e social.

Pareceres

Em fevereiro deste ano, o Procurador-geral da República, Roberto Gurgel, encaminhou ao gabinete do relator, Ministro Eros Grau, parecer pela improcedência da ação sobre a Lei da Anistia, sob a alegação de que a lei resultou de um longo debate nacional, com a participação de diversos setores da sociedade civil, inclusive da OAB.

A Advocacia Geral da União (AGU) também já se posicionara contra a ação da OAB, defendendo que a própria Constituição Federal de 1988 reforça o caráter amplo e irrestrito da anistia ao qual se refere a Lei 6.683/1979, e que, mesmo com a revisão da Lei da Anistia, já não haveria punibilidade possível por prescrição da prática dos crime. 

Abertura

O julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153 teve inicio na quarta-feira, dia 28, no Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Na abertura, o relator da ADF, Ministro Eros Grau, informou que havia rejeitado o pedido da OAB para a realização de uma audiência pública sobre o assunto. O motivo, segundo ele, foram “o grande lapso temporal entre a data de ingresso da ação (2008) e a solicitação da OAB (2010)”, e o fato de o processo “já se encontrar, quando o pedido foi feito, suficientemente instruído”.

Eros Grau sublinhou que a Associação Juízes para a Democracia, que ingressou como amicus curiae (amigos da Corte) no processo, anexara à ação manifesto de juristas favoráveis ao pedido da OAB e um abaixo assinado com 16.149 assinaturas contra a anistia dos militares. Também figuraram como amigos da Corte no processo a Associação Brasileira de Anistiados Políticos, a Associação Democrática e Nacionalista de Militares e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional. 

O jurista Fábio Konder Comparato, representando a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), abriu a Tribuna lembrando que o julgamento da Lei de Anistia (Lei 6.683/79) tinha por objetivo “recompor a posição de dignidade do Estado brasileiro no concerto das Nações, recuperar a honorabilidade das Forças Armadas, após os atos de arbitrariedade, terrorismo, sequestro, assalto, tortura e atentado pessoal, praticados por integrantes da corporação contra opositores do regime militar”. O jurista questionou se “seria ético e dentro do direito torturar presos – pessoas fora de combate”. 

Falando em nome do Congresso Nacional contra o acolhimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153), a advogada Gabrielle Tatith Pereira salientou que “no instante em que entrou em vigor, a Lei da Anistia extinguiu a punilbilidade dos crimes políticos e conexos de qualquer natureza e de qualquer modo relacionados”.

Em seguida, ocuparam a Tribuna do Supremo Tribunal Federal (STF) os chamados amigos da Corte. Representando a Associação Juízes para a Democracia, Pierpaolo Cruz Bottini destacou que o objetivo da entidade era que a decisão do STF representasse “um marco para as gerações futuras, para que nunca mais ninguém seja morto ou torturado por discordar de um regime político”. 

A jurisprudência internacional sobre a matéria foi lembrada por Helena de Souza Rocha, do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil). Ela destacou a tendência contemporânea do direito constitucional mundial em prestigiar normas internacionais destinadas à proteção do ser humano. Segundo Helena, no entendimento da Cejil, acontece um descompasso entre a interpretação que prevalece sobre a Lei da Anistia, a ordem constitucional vigente e o direito internacional dos direitos humanos. “O resultado do julgamento será uma mensagem clara contra a impunidade e em repúdio à cultura do segredo, afirmando em alto tom que nunca mais esses atos se repetirão”. 

A Associação Democrática e Nacionalista de Militares (ADNAM) foi representada por Vera Karan de Chueiri, para quem a Lei da Anistia viola preceitos fundamentais decorrentes da Constituição Federal. “O Supremo deveria levar em conta as violações aos artigos 2º, 8º e 25, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos”, afirmou.

Na seqüência, o Procurador-geral da República, Roberto Gurgel, defendeu a constitucionalidade da Lei de Anistia (Lei 6.683/79): “Não parece à Procuradoria-Geral aceitável fazer uma leitura atemporal do ato impugnado (a Lei de Anistia), atacando o mesmo contexto que possibilitou e conferiu legitimidade à convocação da Assembleia Nacional Constituinte”, avaliou. 

O advogado-geral da União, Luis Inácio Adams, também favorável à Lei da Anistia, afirmou que “não se pode questionar, 30 anos depois, a lei que anistiou não só os crimes políticos, mas também os crimes comuns relacionados a eles, pois isso acarretaria grave ofensa à segurança jurídica que impede que uma leitura mais gravosa da norma atinja situações jurídicas já consolidadas”. 

Mérito

Por 8 votos a 1, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu analisar o mérito da Arguição de Preceito Fundamental (ADPF 153). Ao todo, os ministros votaram sobre cinco preliminares apresentadas pela Advocacia Geral da União (AGU), pelo Senado Federal e pelo Ministério da Defesa. Todas foram rejeitadas pela maioria do Plenário. Somente o Ministro Marco Aurélio concluiu pela inadequação do instrumento processual (a ADPF) para contestar a norma.

Em seu voto, de 67 laudas, o Ministro Eros Grau julgou improcedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para contestar o alcance da anistia. Ele alegou que não cabe ao Poder Judiciário rever o acordo político que, na transição do regime militar para a democracia resultou na anistia de todos aqueles que cometeram crimes políticos no Brasil entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. “O acompanhamento das mudanças do tempo e da sociedade, se implicar necessária revisão da lei de anistia, deverá ser feito pela lei, vale dizer, pelo Poder Legislativo, não por nós. Como ocorreu e deve ocorrer nos Estados de direito. Ao Supremo Tribunal Federal, repito-o, não incumbe legislar”, salientou.

O relator advertiu, contudo, que sua decisão pela improcedência da ação não exclui seu repúdio a todas as modalidades de tortura, de ontem e de hoje, civis e militares, policiais ou delinquentes porque há coisas que não podem ser esquecidas. “É necessário não esquecermos, para que nunca mais as coisas voltem a ser como foram no passado”. Para o ministro, não se pode questionar a legitimidade do acordo político que resultou na edição da Lei da Anistia, pois isso seria um desapreço a todos aqueles que se manifestaram politicamente em nome dos subversivos. 

Ao término do voto, o Presidente do STF, Ministro Cezar Peluso, suspendeu a sessão, que foi retomada na tarde da quinta-feira, 29, com o voto da Ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha, do Supremo Tribunal Federal (STF), que acompanhou o relator. “Buscou-se ali uma pacificação no sentido de transpor uma etapa para atingir a paz social”, disse a ministra. 

Logo após o intervalo, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento da ADPF 153, com a leitura do voto do Ministro Gilmar Mendes, que julgou improcedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153. Ele afirmou que o julgamento não geraria nenhum efeito prático, pois os crimes que foram anistiados já estão prescritos, tanto a responsabilização de caráter penal (que prescreve em 20 anos) quanto a de natureza civil (que prescreve em 10 anos).

Defesa

O Ministro Ricardo Lewandowski abriu divergência ao defender a revisão da Lei de Anistia (Lei 6.683/79). Em seu voto ele afirmou: “julgo procedente em parte a ação para dar interpretação conforme ao parágrafo 1º do artigo 1º da Lei 6.683/79, de modo que se entenda que os agentes do Estado não estão automaticamente abrangidos pela anistia contemplada no referido dispositivo legal, devendo o juiz ou tribunal, antes de admitir o desencadeamento da persecução penal contra estes, realizar uma abordagem caso a caso mediante a adoção dos critérios da preponderância e da atrocidade dos meios para caracterizar o eventual cometimento de crimes comuns, com a consequente exclusão da prática de delitos políticos ou ilícitos considerados conexos. É como voto”.

O ministro lembrou que a lei foi editada em meio a um clima de insatisfação popular contra o regime autoritário e que os líderes do regime entenderam que era a hora de promover mudanças de forma controlada, a partir daí se deu a abertura lenta e gradual liderada pelo General Ernesto Geisel.

Para Lewandowski, ainda que o Brasil estivesse enfrentando uma guerra, “mesmo assim os agentes estatais estariam obrigados a respeitar os compromissos internacionais concernentes ao direito humanitário, assumidos pelo Brasil desde o início do século passado, pelo menos”. 

O Ministro Ayres Britto concordou que a norma não têm caráter amplo, geral e irrestrito. “Quem redigiu essa lei não teve coragem, digamos assim, de assumir essa propalada intenção de anistiar torturadores, estupradores, assassinos frios de prisioneiros já rendidos, pessoas que jogavam de um avião em pleno voo as suas vítimas”.

A Ministra Ellen Gracie acompanhou o voto do relator, alegando que “a afirmativa de não recepção da Lei 6683/79, pela Constituição Federal de 88, vai além do que poderiam razoavelmente pretender os que a sustentam, pois conduziria ao paradoxo de retirar o benefício de todos quantos foram por ela alcançados”. 

Ellen Gracie disse ainda que “por mais incômodo que seja reconhecê-lo hoje, quando vivemos outro e mais virtuoso momento histórico, a anistia, inclusive daqueles que cometeram crimes nos porões da ditadura, foi o preço que a sociedade brasileira pagou para acelerar o processo pacífico de redemocratização com eleições livres e a retomada do poder pelos representantes da sociedade civil”. 

O  Ministro Celso de Mello defendeu a manutenção da Lei da Anistia e finalizou seu voto afirmando que “a improcedência da presente ação não impõe qualquer óbice à busca da verdade e a preservação da memória histórica em torno dos fatos ocorridos no período em que o país foi dominado pelo regime militar”.

O Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Cezar Peluso, foi o último a votar e disse não ter entendido o porquê de a OAB ter questionado o acordo mais de 30 anos depois, tendo dele participado. Ele sublinhou que nenhum ministro tinha dúvida sobre “a profunda aversão por todos os crimes praticados, desde homicídios, sequestros, tortura e outros abusos – não apenas pelos nossos regimes de exceção, mas pelos regimes de exceção de todos os lugares e de todos os tempos”. Contudo, ressaltou que a anistia aos crimes políticos “é, sim, estendida aos crimes conexos, como diz a lei, e esses crimes são de qualquer ordem, e que a Lei de Anistia transcende o campo dos crimes políticos ou praticados por motivação política”.

Ao concluir, o Presidente do STF comentou que “se é verdade que cada povo resolve os seus problemas históricos de acordo com a sua cultura, com os seus sentimentos, com a sua índole e também com a sua história, o Brasil fez uma opção pelo caminho da concórdia. Uma sociedade que queira lutar contra os seus inimigos com as mesmas armas, com os mesmos instrumentos, com os mesmos sentimentos está condenada a um fracasso histórico”.

*Com informações do STF