Se Pelé não tivesse nascido homem, teria nascido bola…


29/12/2022


O futebol perdeu hoje o maior jogador de todos os tempos. O Brasil perdeu hoje o maior ídolo de sua história. O mundo perdeu hoje Pelé. O ex-jogador morreu aos 82 anos, após um período de internação no hospital Albert Einstein, em São Paulo. Edson Arantes do Nascimento não resistiu a complicações de um câncer no cólon e morreu em decorrência de falência múltipla dos órgãos. Ele deixa seis filhos.

O velório de Pelé acontecerá na Vila Belmiro, estádio que foi sua casa durante 18 anos. Ele será enterrado no Memorial Necrópole Ecumênica, em Santos, onde o Rei do futebol tinha um espaço reservado desde 2003.

Principal artilheiro da história da seleção brasileira, com 95 gols, Pelé é considerado o maior jogador da história do futebol. Defendeu o Santos por quase 20 anos e, pela equipe seleção brasileira, conquistou três Copas do Mundo, em quatro participações.

Conhecido como o “Rei do Futebol” e o “Atleta do Século”, Pelé foi três vezes campeão do mundo com a seleção brasileira, a primeira delas com apenas 17 anos. Marcou dois gols na final de 1958 contra a Suécia. Quatro anos depois, já considerado o melhor jogador do planeta, chegou ao Mundial do Chile como o grande nome da seleção. Mas se machucou na primeira fase, e acabou vendo do banco seus companheiros conquistarem o bicampeonato.

Em 1970, na Copa do México, vestia a camisa 10 daquela que é considerada até hoje uma das maiores equipes da história dos esportes coletivos. Depois do tricampeonato saiu carregado nos ombros de torcedores mexicanos. Ao longo da carreira, fez mais de 1200 gols, entre jogos do Santos, da seleção brasileira e do New York Cosmos (EUA), seu último clube.

Pelo time paulista, aonde chegou aos 15 anos, foi duas vezes campeão da Libertadores e do Mundial, e seis vezes campeão brasileiro. Aquela equipe se eternizou na história do futebol brasileiro e é desde então chamada de “o Santos de Pelé”.

Para homenagear Pelé, publicamos uma antológica crônica de Armando Nogueira – autor, também, da frase que dá título à essa nota – “Se Pelé não tivesse nascido homem, teria nascido bola…” – sobre o milésimo gol de Pelé, publicada em 21 de novembro de 1969 na página 21 do Jornal do Brasil, na sua coluna diária  Na Grande Área:

“Um amigo me telefona, cedinho, para insistir na reação do primeiro momento: gostara de ver Pelé fazer o milésimo gol, mas preferia que não fosse de pênalti porque, “de pênalti, não teve muita graça.
Assim também chegara a pensar o próprio Pelé, antes de ver a bola morrer ( ou nascer ) no fundo da rede. Tanto que ameaçou refugar, coerente com afirmações anteriores de que se lhe tocasse encerrar o balanço com gol de pênalti, passaria a bola a outro jogador.
E, no entanto, na hora de fazer o gol-símbolo de sua vida, Pelé não poderia merecer do futebol distinção maior: o estádio imenso, o silêncio musical da multidão, a côrte de parceiros e rivais em tôrno dele, imóveis; a bola, proibida de todos, a seus pés – e uma eternidade para chutá-la, pois só aí a lei do futebol oferece o privilégio de estender indefinidamente o jôgo até que se cumpra de todo o ritual do pênalti.

O gol de ação, o gol de movimento – esse, Pelé já fêz 999 vêzes, chutando bolas suadas, bolas sangrentas, bolas mortas, bolas vivas, divididas.

O gol dos deuses, bola no peito, três dribles verticais, um chute mortal – Pelé já fêz tantos.

O gol dos meninos, quantos Pelé já não fêz?, driblando defesas inteiras?

O gol dos espertos? Pelé já fêz: um dia, num córner, enlaçou o braço no braço de um beque e gritou em desespero: “Está me agarrando!” O árbitro marcou pênalti, Pelé chutou e fêz o gol.

O gol dos sonsos, Pelé também já fêz, capengando, de mentira, na meia-lua, e logo surgindo na pequena área, encontro marcado com a bola, antes do córner, antes do jôgo, muito antes de tudo e de todos.

Faltava-lhe, porém, fazer o gol feito, que é o gol da multidão, o gol de todos os testemunhos, o gol que ninguém no estádio, por descuido ou infortúnio, deixasse de ver, florescendo de seus pés, como já disse, tão amados.

Era preciso, sim, o cerimonial de um pênalti para nos compensar de tantos gols bonitos que ele fez nesse milhar e que nos escaparam na vertigem da ação coletiva.

Abençoado é o pênalti que não castiga, mas gratifica: quando Pelé, no fundo da rede, beijou mil vezes a bola do seu gol-símbolo, o estádio viveu um instante de libertação – e Pelé, mais um de consagração. Éramos, ali, uma doce multidão de crianças, reencontrando a bola da nossa infância.

Nunca, que eu saiba, a multidão participou tanto de um gol, pesadelo e sonho de Pelé – e de todos nós.

Fiquemos, pois, com a graça de uma noite de reecontro.

Que dele seja a bola que renasceu com ele, no instante de um gol-sacramentado.”