Quando a cor da pele pode
levar ao cárcere


09/09/2020


Luiz, Marcello, Amanda: quando a cor da pele pode levar ao cárcere

Rogério Marques, jornalista e membro da comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e dos Direitos Humanos da ABI

O músico Luiz Carlos Justino estava com seu violoncelo quando foi preso (Foto: Ana Branco: O Globo)

A prisão do músico Luiz Carlos Justino, de 23 anos, em Niterói, acusado de um roubo que ele nega ter praticado, causou indignação até mesmo em setores do Judiciário. Luiz Carlos é violoncelista da Orquestra de Cordas da Grota, uma favela do bairro de São Francisco, em Niterói. Tudo leva a crer que é mais uma vítima de racismo.

Quarta-feira, dois de setembro, Centro de Niterói. Depois de uma apresentação com mais três colegas em frente à estação das barcas, para ganhar algum dinheiro das pessoas que passam por ali, os músicos foram abordados por policiais. Por estar sem documentos, Luiz Carlos foi levado para a 76ª Delegacia, com seu instrumento, o violoncelo. Na delegacia, Luiz Carlos, que é negro, tem uma filha de dois anos e usa um penteado afro, ficou sabendo que havia uma ordem de prisão contra ele. Começa aí uma sequência de absurdos.

O roubo do celular, em um assalto a mão armada, ocorreu no dia 5 de novembro de 2017. A vítima teria reconhecido Luiz Carlos através de um arquivo de fotos. Mas como a delegacia poderia ter uma foto de alguém sem qualquer antecedente criminal? Mesmo dizendo-se inocente, Luiz Carlos foi encarcerado por decisão da juíza Fernanda Magalhães Freitas Patuzzo.

Os parentes, o advogado e os responsáveis pela Orquestra da Grota garantem ter provas de que no dia e na hora do assalto Luiz Carlos estava tocando para os clientes de uma padaria de Niteró. Tinha um contrato com o estabelecimento para fazer esse trabalho, segundo o presidente da Orquestra de Cordas da Grota, Paulo de Tarso: “É até difícil esse tipo de trabalho ter contrato, mas o Luiz Carlos tinha. Ele nasceu dentro da orquestra porque os tios e os primos dele são os fundadores, então é uma família toda musical. É a formação deles, são muito unidos, trabalhadores, estudam, vivem cem por cento para a música”.

No sábado, 5/9, a ordem de prisão foi revogada pelo juiz André Luiz Nicollit. Em sua decisão, o magistrado disse que causa perplexidade “como a foto de alguém primário, com bons antecedentes, sem qualquer passagem policial vai integrar álbuns de fotografia em sede policial como suspeito”.

Paulo de Tarso conta que o grande sonho de Luiz Carlos é fazer faculdade de música, “mas esse sonho foi adiado porque a namorada dele engravidou e eles agora têm uma filhinha, e ele adora a criança. Eu acho que esse sonho tem que ser materializado, porque é o mínimo que a gente devolve pra ele por tudo que ele está passando, diante da acusação falsa que ele está sofrendo”.

Luiz Carlos passou quatro dias no Complexo Penitenciário de Benfica, no Rio. Depois da ordem de soltura foi transferido para o presídio Tiago Teles, em São Gonçalo, onde ainda ficou mais uma noite. Lá, a situação foi pior, segundo o músico: “Fiquei numa cela com mais de 80 pessoas e nos serviram comida estragada. Fiquei com muito medo, aquilo não é lugar para ninguém”.

Paulo de Tarso informou ao site da ABI que na terça-feira, 8/9, a  Comissão de Direitos Humanos da OAB assumiu o caso de Luiz Carlos. Vai dar a assistência jurídica necessária para ajudar o violoncelista no processo a que ele ainda responde. O músico pensa em processar o Estado.

A prisão de Luiz Carlos Justino apenas reforça o que mostram as estatísticas e as notícias quase diariamente: jovens negros moradores em favelas são vítimas freqüentes de arbitrariedades e da violência policial.

Família de Danillo Félix diz que ele foi preso por racismo (Foto: Ana Branco/ O Globo)

OUTRA HISTÓRIA PARECIDA

Histórias como a do jovem violoncelista, envolvendo racismo, arbitrariedade policial e erros judiciários, se repetem quase diariamente. No mesmo presídio Tiago Teles, de São Gonçalo, está um outro jovem que vive uma situação muito parecida com a do músico da Orquestra da Grota.

Quinta-feira, 6 de agosto. Danillo Félix Vicente de Oliveira, de 24 anos, estava no Centro de Niterói quando foi preso, depois de uma abordagem da polícia. Danillo tem um filho de um ano, é negro, usa tranças, foi acusado de roubar um celular. Mora no Morro da Chácara, uma favela a poucos quilômetros do local da prisão.

A polícia diz que agiu legalmente e o Ministério Público sustenta que “a Promotoria de Justiça da 1ª Vara Criminal de Niterói se manifestou pela manutenção da prisão preventiva de Danillo porque ele foi reconhecido pela vítima no dia posterior ao crime, através de fotografias existentes na delegacia e no Facebook”.

Como no caso do músico, o reconhecimento de Danillo foi feito através de fotos antigas. A mulher dele, Ana Beatriz Sobral Farias, diz que a foto apresentada à vítima, obtida em uma rede social, é de 2017, quando ele usava cabelo curto e um bigode fino. A defesa de Danillo também afirma que a prisão preventiva foi decretada com base em um reconhecimento fotográfico falho.

Para Ana Beatriz, o marido foi preso por ser “negro e periférico”. Ela organizou um abaixo-assinado na Internet pela libertação de Danillo que até terça-feira 8/9 tinha quase 12 mil assinaturas.

OUTRO CASO EM NOVA FRIBURGO

Danillo Félix e Ana Beatriz têm um filho de um ano. Família diz que ele foi preso por racismo (Foto: Reprodução/arquivo pessoal)

O jornalista Rumba Gabriel é fundador do Movimento Popular de Favelas e do Portal Favelas. É integrante também da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e dos Direitos Humanos da ABI. Para ele, “o caso do jovem negro da Orquestra de Cordas da Grota e outros semelhantes têm ganhado visibilidade graças ao alcance do povo pobre favelado à tecnologia atual”.

Rumba diz que os celulares estão sendo usados não só para registrar como também para denunciar fatos de racismo, preconceitos e discriminações.

— É exatamente por isso que policiais, ao entrar nas favelas, a primeira coisa que fazem é chegar atirando para impor a cultura do medo. A segunda é a apreensão de celulares, indiscriminadamente.

Ele relata mais um caso ocorrido há poucos dias, em Nova Friburgo, na região serrana fluminense: “Uma jovem foi abordada por policiais militares que perguntaram de quem ela havia roubado o celular que ela usava. Exigiram a nota fiscal. Não satisfeitos, perguntaram como ela iria pagar, em tom de deboche. A moça mostrou documentos como prova de trabalho e as condições de pagamento do aparelho. Simplesmente absurdo! Isso prova como o racismo está vivo dentro da nossa sociedade.”

O caso a que Rumba se refere envolveu Amanda Ferreira, de 21 anos. Ela é missionária e estava a caminho de um estudo bíblico, quando aconteceu a abordagem policial. Com a repercussão, representantes do 11º Batalhão da PM de Nova Friburgo procuraram o pai de Amanda, Matheus Barros, para pedir desculpas e dizer que o caso vai ser apurado.

“ESSES CASOS NÃO ENGANAM NINGUÉM”

Presidente da Comissão Mulher e Diversidade da ABI, a jornalista Norma Couri aponta uma contradição no racismo brasileiro, que atinge principalmente jovens como Luiz Carlos, Amanda e Danillo Félix:

—  “Esses casos gritantes de prisão por engano não enganam ninguém. Os presos são apanhados pela cor da pele, embora muitos policiais também sejam negros.

Norma lembra que segundo o IBGE 56,1% dos brasileiros são pretos ou pardos. “E eu me pergunto quanto tempo vai levar para começarmos a dar nomes aos números, para enxergarmos como absurdo as pessoas  impedidas de reservar lugar no restaurante, entrar em lojas de shopping, dirigir um carro ou viajar de avião sem serem surpreendidas por reações de preconceito. Nós não reconhecemos esse preconceito e o problema já começa aí. O Brasil não se reconhece como racista.”

A jornalista lamenta que o Brasil caminhe tão lentamente no combate ao racismo: “Só agora, no século XXI, as editoras estão começando a alargar suas publicações, as novelas diversificando atores sem discriminar a cor da pele para papéis que vão da sala de jantar à garagem e cozinha. A mídia se abre para registrar esses casos revoltantes e assim tomamos conhecimento de um ou dois injustiçados que são a ponta do iceberg, um ou dois em milhares de anônimos que habitam no lado oculto da sociedade brasileira. Quando saem vivos”.

ORQUESTRA VAI TOCAR PARA DANILLO

No dia 28 de setembro, de 15h às 17h, haverá um ato em solidariedade a Danillo Félix, que continua preso, em frente ao Fórum de Niterói, no Centro da cidade. Nesse dia, uma segunda-feira, Danillo vai comparecer ao Fórum para sua primeira audiência. O ato, que terá a presença de representantes da OAB-RJ, está sendo organizado por diversos grupos de defesa dos direitos humanos e contará com uma apresentação da Orquestra de Cordas da Grota.

O presidente da orquestra, Paulo de Tarso, diz que será uma forma de retribuir a solidariedade recebida por Luiz Carlos Justino, nos dias de sua prisão:

— Nós entendemos que o caso do Danillo é igual ao do Luiz. Um menino pobre, necessitando de ajuda nesse momento. Nós queremos devolver essa solidariedade que nós recebemos para o Danillo. Queremos que o Danillo tenha a mesma solidariedade que o Luiz Carlos e a orquestra tiveram.