16/02/2025
Por Moacyr de Oliveira Filho (*)
Uma das recomendações do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, em dezembro de 2014, foi a preservação da memória das graves violações de direitos humanos. “Devem ser adotadas medidas para preservação da memória das graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV e, principalmente, da memória de todas as pessoas que foram vítimas dessas violações. Essas medidas devem ter por objetivo, entre outros: preservar, restaurar e promover o tombamento ou a criação de marcas de memória em imóveis urbanos ou rurais onde ocorreram graves violações de direitos humanos; instituir e instalar, em Brasília, um Museu da Memória”, diz o Relatório.
Infelizmente, essa, assim como tantas outras recomendações da CNV, praticamente não saiu do papel. As exceções são o Memorial da Resistência, instalado em São Paulo, em 2009 (antes da CNV), no prédio onde funcionou o DOPS; o tombamento pelo CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, em 2014, do complexo arquitetônico onde funcionou o DOI-Codi, em São Paulo; e a desapropriação da Casa da Morte, em Petrópolis, em dezembro de 2024, com recursos do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Já o pedido para o tombamento do quartel da PE na rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, onde funcionou o DOI-Codi e Rubens Paiva foi assassinado, feito pelo IPHAN, se arrasta desde 2013.
A luta pelo direito à memória, verdade e justiça ganhou, nos últimos meses, um reforço de peso, com o sucesso do filme Ainda Estou Aqui, que resgata a saga de Eunice Paiva na busca pelo corpo de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, assassinado sob tortura no quartel da PE da Rua Barão de Mesquita.
Ganhe ou não o Oscar, o sucesso do filme reacendeu o debate sobre a importância de se preservar os espaços de repressão da ditadura militar, em memória aos 434 mortos e desaparecidos, segundo a Comissão Nacional da Verdade.
Na onda do sucesso do filme, um novo roteiro turístico informal começou a acontecer no Rio de Janeiro, com visitas à casa da Urca, onde a maioria das cenas foram filmadas, reproduzindo a casa da família Paiva, no Leblon, e à Confeitaria Manon, na rua do Ouvidor, no centro, muito frequentada pela família Paiva. Esse roteiro deveria incluir, ainda, a sede da centenária Associação Brasileira de Imprensa – ABI, onde duas cenas do filme foram gravadas, e onde pode se ver a mesa de sinuca em que o maestro Heitor Villa-Lobos jogava e que era escovada por um certo Hildemar Diniz, um jovem contínuo da ABI, que ficou conhecido como Monarco, da Velha Guarda da Portela, e, especialmente, o quartel da PE, na rua Barão de Mesquita, na Tijuca, e a praça Lamartine Babo, que fica na frente do quartel, onde existe um busto de Rubens Paiva, homenagem do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro; e a estação de metrô Engenheiro Rubens Paiva, na Pavuna, onde existe um outro busto dele. A construção de casas populares no bairro, em um conjunto habitacional que leva seu nome, é um dos projetos de engenharia de Paiva que são referências nacionais.
Em São Paulo, o Núcleo de Preservação da Memória Política promove visitas mensais guiadas ao complexo arquitetônico onde funcionou o DOI-Codi, entre as ruas Tutóia, Tomás Carvalhal e Coronel Paulino Carlos, no bairro do Paraíso, onde 78 presos políticos foram assassinados, na tortura, em operações de rua, ou levados para outros centros clandestinos.
Estimular visitas como essas, na onda do sucesso do filme, é importante para preservar a memória política do país e mostrar para as novas gerações esses espaços de terror.
Da mesma forma, as declarações de Walter Salles, Fernanda Torres e Selton Mello, lembrando dos horrores da ditadura, servem de alerta para os riscos que ainda ameaçam a nossa frágil democracia.
“Esta não é apenas uma história sobre o passado — é também um reflexo do agora. Novamente, estamos cheios de medo, divididos e com raiva. O populismo e a ideia de que um estado violento pode colocar ordem na bagunça moderna — é tentador. Mas devemos resistir”, disse Fernanda Torres, em entrevista à revista Variety.
“Um filme que fala do passado para iluminar o presente. É um filme necessário. Eu não preciso ir muito longe, não. Eu tenho 51 anos. Eu cresci em um ambiente familiar em que eu não tive essa percepção. O meu pai chamava de ‘revolução’. E aí, ator, adulto, é que eu fui entender o que era aquilo. Inclusive para dizer: ‘Pai, não foi uma revolução”, emenda Selton Mello.
“As pessoas entenderam que essa história primeiro não era só sobre o nosso passado, ela era sobre o nosso presente. Um presente que se torna perigosamente próximo em outros lugares do mundo”, avalia Walter Salles.
Por tudo isso, o sucesso de Ainda Estou Aqui mostra que a arte pode furar a bolha do silêncio, como definiu o jurista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay: “É emocionante constatar que não só o filme está sendo visto por milhões de espectadores ao redor do mundo, como a lembrança dos tempos da ditadura é reforçada por cada matéria sobre o filme, em cada debate, em toda menção à história e ao enredo, a qual tem que ser explicada. Na entrega do prêmio Goya, no discurso de agradecimento, a citação expressa à ditadura militar no Brasil, com o mundo inteiro acompanhando, valeu milhões de vezes mais do que se o filme fosse panfletário e mais contundente, como reclama parte da nossa esquerda”.
Agora é hora da equipe do Ainda Estou Aqui dar um passo à frente, retribuir todos os aplausos que recebeu e, voltando de Los Angeles, com ou sem a estatueta do Oscar, agradecer e homenagear Rubens Paiva, colocando um buquê de rosas vermelhas no seu busto, na Praça Lamartine Babo, na Tijuca, em frente ao Quartel da Barão de Mesquita, onde ele foi assassinado, reforçando a luta pelo tombamento daquele e de outros centros de tortura e de sua transformação em um Memorial em homenagem às vítimas da ditadura.
E fazer do sucesso de Ainda Estou Aqui um poderoso instrumento de luta em defesa do direito à memória, verdade e justiça. Vamos festejar, comemorar e lutar!
Como disse Ulysses Guimarães, no seu histórico discurso na promulgação da Constituição de 1988, “a sociedade é Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram”.
(*) diretor de Jornalismo da Associação Brasileira de Imprensa – ABI