15/01/2025
Por Rita Fernandes (*), em Veja Rio
Foto: Alexandre Macieira/RioTur
Recentemente, o bloco Imprensa Que Eu Gamo anunciou seu último desfile no formato atual. Fundado em 28 de novembro de 1995 por um grupo de jornalistas, do qual eu fazia parte, o bloco tinha um objetivo: permitir que os profissionais da imprensa pudessem brincar pelo menos um dia de Carnaval. Queríamos nos jogar nos braços de Momo, já que muitos de nós participavam da intensa cobertura da Sapucaí. Eu, naquela ocasião, era repórter da Folha de São Paulo.
Com essa identidade, de ser um bloco de jornalistas, o Imprensa Que Eu Gamo foi fundado no Mercadinho São José, em Laranjeiras, e nesses 30 anos manteve características próprias: ter uma camiseta assinada por um cartunista, de preferência daqueles que assinavam colunas nos vários jornais que existiam, ou por um designer/diagramador; e ter um samba que brincasse com as notícias, destacando fatos que tivessem relevância ou simplesmente fossem pitorescos.
Assim, o Imprensa que eu Gamo contou com camisetas assinadas por gente do calibre de Ziraldo, Lan, Aroeira, Paulo Caruso, Luis Fernando Veríssimo, Ique (o pioneiro!), Miguel Paiva, Loredano, Cruz, para citar alguns. E sambas antológicos, compostos por grupos de jornalistas que se juntavam a músicos para escrever as letras e as melodias, que renderam disputas memoráveis em locais como Far Up, Teatro Odisséia e Cordão da Bola Preta. Marceu Vieiria, João Pimentel, Alexandre Medeiros e Daniel Pereira são alguns dos jornalistas que tiveram seus sambas cantados nos desfiles do bloco. As disputas, coisas do século passado e do início dos anos 2000, eram momentos importantes para o aquecimento do desfile. E quantos casamentos foram feitos e desfeitos nas disputas de samba e nos desfiles do Imprensa.
Hoje, trinta anos depois, as coisas mudaram. A começar pela profissão que, com o advento das redes sociais e do mundo globalizado da internet, ganhou novos contornos. O declínio das redações, agravado ainda mais pela pandemia, também trouxe novos formatos de trabalho, especialmente em home office e com o suporte dos releases das assessorias.
Não existe mais a rotina em que o bloco Imprensa Que Eu Gamo foi fundado. Os jornalistas se encontravam cotidianamente, depois do trabalho, no Mercadinho São José, reduto boêmio da categoria, e foi ali que o bloco surgiu. Dali, alguns seguiam para o Lamas, bar que fez parte do roteiro do desfile do bloco em alguns dos primeiros anos. O dia em que criamos o bloco , havíamos estado na cobertura da Caminha Pela Paz, organizada pelo movimento Reage Rio, numa época em que a cidade estava sitiada pelas lutas das facções e a violência ia a patamares nunca registrados.
Toda a dinâmica da profissão mudou. Não tem mais a corrida pela notícia, pelo furo. Ninguém se conhece. Não tem mais a cerveja depois da redação. Aliás, em alguns casos, não tem mais redação, como a como a do jornal em que eu trabalhava.
Mas não apenas a profissão de jornalismo mudou. O carnaval de rua também já não é mais o mesmo, há algum tempo. O carnaval é um movimento orgânico, como toda a vida social. Não haveria como permanecer engessado nos mesmos formatos. Basta analisar quantos tipos de carnaval já tivemos desde que essa cidade se formou. Entrudos, cordões, ranchos, sociedades carnavalescas, escolas de samba, blocos, fanfarras.
Vieram as fanfarras, movimento que se intensificou a partir de 2013, com os movimentos sociais contra a corrupção, e ganharam a adesão das novas gerações. É um carnaval mais livre, não burocrático, que serpenteia as ruas da cidade como faz o Cordão do Boitatá desde a sua fundação. Ou o Céu Na Terra, outro veterano que abriu portas para Orquestra Voadora, Boi Tolo e outros mais.
Outro agravante foi a burocratização pela qual o carnaval de rua acabou se enveredando, alimentada pelo seu próprio crescimento. Na medida em que aumentava o número de blocos e foliões, de forma exponencial , também crescia a necessidade de controle e de regras. Colocar um bloco na rua hoje é desafio, gincana para produtores experientes e despachantes. São ARTs, plantas de caminhão, rotas de fuga e um sem número de documentos que fazem com o que a brincadeira não tenha mais sentido. Deixou de ser brincadeira, de ser alegria, para ser chateação. E chateação cara, ainda por cima, com preços astronômicos de fornecedores nessa bolha que se formou depois que a pandemia terminou.
A cidade hoje conta com mais de 500 blocos autorizados, mas se tornam muito mais considerando-se os chamados blocos independentes, nome dado aos novos grupos que não se relacionam com o poder público e não pedem autorização. Juntando todos que fazem a festa na rua, certamente chegamos perto de mil agremiações e mais de 7 milhões de foliões nas ruas da cidade, em um período que, dependendo da data do carnaval, pode alcançar dois meses. E que, segundo dados oficiais, gera mais de 3 bilhões de reais que circulam no município neste período. Ainda assim, para as políticas públicas culturais, salvo raras exceções, o carnaval de rua ainda continua invisibilizado e essa luta tem sido uma tarefa árdua.
Escrevo tudo isso para tentar contextualizar, principalmente aos mais jovens, em que circunstâncias o Imprensa Que Eu Gamo decidiu parar de desfilar, com seus carros de som, a partir de 2025. A pergunta que surge é se o bloco terminou. Do jeito que era, com burocracia e carro de som, acho que sim. Mas podem surgir novas ideias a partir daqui. Um cortejo acústico? Uma roda de samba…? O fato é que o Imprensa não acaba, nem morre. É uma instituição cultural que faz parte da história da cidade. E que deixa um lindo legado de todo esse tempo. Primeiro com a bateria da Mangueira, depois a do Tuiuti, da São Clemente, seguida pela bateria do Mestre Penha, que se tornou o mestre dos blocos das décadas de 1980 e 1990, a começar pelo mais emblemático, o Simpatia é Quase Amor, nosso padrinho.
Pois é isso, gente. Tudo tem seus ciclos, com começos e fins, e recomeços. E assim vamos. No dia 15 de fevereiro de 2025 estaremos nas ruas de Laranjeiras, com concentração marcada para 13h e desfile para as 15h. A bateria da São Clemente estará conosco, mas também o Penha, mestre do nosso coração. E todas as porta-bandeiras e mestres-salas que se revezaram ao longo desse tempo. Será um desfile inesquecível, com certeza. Para reencontros com os que de alguma forma ajudaram a colocar o bloco na rua. E também com os nossos foliões. Dá um apertinho no coração. Mas também a certeza de que fizemos lindos Carnavais. Que venha esse novo ciclo! Evoé, eternamente “Viva o Carnaval!!”.
(*) jornalista, escritora, presidente da Sebastiana, pesquisadora de cultura e carnaval.
NOTA DA REDAÇÃO
O Suvaco do Cristo, do Jardim Botânico, também na Zona Sul, confirmou que 2026 será seu último desfile de carnaval. O bloco foi fundado em 1986. Escravos da Mauá, do Centro, e o Bloco de Segunda, do Humaitá, encerraram suas atividades em 2022 e 2023, respectivamente
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