Padre Júlio Lancellotti para Nobel da Paz


27/06/2022


Carta de Jamil Chade pela erradicação da fome

Prezada Berit Reiss-Andersen, presidente do Comitê Norueguês do Nobel.

Enquanto houver a pobreza, a paz seguirá sendo uma utopia. Enquanto houver a pobreza, a segurança não passa de uma ilusão. Enquanto ela não for erradicada, não há como falar em liberdade ou democracia plena.

Escrevo esta carta para pedir que a senhora considere ao lado dos demais membros do Comitê o nome do padre Júlio Lancellotti, de São Paulo, ao avaliar os candidatos para receber o prêmio Nobel da Paz de 2022. Com suas marretadas, ele não apenas atende diariamente a centenas de pessoas em busca de alimentos e de um cobertor. Seu trabalho é também o de resgatar a dignidade àqueles que perderam tudo, inclusive a sensação de que fazem parte da humanidade.

Hoje, diante de uma das piores crises sociais da história democrática do Brasil, um país que enche o peito para dizer que alimenta 1 bilhão de pessoas pelo mundo constata que 33 milhões de brasileiros passam fome.

O país que comemora ser o sexto maior destino de investimentos externos do mundo é o local onde 17,5 milhões de famílias brasileiras vivem na extrema pobreza e com renda per capita mensal de até R$ 105.

No Brasil, portanto, não falta dinheiro. Mas estamos distantes da paz social e, nesta trilha repleta de desafios, lidar com a desigualdade e a pobreza será o maior ato de construção de uma comunidade de destino.

Numa sociedade racista, injusta, segregacionista e violenta, padre Júlio simboliza uma resposta de esperança. Ao encarar a pobreza e suas correntes amarradas nos tornozelos de tantas pessoas, ele cumpre uma função crítica e corajosa pelas ruas abandonadas pelo estado, por parte da sociedade e pelo mercado.

O meu país não está sozinho neste palco surrealista repleto de incoerência. No mundo, a pandemia e agora a guerra desfizeram 30 anos de avanços sociais e a opressão da pobreza voltou a ser a realidade para milhões de pessoas. Para elas, a única liberdade que lhes sobrou foi a de morrer.

Nesta semana, a Unicef alertou que, a cada minuto, uma criança está sendo jogada pela fome extrema no mundo. Uma por minuto!

Enquanto isso, oito indivíduos detêm praticamente metade da riqueza do planeta, um dado que redefine o conceito de fracasso moral de uma sociedade.

Nos serviços de inteligência, nas consultorias que avaliam riscos e nos corredores da ONU, a pobreza voltou a ser um assunto geopolítico. Todos sabem que o corolário da explosão da miséria é a instabilidade política, revoltas, um aumento da repressão em regimes autoritários e abalos para as democracias.

Portanto, dar um prêmio neste momento a uma pessoa que coloca a pobreza no centro de sua ação é mandar uma mensagem ao mundo de que esse é o único caminho viável se queremos a paz.

Ao colocar sua máscara durante a pandemia e sair ao resgate da população de rua, padre Júlio ainda promove resgate do significado do evangelizador e convoca a sociedade anestesiada a se indignar e agir. Uma marretada contra o ódio e a transformação do amor é uma política pública.

Sua luta tira da escuridão vidas humanas e as escancara uma realidade que muitos optam de forma cínica em não querer ver.

Seu compromisso mexe com as estruturas da sociedade. Uma sociedade que sequer entende que a função de um braço num banco de praça não é a de descansar os braços, mas impedir que alguém sem destino transforme aquele espaço como um raro local de sono e de abraço. No fundo, uma medida de criminalização da pobreza.

O que ele também desperta é a consciência de que a pobreza não é uma fatalidade. Num mundo que gera bilionários e fortunas jamais imaginadas e que alguns montam planos para conquistar o espaço, populações inteiras são escravas da pobreza e estão dispostas a tudo para cumprir uma missão ainda mais ousada que uma viagem para Marte: a de sobreviver na Terra.

Ao longo dos últimos anos, cada vez que me deparei com um muro, seja na fronteira Sul dos EUA, nos enclaves espanhóis no Norte da África ou os arames farpados montados pela agência de migração da Europa, me pergunto: saberão os artífices e arquitetos dessas fronteiras que, do outro lado, o desespero jamais poderá ser parado com um muro?

Mas há também uma esperança e as “veias abertas” do mundo podem ser fechadas. Em 1820, nove em cada dez pessoas viviam na pobreza. Em 2015, o Banco Mundial estimou que, pela primeira vez na história, a taxa de miseráveis ficou abaixo de 10%. Em 30 anos, a China retirou 680 milhões da linha da pobreza.

Não podemos permitir que esses avanços sejam desfeitos em nossa geração. A história não nos poupará e nossos netos nos perguntarão: onde estavam vocês quando a crise chegou?

No início do século 21, o economista Jeffrey Sachs calculou que o drama que afeta 700 milhões de pessoas poderia ser erradicado se o mundo destinasse US$ 175 bilhões por ano ao esforço coletivo durante duas décadas.

Muito dinheiro? Na verdade, são migalhas. O valor era, à época, 1% do PIB somado dos países mais ricos do mundo. Como argumentar que acabar com a pobreza custa caro demais se, em 2020, o mundo destinou 2 trilhões de dólares para a compra de armas?

Entre 2000 e 2019, a produção de alimentos no mundo aumentou em 53%, para uma safra total de 9,4 bilhões de toneladas. O volume é suficiente para alimentar de forma cômoda a mais de 10 bilhões de pessoas. Basta garantir a condimento da justiça.

Senhora, o contrário de um mundo pobre não é um mundo rico. Mas uma sociedade justa. O contrário de um mundo inseguro não é um mundo armado. Mas um mundo onde a pobreza tenha sido erradicada.

Medir o desenvolvimento de um país não é saber em que posição do ranking das maiores economias ele está. Mas como permitimos que alguém ainda seja assassinado pela fome. A história não nos julgará pelo que acumulamos. Mas por como lidamos com seus pobres.

Ao dar o prêmio ao padre Júlio Lancellotti, o Comitê do Nobel mandará uma mensagem poderosa de que a erradicação da pobreza não é uma opção. E sim o caminho mais sólido, rápido e barato para a paz. E a maior conquista da história da Humanidade.

Saudações democráticas,

Jamil Chade

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