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O urro de Eunice


07/02/2025


Por Cecília Costa (*), em Quarentena News

Maria Lucrecia Eunice Facciola Paiva, a “italianinha”, esposa do deputado federal trabalhista (PTB) e engenheiro Rubens Beyrodt Paiva, era uma mulher contida, que amava os livros e não costumava expressar suas emoções. Mesmo estando presente na vida doméstica e na dos filhos, dificilmente ela poderia ser considerada uma mulher carinhosa. O iluminado, cheio de vida, risonho, simpático, brincalhão, a alegria da casa, era o seu marido santista. Quando, em 20 de janeiro de 1971, Dia de São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro, Rubens Paiva foi convocado pelos militares para dar um depoimento sobre sua atividade política e desapareceu sem deixar vestígios, tendo sido engolido pelas sinistras paredes cinzentas do 1º Batalhão de Polícia do Exército Marechal Zenóbio da Costa na Tijuca (Rua Barão de Mesquita, 425), ela não permitiu o choro na espaçosa residência da Avenida Delfim Moreira, número 80, à beira mar, no bairro do Leblon, próxima ao morro do Pinto.

A partir do inexplicável desaparecimento do deputado cassado em 1964 todos deveriam se manter sérios, dignos da honradez do pai. Lágrimas, nem pensar. Sorrisos, sim. No premiado filme do cineasta Walter Salles Ainda estou aqui, há uma cena que se encontra presente no livro homônimo do escritor e filho do casal Eunice e Rubens Raiva, Marcelo Rubens Paiva, que serviu de base para o roteiro da obra cinematográfica. Ao ser convidada para fazer uma foto para a revista Manchete, os editores da publicação de Adolfo Bloch pediram que a família Paiva, constituída pelos cinco filhos e por Eunice, ficasse séria, a fim de caracterizar, desta forma, uma sofrida vítima da ditadura. Mas Eunice insistiu que, muito pelo contrário, todos sorrissem. Não fariam o papelão de sair tristes nas fotos. O inimigo não os derrubaria. Ela não queria dar a entender ao público da revista – e ao Brasil inteiro que acompanhava a triste saga de Rubens Raiva – que estavam deprimidos porque a ditadura dera um sumiço no corpo de seu marido e pai de seus filhos. Ou o matara pura e simplesmente no sinistro porão do DOI-Codi da Tijuca. Não, não ela não permitiria isso. Na medida do possível, estavam bem.

Sobreviveriam com bravura e galhardia ao autoritarismo vigente no país. Tanto que a primeira coisa que Eunice fez, para melhor responder ao arbítrio, foi se matricular, aos 42 anos, na famosa faculdade de direito de São Paulo. Queria ser uma atuante advogada. Não ia ficar parada ante tantas maldades e injustiças vigentes no país.
Como escreveu Marcelo em seu livro magistral Ainda estou Aqui: “A família Rubens Paiva não é a vitima da ditadura, o país que é. O crime foi contra a humanidade, não é contra Rubens Paiva. Precisamos estar saudáveis, bronzeados para a contraofensiva. Angústia, lágrimas, ódio, apenas entre quatro paredes. Foi a minha mãe quem ditou o tom. Ela quem nos ensinou. Durante toda a minha vida, se um entrevistador me perguntasse sobre meu pai, eu respondia imaginando como minha mãe responderia”. Pois essa foi a corajosa opção de Eunice. Continuar vivendo com muita luta, ação e pouco choro.

Mas mesmo assim houve choro, sim. Choro metafórico e choro lancinante. A primeira pessoa que pressentiu que Eunice Paiva chorava por dentro foi o escritor Antonio Callado. No caso, o choro se misturou à água do mar. Conta Marcelo Rubens Paiva: “Antonio Callado escreveu em agosto de 1995 na coluna na Folha de S. Paulo:
‘Outra recordação que me ficou nítida liga-se a Búzios. Ali fui, num fim de semana de 1971, hóspede de Renato Archer. Saíra com ele, Maria, Maurício Roberto e outros amigos para um passeio de lancha. Quando paramos ao voltar, a uns cem metros da praia, vimos alguém, uma moça, que nadava firme em nossa direção. Minutos depois subia a bordo, cara alegre, molhada de mar, Eunice Paiva, mulher do deputado Rubens Paiva, amigo de Renato, amigo meu, amigo de todos nós, um dos homens mais simpáticos e risonhos que eu já conheci. Eunice andava preocupada. Rubens fora detido pela Aeronáutica dias antes e nenhuma notícia sua tinha chegado à família. Mas agora Eunice, que fora também presa mas em seguida libertada, podia respirar tranquila, podia nadar em Búzios, tomar um drinque com os amigos, pois acabara de estar com o ministro da Justiça ou da Aeronáutica, que lhe havia garantido que Rubens já tinha sido interrogado, passava bem e dentro de uns dois dias estaria de volta a sua casa. Dois dias depois, isso sim, os jornais recebiam uma notícia tão displicente que se diria que seus inventores não faziam a menor questão (de) que fosse levada a sério. Rubens estaria sendo transferido de prisão, num carro, quando guerrilheiros que tentavam libertá-lo tinham atacado e sequestrado o prisioneiro. O que correu pelo Rio, logo que se suspeitou de sua morte, é que morrera às mãos, ou pelo menos de tortura, diretamente comandada pelo brigadeiro João Paulo Penido Burnier, aquele mesmo que queria fazer explodir o gasômetro do Rio para pôr a autoria do crime na conta dos comunistas. A família Paiva nunca mais teve notícias oficiais de Rubens. Nunca se encontrou a cova onde o terão atirado depois do assassinato. A cara de Eunice continuou molhada e salgada durante muito tempo, tal como naquela manhã de Búzios. A água é que não era mais do mar.’

Conta Marcelo ainda: “Eu e minha mãe lemos a coluna juntos, no sábado em que foi publicada, durante um almoço na casa dela. Acho que ficou lisonjeada. Você se lembra desse dia em Búzios?
– Claro. Foi dias depois de eu ser solta, em 1971, eu estava magérrima, queimada, de biquíni, linda…- ela disse, e foi sorridente para a cozinha. O que importava era que ela estava magra, magérrima (perdera 20 quilos na prisão), queimada, linda. E que a prisão não a quebrara por dentro. No verão de 1971 a imagem de minha mãe aliviada, de biquíni, com os olhos castanhos claros brilhando sob a luz do sol, quarenta e um anos, subindo alegre numa lancha depois de ficar doze dias presa no DOI-Codi do Rio de Janeiro, sem ter a menor ideia de por que fora presa nem de que o marido estava morto havia muito, não saiu da memoria de Callado. Escritor é assim. Lembra-se das contradições enormes, de imagens que podem ser descritas décadas depois, pois ficou tocado por ela. O choro real, abundante, só aconteceria anos mais tarde, quando Rubens Paiva foi considerado realmente morto”.

Escreve Marcelo:
Lei 9140 de 4 de dezembro de 1995:
Artigo 1º: São reconhecidas como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por esse motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas se tenha notícias.
Artigo 3º: O cônjuge, o companheiro ou companheira, descendente, ascendente ou colateral até quarto grau, das pessoas nominadas na lista referida no artigo 1º, comprovando essa condição, poderão requerer a oficial de registro civil das pessoas naturais de seu domicílio a lavratura do assento de óbito, instruindo o pedido com original ou cópia da publicação desta Lei e seus anexos.´

E foi isso o que a família Paiva fez em 1996. Pediu o atestado de óbito de Rubens Paiva. No dia 23 de fevereiro de 1996, no centro velho de São Paulo, fazia sol. Não ia chover. Eunice fez o filho Marcelo vestir um dos ternos do pai (“eu tinha herdado dele, estão comigo até hoje”), pegaram o metrô para descer na Praça da Sé. Caminharam até o cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais – 1º Subdistrito da Sé.

Marcelo narra ainda: “Os funcionários estavam assustados com a quantidade de fotógrafos e cinegrafistas. Era um momento sublime. Mal sabiam que se fazia história naquela repartição abafada. Um cordão da imprensa respeitou nossa passagem. A escrevente substituta Cibeli da Silva Bortolotto nos entregou, com as mãos trêmulas e um sorriso forçado, o seguinte atestado:
‘Certifico que, em 23 de fevereiro de 1996, foi feito o registro de óbito de Rubens Beyrodt Paiva. Profissão, engenheiro. Estado civil, casado. Natural de Santos, neste Estado. Nascido em 26 de dezembro de 1929. Observações: Registro de Óbito lavrado nos termos do Artigo 3º da Lei 9140 de 4 de dezembro de 1995.
Enfim, Eunice Paiva recebia o atestado de óbito do marido. Desde o desaparecimento de Rubens no Batalhão do Exército da Tijuca em janeiro de 1971, haviam se passado 26 anos, 26 anos de dedicação à advocacia, fazendo divórcios, separações e inventários para os amigos endinheirados, 26 anos de luta pelos indígenas maltratados e torturados pelo governo brasileiro, ao lado de Sting e Ailton Krenak, e trabalhando para a área de Direitos Humanos das Nações Unidas, 26 anos de procura em vão do corpo desaparecido do marido. Sabia que o perdera para todo o sempre, mas queria o corpo, e nunca o obteve. Como poderia imaginar que após ter sido torturado e enterrado no Recreio dos Bandeirantes, o que sobrara de Rubens Paiva fora jogado no mar? Ao receber o atestado de óbito do homem que tanto amara e que lhe dera cinco filhos – Vera, Eliana, Ana Lucia, Marcelo e Maria Beatriz – o dique de contenção de Eunice Paiva, mantido intocável após ter ficado presa 12 dias no mesmo DOI-Codi onde morrera o marido, este dique que parecia ser de aço se rompeu e ela teve uma reação inusitada.

Deixemos que o próprio Marcelo Rubens Paiva fale: “Naquela tarde que pegamos o atestado de óbito em 1996, vi minha mãe então chorar como nunca fizera antes. Era um urro. Não tinha lágrimas. Como se um monstro invisível saísse de sua boca: uma alma. Um urro grave, longo, ininterrupto. Como se há muito ela quisesse expelir. Pela primeira vez, me deixou falar, sem me interromper. Pela primeira vez, na minha frente, chorou tudo o que havia segurado, tudo o que reprimiu, tudo o que quis. Foi um choro de vinte e cinco anos em minutos. O rompimento de uma represa.

Sorvete, suflê e “Tadinho”

Porque tudo se desnudara por completo. Os véus da ditadura haviam caído no chão. Todos os maus tratos que o marido sofrera nas mãos de seus carrascos vieram à tona. Diz Marcelo, em seu livro Ainda estou aqui:
“21 de janeiro de 1971. Meu pai apanhou por dois dias seguidos. Apanhou assim que chegou na 3ª Zona Aérea, interrogado pelo próprio brigadeiro João Paulo Burnier. Apanhou no DOI-Codi, no quartel do 1º Exército. Meu pai era um homem calmo, bom, engraçado, frágil fisicamente e vaidoso. Um dos homens mais simpáticos e risonhos que Callado conheceu. O que lembrava dele? Da gargalhada , que fazia tremer a casa. Fumava charutos, gostava de comer do bom e do melhor. De viajar. Gostava de Paris. Chegou a morar lá aos vinte anos, a uma quadra do Sena. Passou um ano na Europa, com os três irmãos em 1947, para testemunhar a reconstrução de uma terra arrasada. Falava inglês e francês. Cantava algumas músicas em alemão.

Imaginar este sujeito boa praça, um dos homens mais simpáticos e risonhos que muitos conheceram, aos quarenta e um anos, nu, apanhando até a morte…Dizem que ele pediu água a todo momento. No final, banhado em sangue, repetia apenas o nome. Por horas. Rubens Paiva, Rubens Paiva, Ru-bens Pai-va. Ru…Pai, Até morrer…”

O livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva sobre sua mãe e o desaparecimento do pai é imperdível. Uma obra-prima. Eu o recomendo a todas as pessoas que viram a fita de Waltinho, por explicar muito do que não se encontra presente no filme, e também aos que ainda não o viram. Marcelo, que ganhou um Jabuti, com sua obra Feliz Ano Velho, lançada em 1982, como sempre, escreve bem. Seu estilo é simples, fluido, descomplicado. Nada mais difícil, dizia Bertrand Russell, do que escrever fácil. Com isso, a literatura de Marcelo Rubens Paiva é agradável, fácil de ser lida. Devido ao fato de a mãe ter morrido em 2018 do mal de Alzeihmer, o escritor fala muito sobre os mistérios da memória humana, as camadas superpostas de lembranças, as mais subterrâneas e as que ficam à flor da mente. Seguindo aquele processo muito conhecido de esquecermos rapidamente o presente, mas mantermos vivo o passado, a memória da infância, por exemplo, que nunca é esquecida.

Temos também no livro uma Eunice Paiva que, apesar de dura, como se fosse coberta por uma carapaça, a Eunice que não gostava de expor suas emoções, não deixava de ser, por outro lado, apaixonante. Até porque Marcelo, sem dúvida, era apaixonado pela mãe, mulher de origem italiana bonita, que gostava de se cuidar, amava o mar e ficar com a pele tostada de sol. Detalhista, exigente, Eunice costurava as próprias roupas. Era adepta de uma moda sóbria, elegante, e fugia das cores chamativas.

Isso não quer dizer que não era amiga dos filhos. Longe disso. Eunice Paiva não tinha atitudes moralistas. Ela deixava Marcelo fumar maconha em casa com os amigos, e quando viúva também fumou maconha com as amigas da faculdade. No momento em que Marcelo passou por maus momentos porque uma namorada ficou grávida, sem fazer nenhuma peroração moral, fez o filho optar pelo aborto (ele era muito jovem ainda para ser pai), e ficou com a jovem namorada em casa, até que esta se reestabelecesse.

Na cozinha, cozinhava com maestria seu prato favorito, que era a alegria da casa: suflê de queijo. E o que mais gostava de comer era sorvete. Quando teve em mãos o atestado de óbito, e o dinheiro da pensão de Rubens foi liberado, assim como a renda de inventários, o filho perguntou…”e agora, o que vai fazer, vai para a Itália, França, visitar a Nalu em Paris?” Nem pensar. Roma já conhecia muito, assim como Paris, o que ela queria era tomar um sorvete na lanchonete do prédio onde moravam. Para Eunice Paiva, sorvete, a delícia gelada descoberta por Marco Polo na China, era o elixir dos deuses.

Um outro aspecto do livro de Marcelo bem mais pesado é sua pesquisa, visando a escrever sua tese de dissertação de mestrado sobre a ditadura brasileira e o que ocorreu com o pai nos porões do DOI-Codi. A partir de vários depoimentos de ex-prisioneiros e de militares envolvidos no incidente, ele descobriu quem matou o pai, ou seja, quem foi o homem que deu pulos na barriga de Rubens Paiva causando uma hemorragia interna. O monstro foi o tenente do Exército Antonio Fernando Hughes de Carvalho. Sua ação violenta foi assistida pelo comandante do Pelotão de Investigações Criminais (PIC), Armando Avólio Filho, que tentou dar um basta naquela tortura mas não conseguiu. O famigerado doutor Amilcar Lobo, chamado às pressas pelos torturadores para ver o estado de Rubens, disse que ele estava morrendo e que tinha que ser levado com urgência para um hospital, mas nada fizeram. E ele morreu em 22 de janeiro de 1971.

Enfim, foi assassinato mesmo. Mas paro por aqui. Comprem o livro Ainda estou aqui de Marcelo Rubens Paiva. Até porque é chegada a hora de dar um ponto final à tortura no Brasil. A Associação Brasileira de Imprensa, a Comissão de Verdade e o Tortura Nunca Mais querem que o Batalhão de Policia na Tijuca seja tombado e seja transformado num museu do Horror ou da Tortura. Vocês devem se lembrar bem das palavras de Joseph Conrad em Coração das Trevas: Horror, Horror, Horror. Também não devem ter se esquecido da morte de Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975. A ABI esta dedicando este ano a Herzog.

A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) dedicará reportagens e uma sessão permanente do site para relembrar o assaPossinato do jornalista Vladimir Herzog por agentes do Estado brasileiro, em 25 de outubro de 1975 na base do DOI-Codi, em São Paulo. O Ano Vladimir Herzog, como foi nomeado pela ABI, se insere nas iniciativas de memória frente à falta de justiça após a tortura e encenação de suicídio, com a qual se tentou esconder o crime cometido nas dependências de uma unidade do Exército.

Apoiador da iniciativa, o Instituto Vladimir Herzog (IVH) tem amplo material sobre o tema, inclusive depoimentos de colegas da imprensa, contemporâneos de Vlado, como era conhecido o jornalista. O “caso Herzog” juntou décadas de tentativas de esquecer os abusos cometidos, inclusive após a anistia aos torturadores, porém denúncia internacional em 2018, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, levou à reabertura do caso pelo Ministério Público Federal, no ano de 2020. Apenas em 2024 o Estado reconheceu a perseguição à viúva, Clarice Herzog, que se negou a aceitar a versão oficial de suicídio. Ela foi considerada perseguida política e recebeu indenização e um pedido formal de desculpas do Governo brasileiro.

Voltando a Eunice Paiva. Quem viu o filme de Waltinho sabe que ela reconheceu o marido em 2014 quando mostraram o rosto dos desaparecidos na televisão. Mesmo com Alzheimer, ela disse “Olha, Olha, Olha”, ou seja, novamente a rocha se quebrou, apesar de a memória se encontrar abalada. Mas o livro do filho me fez chorar. Além de reconhecer Rubens, neste dia, em 2014, Eunice afirmou: “Tadinho, Tadinho, Tadinho”.

(*) jornalista, sócia da ABI