O legado científico de Adolpho Lutz


25/09/2009


Uma jóia rara sobre um importante campo científico brasileiro passou a fazer parte do acervo da Biblioteca Bastos Tigre da ABI. Trata-se do livro “Viagens por terras de bichos e homens” (Editora Fiocruz, 2007), que pertence ao terceiro volume das obras completas de Adolpho Lutz, edição e organização dos historiadores Jaime L. Benchimol e Magali Romero Sá.

O livro — que faz parte do projeto “Adolpho Lutz e a história da medicina tropical no Brasil” — foi doado à ABI pelo Presidente da Fundação Fiocruz, Paulo Gadelha. Reúne relatos e resultados de pesquisas realizadas por Adolpho Lutz (1855-1940), considerado um dos mais importantes e versáteis cientistas brasileiros, cuja experiência no âmbito da medicina tropical fez dele um membro destacado do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), no Rio de Janeiro, onde ingressou em 1908. 

Adolpho e Bertha Lutz em manguinhos

A idéia do trabalho nasceu em 2000, quando Jaime Benchimol tomou conhecimento da descoberta de Magali Romero Sá, que encontrou um material de pesquisa sobre Adolpho Lutz, organizado por Bertha Lutz, filha do cientista:
— A Magali, que é minha colaboradora neste projeto, encontrou jogado no Museu Nacional um arquivo de metal com pesquisas da Bertha Lutz para um projeto da obra científica do pai. Nós iniciamos o trabalho fazendo as traduções do alemão para o português.

A coleção completa sobre Adolpho Lutz será composta por 21 livros, organizados em cinco caixas. Os quatro primeiros volumes apresentam “Primeiros trabalhos: Alemanha, Suíça e Brasil (1878-1885)”; “Hanseníase”; “Dermatologia e micologia” e ainda um suplemento contendo sumário, glossário e índices. O projeto prevê também uma biblioteca virtual, que já tem parte do seu conteúdo disponível pela internet (www.bvsalutz.coc.fiocruz.br).

A biblioteca também faz parte do projeto “Adolpho Lutz e a história da medicina tropical no Brasil”, que conta com o apoio do Museu Nacional, Instituto Adolfo Lutz (São Paulo), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), além da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

Segundo Jaime Benchimol, para facilitar a edição os volumes foram divididos por tema específico, e cada livro contém uma apresentação histórica. O historiador afirma que o trabalho, que ainda não está concluído, precisou de muito fôlego para ser desenvolvido, mas que o resultado foi compensador:
— Foi uma experiência gratificante, ao mesmo tempo um desafio muito grande. Principalmente, pela dificuldade que é lidar com o serviço público. Mas valeu à pena, pois, sinceramente, não conheço nada semelhante que tenha sido feito sobre outro cientista no Brasil.

Rigor científico

Adolpho Lutz em 1880

Adolpho Lutz nasceu no município do Rio de Janeiro em 18 de dezembro de 1855, mas foi criado na Suíça (país de origem dos seus pais) desde os dois anos de idade. Formou-se em Medicina pela Universidade de Berna e retornou ao Brasil quando tinha 26 anos de idade. Seu destino foi a cidade de Limeira, no interior paulista, onde de 1881 a 1886 montou um consultório para atender às pessoas de baixa renda — logicamente a população que mais sofria com problemas de saúde pública.

Consta da sua biografia que mesmo residindo no Brasil continuou mantendo contatos com a Europa, para onde viajava com freqüência para visitar centros de pesquisas avançados, em cidades como Paris, Londres e Viena. Na Alemanha, na cidade de Hamburgo, desenvolveu os seus estudos sobre a lepra.

Em 1889 — ano em que o Brasil derrubava a Monarquia para se tornar uma República —, Adolpho Lutz viajou para o Havaí, que sofreu um grave surto da doença que atingiu grande parte da população de Honolulu. Ficou no país até 1892, quando a moléstia foi erradicada.

Em 1893, surgiu no Brasil uma epidemia de cólera, doença até então pouco conhecida no País. E novamente Adolpho Lutz apresentou-se como o principal profissional da medicina a acertar no diagnóstico da moléstia, a partir de seus métodos rigorosos de pesquisa.

Foram exatamente a determinação para o estudo e a dedicação pela ciência que fizeram com que Adolpho Lutz concretizasse inúmeras contribuições ao Brasil no campo da saúde pública. Tendo sido ele um dos mais destacados personagens na luta pela erradicação de doenças como febre amarela, varíola, peste bubônica, febre tifóide, cólera, malária e tuberculose. Foi ele também um dos fundadores da entomologia médica.

Antes de se transferir para o Rio, trabalhou e dirigiu o Instituto Bacteriológico de São Paulo (1893-1908), período no qual deu grandes contribuições à saúde pública no Brasil, atestam os organizadores da obra. Durante o período em que esteve à frente do instituto paulista, Adolpho Lutz desenvolveu importantes pesquisas no campo da bacteriologia, epidemiologia e zoologia médica, tendo se destacado como um dos mais experientes profissionais da chamada medicina pasteuriana.

No Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, o cientista trabalhou por cerca de 30 anos até a sua morte, em 1940, quando estava perto de completar 85 anos de idade. Foi na sede da entidade em Manguinhos que Adopho Lutz desenvolveu a sua fase de maior produção de trabalhos publicados, dedicando-se integralmente à pesquisa.

Expedições

No texto de abertura do livro, Jaime L. Benchimol e Magali Romero Sá ressaltam a formação acadêmica de Adolpho Lutz, cujo amadurecimento profissional, desenvolvido em fins do século XIX e início do XX, se deu baseado numa trajetória que percorreu “diversos espaços geográficos” — como Rio de Janeiro, São Paulo, Europa Estados Unidos e Oceania —, e outros que são cognitivos, tais como clínica médica, veterinária, protozoologia, entomologia, entre outros.

Como membro do Instituto Oswaldo Cruz, Adolpho Lutz passou a se dedicar mais à pesquisa e nesse contexto deu preciosas contribuições na formação de cientistas mais jovens e às coleções de trabalhos biológicos, que começaram a se intensificar como desdobramento das múltiplas expedições realizadas pelo interior do País. O livro sobre sua obra é valioso porque inclusive traz alguns relatos e resultados das viagens realizadas pelo cientista.

Adolpho Lutz pertenceu ao grupo de sanitaristas do Instituto Oswaldo Cruz que, a partir da década de 1910, executou uma série de expedições pelo interior do Brasil, promovendo campanhas contra doenças como a febre amarela, malária e pneumonia, em regiões tão distintas como Amazônia, Centro e Nordeste.

Dessas expedições participaram o próprio Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Pacheco Leão, João Albuquerque. Em 1912, entre os meses de março a outubro, Arthur Neiva e Belisário Pena percorreram mais de sete mil quilômetros pelos estados da Piauí, Pernambuco, Bahia e Goiás. No mesmo ano, Adolpho Lutz e Astrogildo Machado fizeram parte de uma importante expedição científica e sanitarista de inspeção do vale do rio São Francisco.

Fundo Adolpho Lutz

Estação de Juazeiro

A viagem deu origem ao relatório “Viagem pelo rio S. Francisco e por alguns de seus afluentes entre Pirapora e Juazeiro. Estudos feitos a requisição da Inspetoria das Obras contra a Seca, direção do Dr. Arrojado Lisboa”. Esse estudo foi publicado em “Memórias do Instituto Oswaldo Cruz” (t.7, n.1, p.5-50, 18 pranchas).

Essa expedição é classificada por Jaime Benchimol e Magali Romero Sá como uma “grande ofensiva científica e sanitária”, que foi pautada pelos cientistas de maior reputação do Instituto Oswaldo Cruz na época. Deles partiram as orientações que orientaram os expedicionários nas coletas de material zoológico e nas observações das doenças que encontraram no interior do país. Principalmente as dermatoses e a Doença de Chagas.

O resultado desse empreendimento científico que teve Adolpho Lutz como um dos seus membros — devido à riqueza de dados e material iconográfico produzido sobre as patologias brasileiras — é comemorado até os dias atuais como “o primeiro inventário moderno das condições de saúde das populações rurais do Brasil”, afirmam os autores do livro. 

Relatos históricos

A coleção editada e organizada por Jaime Benchimol e Magali Romero Sá sobre Adolpho Lutz, além de um importante registro sobre a medicina tropical brasileira, é capaz também de proporcionar ao leitor uma visão histórico-geográfica da difusão das doenças veterinárias e epidemiológicas, que se desenvolveram em diversas regiões do Brasil e de outros países sul-americanos.

Entre os anos de 1917-18, Adolpho Lutz empenhou-se em campanhas para estudar a esquistossomose percorrendo no primeiro ano os estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Sergipe e Bahia. No ano seguinte, viajou pelo rio Paraná até Assunção, voltando por Buenos Aires, Montevidéu e Rio Grande do Sul.

Égua com mal das cadeiras

Antes, em 1907, Adolpho Lutz viajou a Belém a convite do Governo do Pará para estudar uma moléstia que atacava cavalos e era conhecida vulgarmente como “peste das cadeiras”. O resultado desse trabalho foi publicado no mesmo ano no Dário Oficial do Estado do Pará, em 5 de dezembro. No ano seguinte, o estudo do cientista pode ser lido na Revista da Sociedade Scientífica de S. Paulo. Em 1908, foi divulgado pela Revista Médica de S. Paulo.

A preocupação de Adolpho Lutz em contextualizar os seus trabalhos com dados históricos fica evidente no texto em que relata a sua pesquisa: “Dou em seguida uma relação das observações e dos estudos que tive ocasião de fazer no estado do Pará… Principiarei o meu estudo com alguns dados históricos e geográficos … em Marajó, que é hoje considerada como foco principal da peste das cadeiras, essa epizootia não tem reinado sempre. Sabe-se que antes de 1828 os cavalos em toda a ilha existiam em número enorme, o que claramente indica não ter existido a peste naquela ocasião…”

A riqueza de detalhes dos relatórios de Adolpho Lutz é impressionante, e por isso são documentos que se apresentam como uma contribuição riquíssima para o estudo da Medicina, da História, da Antropologia e da Geografia no Brasil no início do século XX. Também impressiona o estilo de narrativa do texto, que se aproxima do literário, como comprova o registro da viagem ao vale do rio São Francisco: “Quando se iniciou nossa viagem (este percurso ele fez com o colega Astrogildo Machado), a estação da seca já estava bem estabelecida. Não houve chuvas durante todo o tempo da excursão, apenas uma ou duas exceções. Em conseqüência disso as margens do rio tornaram-se cada vez mais áridas, até que, chegados a Juazeiro, encontramos os arrabaldes com aspecto que lembrava o deserto, por estar toda a vegetação queimada pelo sol e muitas árvores sem folhas.”

Em seguida o cientista entra em detalhes sobre vida dos bichos da região: “…Na mesma proporção diminuiu a vida dos insetos e outros pequenos animais. Disso ressentiram-se as coleções, porque as zonas percorridas, em estação mais favorável, sem dúvida, teriam sido mais ricas, posto que se trate de região relativamente pobre.”

Eis porque a leitura das obras da coleção “Adolpho Lutz e a história da medicina tropical no Brasil” torna-se fundamental. Trata-se de um material valioso para os cientistas e que deve agradar também aos leigos, devido à maneira simples de comunicar de Adolpho Lutz, com um texto agradável e de fácil compreensão que com certeza vai ser apreciado também por quem não é do ramo científico.