O homem que inventou a ABI


17/04/2008


Por Audálio Dantas, Vice-presidente da ABI e 
Presidente da Representação da entidade em São Paulo

Gustavo de Lacerda

Há cem anos, no dia 7 de abril de 1908, nascia no Rio de Janeiro a primeira entidade de jornalistas do País, a Associação de Imprensa. Era um pequeno grupo, apenas nove pessoas, sem o mínimo de recursos para levar adiante a proposta de organizar “os trabalhadores da imprensa escripta” (sic). Mas havia, sobretudo, o ideal e a vontade de realizar de seu fundador, Gustavo de Lacerda, que resumia numa frase a necessidade de uma organização que levasse à profissionalização dos jornalistas: “O jornalismo entre nós não é uma profissão; ou é eito ou é escada para galgar posições.”

A Associação de Imprensa não tinha condições sequer de alugar um espaço para funcionar. Sua primeira sede foi uma pequena sala emprestada no prédio de um dos importantes jornais da época, O Paiz, do qual Gustavo de Lacerda era repórter. Nas horas vagas, ele percorria as redações, de mesa em mesa, tentando arregimentar adeptos para a Associação. Poucos o levavam a sério, pois era um simples repórter, função considerada menor nos jornais em que pontificavam os redatores, muitos dos quais escritores ou nomes famosos na política e ocupantes de cargos públicos vistosos na então capital da República.

Lacerda manifestava, corajosamente, a sua revolta contra a distinção que se fazia entre repórteres e o que se considerava uma casta superior — a dos redatores. E ia além, pregando o que para muitos soava como uma heresia: jornalista deve ser só jornalista, nada de se agarrar em empregos públicos ou outras atividades. Daí a necessidade de luta pela profissionalização.

Visionário, excêntrico, era o mínimo que se dizia do obstinado fundador da Associação de Imprensa. Apontavam-lhe limitações culturais. Na verdade, Gustavo de Lacerda, um catarinense que se aventurara na Capital Federal, era homem de pouca instrução. Mas não se cansava na busca de conhecimento. Era considerado um perigoso agitador, um anarquista. Ousava, na pregação que fazia para arregimentar adeptos, acenar com uma associação “que servisse de paradigma a outras instituições congêneres a serem criadas em todos os Estados da República”, conforme registra Dunshee de Abranches, sucessor de Gustavo de Lacerda na Presidência da Associação de Imprensa.

Mais agitador e ainda mais perigoso Lacerda foi considerado quando, com tintas de socialismo, preconizou que os jornais não deviam ser empresas industriais ou mercantis, constituídas para dar lucro aos seus acionistas. Conforme registrou Dunshee de Abranches, em seu livro “A Fundação Gustavo de Lacerda”, sua idéia era que “o jornal, dada a sua alta e sagrada missão social, deveria ser uma cooperativa de cujos interesses participassem todos os seus membros, desde os diretores até os seus mais modestos colaboradores”.

Com tais idéias, Lacerda não podia ser bem-visto entre o patronato da época. Mas a associação que fundou avançou rapidamente, contribuindo não apenas para a organização profissional dos jornalistas, mas tornando-se uma referência na luta em defesa da profissão e da liberdade de imprensa. Sua atuação repercutiu em redações Brasil afora. E logo deixou de ser a Associação de Imprensa, do Rio de Janeiro, para ser a Associação Brasileira de Imprensa. E foi além, pois à defesa da profissão de jornalista e da liberdade de expressão acrescentou a defesa das liberdades públicas em geral e a luta pelas grandes causas nacionais.

Durante todo século XX, a ABI participou ativamente dos movimentos sociais mais importantes do País. Basta citar três deles: a campanha pelo monopólio estatal do petróleo, que resultou na criação da Petrobras, nos anos 50; a luta contra a censura, durante a ditadura militar, que levou ao atentado a bomba contra a sua sede, nos anos 70; e a campanha pela Anistia. Foi em sua sede, no Rio de Janeiro, que se fundou em 1973 o primeiro Comitê Brasileiro pela Anistia.

Muitas conquistas foram alcançadas ao longo desses cem anos. Gustavo de Lacerda morreu cedo, menos de dois anos depois da fundação da associação pela qual tanto lutou. Mas, antes de ela completar dez anos de existência, em 1918, seus sonhos se tornavam realidade. Em setembro daquele ano a ABI realizou o 1º Congresso Brasileiro de Jornalistas, durante o qual foi preconizada a criação de um curso superior de Jornalismo e a elaboração de um código de ética da profissão. Foi como se tratasse do cumprimento de uma profecia de Gustavo de Lacerda, em 1908: “(…) e quando nos organizarmos em centro poderoso de ação, teremos nossa Escola Profissional.”

Desde os seus primeiros anos, quando a luta pela liberdade de informação incluía a necessidade de resistência física aos freqüentes empastelamentos de jornais, a ABI é uma espécie de trincheira. Sua própria sede foi mais de uma vez ameaçada de invasão e quebradeira. Durante a gestão de Dunshee de Abranches, sucessor de Gustavo de Lacerda, um delegado de polícia anunciou que invadiria a sede para prender jornalistas que denunciavam atos arbitrários por ele cometidos. E lá foi, disposto a cumprir a ameaça, mas ao chegar viu no topo da escada que dava acesso à sede da Associação, uma barreira humana, tendo à frente o Presidente.

Homens com a coragem e a capacidade de Lacerda e Abranches sucederam-se na Presidência da ABI. Muitos deles fizeram história, como Barbosa Lima Sobrinho, Prudente de Moraes, neto, Raul Pederneiras, Herbert Moses. Ao completar cem anos, a ABI é mais que uma associação de jornalistas: é uma referência da sociedade civil brasileira.